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sábado, 31 de março de 2012

TEXTOS FREI MAURO STRABELI (MARÇO 2012): "BÍBLIA perguntas que o povo faz Nova edição, revista e atualizada " - PERGUNTAS de 01 a 24:




 MAURO  A.  STRABELI















BÍBLIA
perguntas que o povo faz

Nova edição,  revista e atualizada


























         O presente trabalho tem como destinatário o povo de nossas Comunidades. Foi elaborado a partir das perguntas, sempre constantes, feitas pelo povo nos diversos “Cursos de Bíblia” que  tenho dirigido.
         É um trabalho despretensioso. Preocupei-me mais com o aspecto teológico- bíblico-pastoral nas explicações feitas. Não há nesse trabalho profundidade nas respostas dadas, apesar de ter sido feito com seriedade. O nosso povo, parece-me, não precisa de grandes aparatos críticos.
         “A explicação das coisas difíceis da Bíblia e a investigação científica do seu sentido literal-histórico, diz Carlos Mesters,  não constituem o objetivo principal da explicação da Bíblia ao povo, por mais necessárias e indispensáveis que sejam” (1) Também o padre Luiz Alonso Schökel, especialista em Sagradas Escrituras, coordenador da tradução da “Bíblia do Peregrino” (Paulus Ed.), não via necessidade de exegese científica para o nosso povo (2).  Por isso procuro explicar os temas com simplicidade.
         Isso não quer dizer que se devam dispensar como coisa ociosa os estudos científicos sobre a Bíblia. São instrumentos imprescindíveis para a exata compreensão dos textos. O que sublinho é que o presente trabalho não foi elaborado nessa linha, com finalidade crítica, mas didático-pastoral. Todavia não pude dispensar certo apoio de especialistas. Não só para dar autoridade ao trabalho, mas também para mostrar como caminham hoje os estudos bíblicos. O que não vale dizer que esse livro recolhe todas as opiniões da exegese contemporânea. Isso é impossível de se fazer e nem caberia no âmbito desse trabalho.
         Existem já um ou outro trabalho nessa linha, como, por exemplo, entre os mais conhecidos, os livros de D. Estêvão Bettencourt O.S.B (+ 2008) Para entender o Antigo Testamento (AGIR, 1958); Ciência e Fé na história dos primórdios (AGIR, 1954); Para entender os Evangelhos (AGIR). Há ainda conhecido livro de E. Galbiati-A. Piazza: Páginas difíceis da Bíblia (Edições Paulinas, 1959),  e muitos outros que aparecem hoje nos catálogos especializados das Editoras.
         As questões que proponho  nestas páginas são tratadas de maneira simples e objetivamente. Talvez possam ajudar nossas comunidades.
         O presente trabalho consta de três partes:
         Primeira parte: Perguntas gerais sobre a Bíblia
         Segunda parte: Perguntas sobre o Antigo Testamento
         Terceira parte: Perguntas sobre o Novo Testamento
         Outros temas  poderiam ter sido inseridos aqui , além desses que  apresento. Os temas que proponho aqui são os que me foram apresentados pelo povo nos inúmeros cursos de Bíblia que dirigi.
         Nas citações bíblicas dos livros sagrados uso o texto da Bíblia Sagrada,  Edição Pastoral (Paulus Ed. 1990).
         Que me desculpem os biblistas pelo trabalho que apresento publicamente. Fico sempre  aberto  às críticas.
         Não apresento novidade alguma aqui. Sou  apenas  um ceifador na roça de Deus e de outros;  aquele que recolhe os frutos, empacota-os e os distribui! É o povo de Deus que tem a sensibilidade de interpretar a Palavra de Deus, à luz da fé, do Magistério, da comunidade e da vida. Por isso mesmo, considero mui sábias as palavras de velho professor no Pontifício Instituto Bíblico de Roma que dizia aos alunos: “Entende-se melhor o Evangelho lendo-o tranquilamente na hora do descanso do que nos comentários exegéticos dos biblistas” (Prof. Neudecker).


(1)     C. MESTERS, Por trás das palavras. Petrópolis: Vozes, 1975, p. 85
(2)     L. A. SCHÖKEL, Será necessária a exegese? In: Concilium 70, 1971, p. 1199-1205




         A Bíblia não é livro escrito por uma pessoa, mas por muitas. Ela não trata de um assunto, mas de muitos. Tudo o que interessa ao homem interessa à Bíblia. É o livro das experiências do homem. Não foi escrito de uma vez, mas aos poucos e em etapas; começa com as tradições orais, que são passadas de pais para filhos, até se firmarem em documentos escritos.
         O homem sempre refletiu sobre a vida e sobre Deus. A Bíblia quer ser resposta a esses problemas existenciais. Respostas iluminadas pela fé. As pessoas viviam essas experiências, discutiam tais experiências, que depois de muito tempo foram escritas, O ponto de partida era sempre Deus. Ele é o ator principal. Deus falava pelas pessoas, pelo povo, pela experiência, pela fé. O conjunto dessas experiências escritas forma o que chamamos hoje Bíblia. Os autores da Bíblia, portanto, são muitos, ou também podemos dizer, é um, coletivo, o povo. Como diz Fr. Carlos Mesters, “a Bíblia é resultado final de longa caminhada, fruto da ação de Deus que quer o bem dos homens, e do esforço dos homens que querem conhecer e praticar a vontade de Deus. Ou seja, a Bíblia é o fruto de mutirão prolongado do povo...”[1]

Quando foi escrita a Bíblia?

         Como é livro das experiências humanas à luz da fé, ela levou muito tempo para ser escrita; ou melhor, para serem postas por escrito todas aquelas experiências levou muito tempo.
         Os estudos de hoje mostram que a Bíblia começa a ser escrita a partir do século IX antes de Cristo. E o último livro da Bíblia, do Antigo Testamento, a ser escrito foi o livro da Sabedoria, aí pelo ano 50 antes de Cristo. No Novo Testamento o último livro escrito foi o Apocalipse de S. João, entre os anos 95-96. Portanto, a Bíblia não foi escrita num fôlego e num determinado tempo, numa data. Foi escrita lentamente, teve longa gestação, muito bem preparada por Deus.

Por que se chama Bíblia?

         Quando nós falamos em livro hoje, pensamos num volume mais ou menos grosso e independente. Nesse sentido, a Bíblia é também um livro. Como, porém, ela trata de muitos assuntos, conforme foi lembrado, cada um desses assuntos tratados, experimentados, vividos, escritos, constitui um “livro”. A Bíblia trata de história, de sabedoria popular, de oração, de poesia, faz reflexões sérias sobre a vida etc. Cada assunto desses constitui geralmente um livro bíblico específico. Desse modo, há na Bíblia muitos livros. Ela é uma coleção de livros, é um “livro de livros”. A palavra “Bíblia” na língua grega significa exatamente “livros”. Como a Bíblia é um conjunto de livros passou-se a designá-la com esse nome grego. Esse nome tornou-se específico da Sagrada Escritura. Hoje, quando se diz “Bíblia” se entende todo esse conjunto de livros sagrados.

Onde nasceu a Bíblia?

         Dizemos que a Bíblia é a Palavra de Deus e que por isso ela é sagrada. Por que é chamada “Palavra de Deus”? Quando foi que Deus falou?
         Vamos tentar responder partindo de ponto concreto: a criação, o mundo que vemos. Tudo isso foi criado, não apareceu por si, pelo acaso. As coisas criadas são o modo de falar de Deus. Deus é pessoa e pessoa se comunica. A comunicação de Deus é a criação. Tudo o que foi criado é linguagem de Deus, diz S. Paulo (Rm 1,19-20). Deus continua criando e conservando o cosmo. Ou seja,  Deus continua falando para nós através das coisas e das pessoas.
         A Bíblia é o livro onde o homem guardou essa voz de Deus; é o livro onde o homem interpreta o que a voz de Deus quer falar-lhe com a criação do mundo e do próprio homem. E Deus quer falar com a beleza do mundo que ele ama o homem, que ele é Pai, é amigo e quer- nos bem. Isso tudo o homem deduziu meditando nas coisas criadas, iluminado pelo próprio Deus. Desse modo, o livro onde o homem registrou toda essa experiência com Deus se torna livro sagrado, ou seja, livro onde Deus continua falando; a Bíblia é, pois, a voz de Deus, e por isso é livro sagrado.
         Esse livro, a Bíblia como Palavra de Deus, nasceu com o próprio homem, pois Deus falou sempre para o homem. Todavia começou a ser entendida como voz de Deus a partir de Abraão (aproximadamente 1850 antes de Cristo). Abraão teve grande experiência religiosa, diz Gn 12,1-9. E a experiência foi exatamente essa: ele entendeu que Deus lhe falava pelos acontecimentos. E sua vida mudou completamente. Com sua vida, com a vida de seus filhos e netos, começam a tomar corpo as tradições e as experiências religiosas que mais tarde serão escritas e constituirão parte fundamental da Bíblia. A essas experiências dos patriarcas serão acrescentadas depois todas as experiências do povo de Deus, descendente de Abraão. A Bíblia nasceu com a experiência de Abraão e desenvolveu-se com a história do Povo de Deus — principalmente com a experiência do êxodo. Como livro escrito concretiza-se bem mais tarde.

        
Como livro, a Bíblia é um só e grosso volume. Foi dito acima que ela se compõe de pequenos “livros”, isto é, de vários escritos que tratam de diversos temas. Cada tema tratado e escrito constitui um “livro”. Desse modo, somando todos os temas escritos, temos na Bíblia 73 livros. A Bíblia é então uma pequena biblioteca. Todo escrito bíblico, mesmo o de poucas páginas, é chamado “livro”. Você pode ver em sua Bíblia que há livros maiores e menores. Por exemplo, o livro do profeta Abdias é pequenino, tem só uma folha! E é chamado “1ivro”, isto é, mensagem do profeta Abdias; no Novo Testamento a carta de S. Judas e a  segunda e terceira de S. João têm também  só uma página – e são consideradas “livros” bíblicos.
         Embora sejam 73 os livros da Bíblia, não tratam eles de 73 assuntos ou temas diferentes. Muitos escritores trataram do mesmo assunto. Por exemplo, os profetas. Eles são muitos na Bíblia; e a mensagem de cada um deles é considerada um livro, embora eles façam basicamente a mesma reflexão crítica sobre a vida, o comportamento e a religião do povo.

        
De modo geral ela trata de todos os assuntos que interessam à vida do homem. Tudo o que é humano interessa à Bíblia. De tudo aquilo que o homem pode pensar, meditar, viver. Assim sendo, a Bíblia trata da História, trata da oração, da sabedoria popular, da religião, faz reflexão sobre os problemas humanos, existenciais, religiosos, sociais, políticos, econômicos, faz críticas, propõe soluções; fala dos grandes gestos de heroísmo e de amor das pessoas, como também fala das fraquezas, degradações, maldades e pecados  da humanidade. Sobre tudo isso reflete-se à luz da experiência com Deus. Enfim, a Bíblia é livro vivo e  sempre atual  porque fala do homem e de Deus.
         Você pode ler em sua Bíblia um pouco disso tudo. Por exemplo, você pode ler sobre a história do povo judeu nos livros de Josué, dos Juízes, de Samuel, dos Reis e das Crônicas. Você pode rezar com a Bíblia usando o livro dos Salmos; pode refletir sobre a vida lendo os livros  do Gênesis, Provérbios,  Eclesiástico,[2] o Eclesiastes, o livro da Sabedoria, os livros dos profetas.

         A Bíblia se divide em duas grandes partes: Antigo Testamento e Novo Testamento.
         Por Antigo Testamento se entende tudo o que aconteceu, tudo sobre o que se refletiu, meditou e escreveu antes de Cristo; por Novo Testamento se entende tudo o que foi escrito sobre o que Jesus falou e fez, bem como tudo o que os apóstolos (e evangelistas) deixaram escrito. Você pode conferir essas duas divisões na sua Bíblia.
         No Antigo Testamento estão os livros da História do Povo hebreu, os livros de suas reflexões sobre a vida, sua oração, e as mensagens de seus profetas. No Novo Testamento estão os Evangelhos (que tratam da mensagem de Jesus, suas palavras e ações), os Atos dos Apóstolos (que narram a vida da Igreja primitiva), as cartas dos apóstolos (que são escritos teológicos, de orientação e formação) e o Apocalipse (que é um livro de reflexão sobre a História da humanidade, na qual o  homem está situado e sempre  em tensão entre o bem e o mal).
         Além dessa primeira divisão, a Bíblia se divide internamente em capítulos e versículos. Isso foi feito para facilitar sua leitura, pois do contrário seria quase impossível achar uma determinada passagem num livro tão grande como a Bíblia. Cada livro da Bíblia está dividido em capítulos e versículos. O capítulo designa um assunto tratado ou um pensamento desenvolvido; tal divisão, porém, nem sempre é muito lógica. O versículo é geralmente uma frase completa; quer dizer: pequeno verso. Tanto os capítulos como os versículos são designados por números. Os capítulos são designados por números grandes e os versículos por números pequenos. Sempre numa ordem crescente. Quando acaba um capítulo, acabam também os versículos. Veja isso na sua Bíblia, em qualquer parte dela.
         É fácil agora, para você, encontrar uma passagem na Bíblia. Procure, por ex., no Evangelho de Mateus o capítulo 5, versículo 13.
         Os livros da Bíblia têm todos uma abreviatura, para não se precisar escrever por inteiro os seus nomes, toda vez que se vai citá-los. Confira isso no começo de sua Bíblia. Há umas pequenas diferenças entre umas Bíblias e outras. Aqui nesse livrinho usamos as abreviaturas usadas pela maioria das edições da Bíblia no Brasil. Veja a lista à pág. 3.
         Para se fazer a citação de determinada passagem de um livro da Bíblia, deve-se colocar primeiramente o nome do livro (abreviado, como está na Bíblia), e logo em seguida o número do capítulo e depois o versículo. Por ex., para citar a passagem do evangelho de Mateus, no capítulo 5, versículo 13, basta escrever: Mt 5,13. A vírgula separa sempre o capítulo do versículo. Outros exemplos: Mc 3,35; Lc 11,28; Jo 6,51.
         E quando se quiser citar mais de um versículo, deve-se colocar um tracinho (-) entre um versículo e outro. Por ex., para citar o evangelho de S. João, capítulo 6, do versículo 51 ao versículo 58, não é preciso escrever tudo isso por extenso. Basta escrever: Jo 6,51-58. O tracinho já significa que o texto deve ser lido do v. 51 até o 58 inclusive.
         Finalmente: quando se quiser citar versículos separados (saltando alguns), basta colocar um ponto depois do versículo. Assim, por ex.,   Jo 6,51.57-58 quer dizer: evangelho de  S. João, capítulo 6, versículo 51 só, e mais os versículos 57 e 58. Saltam-se os versículos 52-56.
        
         Não existe uma Bíblia católica e outra protestante. A Bíblia católica e a Bíblia protestante são iguais como Palavra de Deus acolhida pelo homem. Você deve respeitar uma Bíblia protestante do mesmo modo como respeita a católica. Assim também os protestantes. Nem se deveria dizer que há uma Bíblia católica e outra protestante, se elas são de fato uma e mesma Palavra de Deus.
         O que há de diferente entre uma e outra?
         A única diferença é quanto ao número de livros de cada uma dessas Bíblias. Mais atrás falamos que a Bíblia tem 73 livros. Esse é o número de livros da Bíblia chamada católica, porque a protestante tem 7 livros a menos. A Bíblia protestante não tem os seguintes livros: Judite, Tobias, 1° Macabeus, 2° Macabeus, Baruc, Eclesiástico[3] e Sabedoria. Também não tem  pequenos trechos dos livros de Ester (10,4—16,24)  e de Daniel (13—
14). Confira na sua Bíblia esses livros e risque embaixo do nome de cada um deles. São os que faltam na Bíblia protestante. Portanto, se você quiser saber se uma Bíblia é “protestante” ou “católica” (como se diz) basta lembrar-se de um desses livros citados acima e procurá-lo nessa Bíblia. Se ele faltar, essa Bíblia não é  “católica”.
         E por que essa diferença?
         Pelo seguinte: os judeus mais antigos dividiam os livros do
Antigo Testamento em três grupos distintos: 
1) Os cinco livros da Lei -  que eles chamavam de Torá (= lei, ensinamento.Também chamados, depois,Pentateuco)
 2) Os livros dos Profetas, chamados por eles Nebiim (= profetas).
 3) Os Outros escritos, chamados por eles Ketubim (= escritos).
         Os profetas eram divididos em dois grupos: antigos profetas
(Josué, Juízes, Samuel e Reis),  e profetas posteriores (Isaías, Jeremias e Ezequiel); e mais os 12 profetas “menores” (Oséias, Joel, Amós, Abdias, Jonas, Miquéias, Naum, Habacuc, Sofonias, Ageu, Zacarias e Malaquias); esses formavam, juntos, um livro só, chamado por eles de “Os Doze Profetas”.
         Os “Outros escritos” compreendiam os livros dos Salmos, de Jó, dos Provérbios, os livros de Rute, Cântico dos Cânticos, Eclesiastes, Lamentações, Ester, Daniel, Esdras e Crônicas. Um total de 11 livros.
         Segundo tal divisão, a Bíblia hebraica antiga tinha 24 livros.
Mais tarde, porém, os próprios judeus subdividiram os livros de Samuel em dois
(= 1 e 2 Sm), o dos Reis também em dois (= 1 e 2 Rs), o das Crônicas também (= 1 e 2 Cr) e o de Esdras (= Esdras e Neemias); como também adotaram cada escrito profético como livro independente. Assim, a Bíblia Hebraica passa a ter 39 livros.
         Essa Bíblia hebraica passa a ser considerada a Bíblia original; seus livros são chamados “protocanônicos”, isto é, livros aceitos de início e sem nenhuma discussão (proto= primeiro; canônico= lista). Os protestantes adotam essa Bíblia hebraica como a única. Nela não constam os 7 livros que citamos acima.
         E por que não constam?
Porque foram aceitos como inspirados bem mais tarde. Esses sete livros vão constar  mais tarde, na primeira tradução da Bíblia hebraica para a língua grega. São chamados então “deuterocanônicos”, isto é, livros que foram aceitos como inspirados bem mais tarde, em segundo lugar, numa segunda lista (deutero = segundo; canônico = lista). Essa segunda lista constitui o que se chama Bíblia grega, ou Bíblia dos Setenta. Essa Bíblia  tem uma história.
         Quando os judeus começaram a emigrar para outros países, deportados pelo imperador Alexandre Magno, ou mais tarde,  quando foram perseguidos por Antíoco Epífanes (175-163aC.), levaram consigo a Bíblia. Tais imigrantes chegaram a formar uma grande colônia no norte da África, numa cidade chamada Alexandria. O grupo cresceu muito e dentro de algum tempo formou uma comunidade de quase um milhão de pessoas! Nessa cidade de Alexandria, como em grande parte do Império, falava-se a língua grega. Foi preciso, então, traduzir a Bíblia hebraica para a língua grega para que os descendentes dos judeus pudessem entendê-la uma vez que não sabiam mais a língua dos seus antepassados.
         Por esta ocasião, quando foi feita a tradução da Biblia hebraica para a língua grega, entre 245-250 aC,  foram acrescentados nessa nova Bíblia outros livros, considerados por muitas tribos como inspirados; livros que eram usados há longos anos; que eram considerados também “Palavra de Deus” embora não constassem na relação oficial dos livros inspirados. Esses livros são os sete de que falamos acima. Desse modo a Bíblia grega (que é a tradução da Bíblia hebraica) tem sete livros a mais. Os católicos adotam a Bíblia grega, que contém todos os livros considerados como inspirados, tanto os chamados “protacanônicos” como os deutero-canônicos”. Como os protestantes adotam somente a Bíblia hebraica, é claro então que a Bíblia deles tem 7 livros a menos.
         Hoje em dia, porém, essa diferença tende a acabar. Algumas editoras protestantes estão colocando todos os livros da Bíblia grega nas suas edições, observando, porém, que eles não fazem parte da Bíblia hebraica. Somente algumas seitas mais radicais e fundamentalistas dentro do protestantismo rejeitam tais livros e conservam a divisão. Elas não representam, porém, o verdadeiro protestantismo. A Palavra de Deus é uma e a mesma para nós, cristãos. A diferença, pois, entre a Bíblia católica e a protestante é apenas histórica.
         Em 2006 a Paulinas Editora (católica), a Sociedade Bíblica do Brasil e  as Sociedades Biblicas Unidas (protestantes)  publicaram em parceria  uma Bíblia integral  para uso dos católicos e dos evangélicos. Chama-se “Bíblia Sagrada – Nova Tradução na Linguagem de Hoje”.


         A Bíblia foi escrita há muito tempo, numa língua muito diferente da nossa; os escritores bíblicos usam modos de falar, comparações, e falam de costumes diferentes dos nossos. A Bíblia foi escrita dentro de outra mentalidade. Por isso é que para se entender a Bíblia, ou para falar sobre ela, é preciso estudar um pouco. Não é preciso ser doutor ou especialista em Bíblia; há, porém, um mínimo de aprendizado necessário para se poder falar sobre ela. Daí a importância e utilidade dos cursos sobre a Bíblia, das aulas e palestras bíblicas. Quando não se pode participar desse tipo de estudo, deve-se pedir explicações a quem estudou e entende do assunto. Do contrário a pessoa acaba não entendendo o que a Bíblia diz, ou entendendo do seu jeito, confundindo-se demais. E se  falar sobre a Bíblia sem entender, certamente vai falar tolices.
         Podemos  não entender certas coisas na Bíblia, mas não  podemos dizer que é difícil entendê-la. Você pode ler a Palavra de Deus e entendê-la perfeitamente, porque Deus fala com simplicidade, ilumina nosso entendimento e toca o nosso coração quando lemos a sua Palavra. Podemos tirar grandes frutos de sabedoria lendo todo dia a Bíblia. Há de fato alguns costumes, modos de viver, gênero literário, expressões próprias, que ninguém é obrigado a entender. Para isso existem os especialistas, os estudiosos, os professores de Bíblia, que nos ajudam. Tentar explicar a Bíblia por si mesmo é muitas vezes perigoso. A pessoa pode dizer e até fazer coisas contrárias à Palavra de Deus. Por isso as Bíblias católicas trazem sempre uma Introdução geral nas primeiras páginas; depois fazem uma introdução para cada livro ou cada grupo de livros e trazem ainda muitas explicações ao pé das páginas. Isso ajuda bastante.
         Afora isso, há sempre cursos bíblicos e palestras  em todas as comunidades, como foi lembrado. Se você quiser entender cada vez mais a Palavra de Deus não deixe de participar e até de promover esses cursos, palestras e semanas bíblicas  para o seu grupo, para sua comunidade.
         Um meio ótimo para aprofundar o conhecimento e a vivência da Palavra de Deus são os chamados  Círculos Bíblicos. Você pode fundar um “Círculo bíblico” na sua casa, na sua rua, na sua comunidade. É uma reunião bíblica semanal. Dela pode participar quem quiser: famílias, jovens, homens, mulheres. Existe muito material bíblico apropriado para esses círculos e estudos. São publicados pelas editoras católicas. A Paulus Editora, por ex., tem muito material de fácil compreensão, além de livros especiais para as comunidades, como a Coleção “Como Ler”; outras editoras católicas e grupos como o CEBI e o SAB, que  são centros de estudos bíblicos e de animação bíblica, publicam excelentes trabalhos e de fácil compreensão.  Partindo da Palavra de Deus, a reflexão mergulha na vida e leva à prática.
         Finalmente, se você quiser aprofundar mais ainda no estudo da Palavra de Deus, existem muitos livros especializados e fáceis de serem estudados. Você pode pedir orientação às Editoras católicas (catálogos, sites)  ou a  um sacerdote,  uma  boa livraria católica.  Há muita coisa boa.




    (Gn 1,1-31)

         Antigamente a narração bíblica sobre a criação do mundo e do homem não oferecia nenhum problema;  os antigos consideravam como realmente históricos os acontecimentos narrados em Gn 1-11. Na Idade Média, a narração da criação segundo o livro do Gênesis foi considerada alegórica, simbólica,  de modo geral. Hoje em dia, porém, a ciência levanta dificuldades quanto à historicidade da narração e mostra que muitas afirmações bíblicas são anticientíficas, como por exemplo, as afirmações  bíblicas de que  “houve uma tarde e uma manhã”,  que “a luz começou a existir” e “a terra produziu  relva, ervas que produzem semente...”. Tudo isso foi feito, diz a Bíblia,  antes do aparecimento do sol (Gn 1,11-18). E é sabido que existem dia e noite por causa do sol e que  plantas e sementes precisam do sol. Nesse aspecto , a visão bíblica e a visão científica são até opostas.
         Uma outra observação: segundo a Bíblia  a criação foi obra perfeita: “Deus viu que a luz era boa”; “E Deus viu que era bom”.(Gn 1, 4.10.12.18.21.25.31). Em Gn 1,31 é dito que  “Deus viu tudo o que havia feito, e tudo era muito bom”. Ainda: para a Bíblia o homem aparece já  feito, perfeito e  feliz. O que estragou esse estado de perfeição foi o pecado,
segundo Gn 3.
          Segundo a ciência, porém, a perfeição não é própria das origens; na origem há imperfeição, e a perfeição é alcançada através de uma evolução natural. Daí, a perfeição a que se refere a Bíblia só pode ter sido alcançada mais tarde.
         Hoje o relato bíblico sobre as origens não é mais aceito, incondicionalmente, como documento histórico. Isso não é heresia. A narração bíblica passou pela crítica científica, exegética, histórica e literária; temos hoje bem clara e bem definida a intenção do autor ao escrever isso. Hoje temos a síntese. Antigamente toda a narração era considerada histórica; na Idade Média, alegórica. Hoje sabemos que é narração essencialmente teológica, baseada nas tradições do povo, na cultura do Antigo Oriente e principalmente na fé.
         Há, porém, muitos que apressadamente julgam ainda a narração bíblica de ontem com os critérios científicos de hoje. E atribuem
à Bíblia erros que ela não comete, pois ela não faz ciência, mas
teologia. Desconhecer isso e julgar o autor bíblico como escritor  anticientífico, é cometer erro maior do que aquele que se atribui a ele.
         Hoje sabemos também, provadamente, que a narração bíblica sobre as origens do mundo e do homem não é relato religioso único e específico do povo hebreu. Tal tipo de relato faz parte dos escritos religiosos de muitos povos,  inseridos no contexto cultural-religioso do Antigo Oriente. Tais escritos religiosos usam forma literária específica comum, onde entram o simbolismo, as imagens, as concepções populares, a intenção do autor, a cultura lo tempo etc. Por exemplo, o povo da antiga Babilônia (hoje Iraque) tinha escritos religiosos sobre a criação do mundo, do homem; escritos que falam  de uma “culpa” do homem, do diluvio, da arca, de um “Noé”. Esses escritos foram encontrados traduzidos e estão publicados,  também em português.
         Nesse contexto cultural e também histórico é que podemos inserir o relato do Gênesis sobre a criação do mundo em seis dias e o “descanso” de Deus no sétimo (Gn 1,1-2,3).    
         Se você ler com atenção os dois primeiros capítulos do Gênesis, perceberá que a criação é narrada duas vezes. A primeira em Gn 1,1— 2,4a, e a segunda em Gn 2,4b-25. (O versículo quatro do capítulo dois é o final da primeira narração sobre a criação e também o começo da segunda. Por isso ele é dividido pelos estudiosos em 4a e 4b, porque fala de coisas diferentes).
         A primeira narração é longa, solene, minuciosa. A segunda, é simples, breve, concisa. As duas falam da criação do mundo, do homem e do paraíso.
         Por que duas narrações?
         Porque foram feitas em épocas diferentes, por pessoas diferentes, com intenções diferentes, e que foram mais tarde juntadas numa narração só porque se completavam. A primeira narração (Gn 1,1- 2,4a) foi escrita por um grupo de sacerdotes, e a segunda (Gn 2,4b-25) foi escrita por gente do povo. Quando o povo voltou do exílio da Babilônia (539 aC), essas duas narrações foram juntadas e formaram a atual narrativa sobre a criação.  [ O livro de Neemias diz no capítulo 8 que o sacerdote Esdras leu opara o povo a Lei de Deus, ao voltar do exílio. Não era, porém,  a Bíblia como a temos hoje. A Lei que foi lida por Esdras para seu povo era a chamada “Lei do Deuteronômio” que vai do capítulo 12 ao 26 desse livro].
         A intenção de cada grupo ao escrever a história da criação era diferente. O relato sobre a criação em seis dias e o “descanso” de Deus faz parte da narração do primeiro grupo, o sacerdotal. A intenção dos sacerdotes era, naturalmente, religiosa e litúrgica.  Por que?
         Os sacerdotes escreveram esse relato no tempo em que os hebreus estavam exilados na Babilônia (587-539 a.C). A situação do exílio influenciava muito a vida de todos: o povo  estava fora da pátria, sem rei, sem sacerdote, sem templo, diante de muitos ídolos e sofrendo pressão para abandonar a própria fé e aderir ao deus Marduc, que era o deus de Babilônia. Como manter a fé, a vida religiosa, em tal situação? Quem era mais poderoso: Marduc, o deus de Babilônia  que vencera o povo hebreu,  ou Javé, o Deus libertador desse  povo vencido? Que libertação era essa?
         Diante desse estado de ambiguidade e de desânimo é que aparece a narração sacerdotal que temos em Gn 1,1-2,4a. Aparece com a finalidade religiosa específica: sustentar a fé do povo, dar sentido à vida, dar esperanças de retorno.
         Os sacerdotes partem de um princípio: Israel recebeu as promessas de Deus em Abraão e com os patriarcas e tem a herança do passado. Se está agora exilado, é porque se esqueceu de Deus. Se voltar para Deus e permanecer fiel a ele, tudo será reconstruído: haverá nação, rei, templo e sacerdote, pois o povo é e será sempre a herança do Senhor (cf. Sl 16,5; 28,9;  47,4; 78,71; 10,16 etc.).
         Em seguida os sacerdotes ensinam que para manter a fidelidade a Deus e continuar sendo sua herança, o povo deve evitar o culto dos ídolos, a religião de Babilônia e manifestar essa fidelidade através do culto verdadeiro. É narrativa com finalidade anti-idolátrica.
         Como celebrar o culto verdadeiro e participar da vida religiosa se não existia o Templo?
         Para responder a essa indagação do povo, os sacerdotes montaram o esquema da criação em seis dias colocando um “descanso” para Deus no sétimo. A intenção deles não foi científica, nem quiseram afirmar que o mundo foi feito em seis dias de 24 horas e nem em seis períodos de tempo. A intenção deles foi religiosa: fundamentar o sétimo dia como dia de descanso e culto. Se Deus “descansara” no sétimo dia, também o povo deveria descansar nesse dia (o sábado); deveria reunir-se em comunidade, ouvir e estudar a Palavra de Deus e cultivar a fé, a própria identidade. O relato não é, pois, histórico, mas essencialmente teológico: o Deus todo- poderoso que tudo criou, é o mesmo que criou o povo de Israel. Ele conservará seu povo, até no exílio. O povo de Deus não desaparecerá. Voltará à sua pátria, ao seu Templo. E preciso, porém, desde agora, manter a fé e ser fiel a Javé.
O “descanso” de Deus não é, pois, repouso físico, mas um esquema literário para traduzir uma verdade teológica: a observância integral do sábado como “Dia do Senhor” e como meio de unir o povo e manter a fé.
         A criação do mundo em seis dias
vamos repetir é um esquema literário artificial, feito para desembocar no sábado (= sétimo dia). A ordem da criação é descrita pelo autor experimentalmente, isto é, conforme a observação do dia-a- dia. Ele não está interessado em discutir se as plantas devem existir antes ou depois do sol. Ele fala do que via experimentalmente -assim como também nós dizemos que o sol se levanta e se põe, que ele gira por sobre a terra, quando a ciência diz o contrário: é a terra que gira ao redor do sol. Com seu esquema o autor está apenas afirmando que foi Deus quem fez o sol e as plantas; ele fala da criação a partir da observação do dia- a-dia do povo, que achava que  para criar as coisas era preciso antes ter claridade, luz (Gn 1,3); fala que existem terra e água (1,6-10); que existem árvores, ervas, sementes (1,11-13); sol e lua, dia e noite (1,14-19); animais, aves, peixes (1,20- 26); e diz que o homem domina a natureza e os animais; que ele ama e gera filhos; e que o homem é um “carbono” de Deus (1,26-31). São, portanto, seis dias de criação. No sétimo, Deus descansou. O homem, “imagem de Deus”, deve descansar também, observar o sábado, celebrar o culto, guardar sua identidade religiosa.
         O esquema do autor sacerdotal não é, pois, científico, e sim artificial; sua intenção não é a de fazer ciência ou história, mas teologia.  Por isso não podemos ver  conflito entre ciência e fé,  criacionismo e evolucionismo.
         Por criacionismo se entende que tudo o que existe foi criado; e criado por Deus; que tudo teve origem. Onde? Quando? Como?  Essas perguntas, ou especificamente o “como” aconteceu a criação é questão para a ciência resolver [coisa que está tentando há muito tempo e que resultou na construção do Grande Acelerador de Partículas (LHC), recentemente, com a finalidade de ajudar a desvendar as leis básicas do universo. O objetivo principal dessa máquina será produzir uma partícula chamada bóson de Higgs, que por enquanto só existe na teoria. A ciência e a fé podem chegar a conclusões parecidas: a Particula da ciência não seria Deus? “No princípio era a Partícula...”. Essa Partícula é o que existia antes do antes] (cf. Revista VEJA especial, 25 de junho de 2008, p. 73-131).
         Por outro lado não se pode negar a possibilidade do evolucionismo. A Igreja o aceita, uma vez comprovado, e que tenha na sua matriz o ato criador de Deus, como “Causa transcendente que age de modo transcendente”, como diz a Teologia. Aliás, o autor bíblico já intuíra a evolução da natureza  e até se antecipara a ela ao descrever a criação com progressiva, em simbólicos seis dias. Deus não consumou a obra dos seres criados de uma só vez, mas lentamente, por desejar estar presente na história das criaturas (cf. Fr. Beto em “O São Paulo”, 10/3/ 2009, p.A5).
        

        
É uma das perguntas mais insistentes que se fazem.  E ela puxa outra: quem é que garante que eles formavam oprimeiro casal? Não haveria outros casais? Se formavam eles oprimeiro casal, com quem se casaram os filhos deles?
         A pergunta merece ser feita porque nem todos têm a possibilidade de estudar mais a fundo a Bíblia.
         Se a gente ficar pelo texto, a Bíblia estaria falando de um casal. Na realidade, porém, não está. A Bíblia está falando do Homem e da Mulher. É o jeito de o autor falar. No início, diz ele, Deus fez o homem e a mulher, ou seja: a raça humana teve um começo. E isso ninguém pode negar. Que o homem se chamasse Adão e a mulher Eva, isso é relativo, O autor do texto não está dando nomes próprios, mas coletivos. Entende-se facilmente quando as pessoas falam coisas concretas e práticas. É o que faz o autor. Em vez de falar “um prineiro homem, uma primeira mulher”, ele usou dois nomes que não são nomes próprios, e sim nomes simbólicos: Adão e Eva.  Por que?
Na língua hebraica esses nomes têm significado próprio e calhavam bem com a intenção do autor. Adão (em hebraico adam) significa  “terra”, (adamah), aquele que vem da terra, homem (como em português: homem=húmus). Eva (em hebraico hawwah) significa  “vida”,  aquela que dá vida. O autor designa então com muita propriedade o primeiro casal como Adão e Eva, querendo dizer: o homem é criado, terreno, material (= Adão); a mulher é terrena, material, criada e geradora da vida (= Eva). A vida criada por Deus vem da terra!  Os nomes designam então todo homem, toda mulher e não só o primeiro casal. Portanto, Adão e Eva existiram como existem hoje o homem e a mulher; não necessariamente como nomes próprios. Numa palavra: o texto ensina que o homem e a mulher tiveram começo e foram criados por Deus.

         A formação do homem e da mulher é relatada na Bíblia não no estilo de reportagem jornalística, e sim no estilo de reflexão popular.
         A criação do homem vem narrada na Bíblia duas vezes e de modos diferentes (Gn 1,26-27 e 2, 7); a criação da mulher está em Gn 2,21-22.
         Gn 1,26-27: “Então Deus disse: ‘Façamos o Homem à nossa imagem e semelhança. Domine ele sobre os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todas as feras e todos os répteis que rastejam sobre a terra. E Deus criou o Homem à sua imagem; à imagem de Deus Ele o criou; e os criou homem e mulher.”.
         Gn 2,7: “Então, Javé Deus modelou o homem com a argila do solo, soprou-lhe nas narinas um sopro de vida, e o homem tornou-se um ser vivente.”
         Gn 2,21-22: “Então Javé Deus fez cair um torpor sobre o homem, e ele dormiu. Tomou então uma costela do homem e no lugar fez crescer carne.  Depois, da costela que tinha tirado do homem , Javé Deus modelou uma mulher, e apresentou-a para o homem”

        
A primeira narração afirma a dignidade do ser humano, seu aspecto espiritual, sua liberdade:  ele é imagem e semelhança de Deus, isto é, ele corresponde ao modelo divino. Ele é imagem, pode relacionar-se com Deus, falar-lhe, ouvir-lhe a voz e até resistir-1he.
Essa primeira narração, dizem os especialistas, foi feita por um grupo de sacerdotes. Os sacerdotes salientam naturalmente a dimensão espiritual.
          A segunda narração vem do povo. O povo é mais concreto, e a narração salienta, então, o aspecto físico, corporal, aquilo que se percebe.
         E o que é que se percebe no dia-a-dia do homem?
         Percebe-se que o homem, além de suas capacidades intelectuais e espirituais, além de sua liberdade, traz em si a força da terrenidade:
ele é terreno, limitado, frágil, pecador, sujeito à dor, à morte. Desse modo, o redator do pensamento popular compôs sua narração usando uma comparação muito conhecida no seu tempo, a do oleiro: Deus também modela o homem, como o oleiro molda o tijolo, o vaso de cerâmica; o homem é criatura de suas mãos, é feito de barro. Com isso o autor não descreve o modo como o homem foi feito, mas sim chama a atenção para sua fragilidade e sua dependência de Deus. “Formar o homem do barro”, não é pois ensinamento científico da Bíblia, e sim teológico, isto é, ela ensina que o homem vem de Deus, depende de Deus, é pecador, fraco e limitado.
É como vaso de barro que se quebra facilmente.
         A formação da mulher é ensinada também dentro desse esquema literário de sabedoria popular (Gn 2,21-22). É escrito mais teológico do que científico. Fundamentalmente a narração quer mostrar que o homem e a mulher são iguais (Gn 5,2, chama ambos de “homem” = ser humano),  que entre eles há uma atração fundamental de complementação; que essa atração os  leva à aproximação, ao amor e ao casamento monogâmico.
         Essa atração profunda e misteriosa, o autor a observa no dia-a-dia como podemos nós observá-la hoje também. E ele traduz isso na sua narração pela expressão: “tirar da costela”. A mulher, de fato, não foi tirada da costela do homem, mas foi criada, como o homem, por Deus. Por isso são iguais. O livro do Gênesis acentua essa igualdade entre os dois com a expressão: “osso dos meus ossos, carne de minha carne” (Gn 2,23).
         O autor relata ainda o sono de Adão, durante o qual Deus realizou a aparente “operação”. Mas Deus não fez cirurgia nenhuma. Volta aqui a intenção do autor: ele não é cientista, mas teólogo.
         Para os antigos, a obra da criação era algo misterioso, só conhecido por Deus. Assim fala, p. ex., o Salmo 139,13.15: “Sim! Pois tu formaste meus rins, tu me teceste no seio materno... e meus ossos  não te eram escondidos. Quando eu era formado, em segredo,  tecido na terra mais profunda.”
        
O homem, segundo a narração, não tinha capacidade para conhecer a criação. Por isso ele dorme quando Deus cria a mulher, sua companheira.
Discutir se o homem foi feito ou não de barro ou se a mulher foi ou não tirada mesmo da costela de Adão, é discussão sem sentido, porque está fora da intenção do autor. Ele não ensina isso; faz apenas uma observação teológica, e para isso usa comparações populares do seu
tempo. Ficar nas comparações e esquecer a intenção do autor é ficar na casca e esquecer o miolo do texto. 

               (Gn 3)

         Esses elementos estão no capítulo 3 de Gênesis. Esse capítulo está ligado ao capítulo 2,4b-25, onde vem narrada a criação do paraiso, como projeto de Deus para a felicidade do ser humano. Numa linguagem figurada o autor descreve um estado de  felicidade permanente.
         Agora, em Gn 3,1-24 vem narrada a experiência que o homem e a mulher fizeram, experiência chamada  pecado, e suas consequências.  É a passagem do estado de felicidade (paraiso, vida) para o estado de infelicidade (tentação, sofrimento, morte). A narração é literária, o conteúdo é histórico, e gênero literário (modo de narrar) é simbólico.
         O pano de fundo para as respostas sobre os primeiros capítulos do Gênesis é sempre o gênero literário usado pelos autores para relatarem suas reflexões. Gênero literário é o modo de apresentar um pensamento ou mensagem sob determinada forma literária. O gênero literário usa certos recursos, certa técnica, p. ex., comparações, alegorias, imagens etc.  que possam traduzir melhor a idéia que o autor quer transmitir. Cada ciência ou cada disciplina tem seu gênero literário específico. “Conhecer o gênero literário de uma obra diz o Pe. Benoit é ter nas mãos a chave que nos possibilita entendê-la”.[4] Assim acontece na Bíblia. Há um gênero literário específico: o religioso; e dentro desse gênero literário específico, religioso, cada autor escolheu a forma que no seu tempo melhor lhe servia para transmitir a sua idéia.
         O Gênesis usa muito a simbologia, o jogo de palavras; emprega imagens conhecidas pelo povo; usa elementos tirados da cultura religiosa judaica, da mesopotâmica, da cananaica etc. De tudo isso se serviu, p. ex., o autor do relato sobre a queda do homem (Gn 3) para refletir com seu povo sobre a existência do mal no mundo.
         E os elementos simbólicos presentes no seu relato, nesse capítulo 3,  são muitos: a serpente, as árvores do jardim, o fruto da árvore, as folhas de figueira, o rumor dos passos de Deus, a hora da brisa, o esconder do homem, os diálogos (Deus/homem, Deus/serpente), as maldições (à serpente, à mulher, ao homem), as vestes para o casal, a expulsão do paraíso e os querubins (anjos) que guardam com espada desembainhada a entrada do paraíso.[5]
         O autor não tem a intenção de explicar a origem do mal. Ele não sabe a origem, como nós também não sabemos. Sabe apenas, como nós também o sabemos, que o mal existe porque tanto ele como nós mesmos o praticamos e temos dele experiência.
         Todo homem pergunta a respeito da origem do mal. Por que existe o mal? Por que não existe só o bem?
         As religiões e culturas antigas procuraram dar uma resposta, criando suas lendas religiosas, seus mitos etiológicos (isto é, histórias que explicavam a origem de alguma crença comum). Assim o fizeram, p. ex., os gregos, os romanos, os egípcios, os nossos índios. O homem bíblico também refletiu sobre esse problema existencial e deixou sua reflexão por escrito, através de um gênero literário carregado de imagens e de simbolos. Sua reflexão não parte de cima para baixo, mas de baixo para cima, isto é, ele não explica por que existe o mal hoje, não identifica sua origem; ao contrário: ele diz que se existe o mal hoje é porque ele teve origem, perdida nos tempos; diz que há no homem alguma coisa de radical oposição ao bem, que exige uma causa primeira, uma origem. Ele simplesmente constata com seu texto que há um mal de origem, ou como dizemos, um “pecado original”.
         Diante desta constatação, o autor se dispõe a atacar pela raiz o mal capital que existia no seu tempo, que seduzia e comprometia o seu povo: a tentação pelos ídolos. Essa tentação e esse pecado constituíam a causa de tantos outros males. Depois de constatar isso, o autor aponta uma saída: é preciso lutar contra essa sedução do mal que está dentro de cada um, para se conseguir retornar ao paraíso (= uma terra sem males, uma sociedade justa e fraterna).
         Para transmitir essa reflexão, o autor usa uma história; a história é verdadeira: o mal existe e entrou no mundo através do próprio homem. Os elementos que usa para ilustrar essa história, porém, são simbólicos, isto é, são indicadores da verdade que ele quer transmitir; são eles a exteriorização, a expressão dessa verdade. Podemos, então, ver alguns.
         a)A árvore. São citados dois tipos de árvore em Gn 3: a árvore do conhecimento do bem e do mal (v. 5) e a árvore da vida (vv. 3 e 22).
         Em Gn 2,16-17 são lembradas todas as árvores do paraíso e a árvore do conhecimento do bem e do mal.
         Conforme o texto, o homem podia comer de todas as árvores,
exceto da árvore do conhecimento do bem e do mal. Nesse dia morreria (Gên 2,16—17).
         O que significa isso?
         “Comer de todas as árvores” é símbolo denso de significado. Na Bíblia, a Sabedoria e a Lei de Deus são comparadas a uma árvore. Diz o livro dos Provérbios: “Ela é árvore de vida para os que a adquirem e são felizes aqueles que a conservam. (Pr 3, 18)
         Ter a sabedoria é ter a vida; ela ensina os caminhos para a vida.
         Por outro lado, a Lei de Deus é chamada na Bíblia “lei da vida”;
observar a Lei de Deus é então viver. Assim diz, p. ex., o salmo 118,93:
“Jamais vou esquecer os teus preceitos, pois é com eles que tu me fazes viver.”

         E diz ainda a Bíblia que o homem que cumpre a lei de Deus é semelhante a uma árvore viçosa plantada à beira das águas (Sl 1,1-3).
Daqui podemos concluir que o homem conhecerá o que é o bem e o que é o mal por meio da Lei de Deus: se ele observar a Lei de Deus
(= praticar o bem) será feliz, viverá; se não observar (= praticar o mal), será infeliz, morrerá.
         Essa experiência ele a tem no dia-a-dia. O livro do Deuteronômio lembra-o quando propõe a Aliança de Deus para o homem:

         “Veja: hoje eu estou colocando diante de você a vida e a felicidade, a morte e a desgraça” (Dt 30,15). Ainda diz o mesmo livro: “Hoje eu tomo o céu e a terra como testemunhas cntra vocês: eu lhe propus a vida ou a morte, a benção ou a maldição. Escolhe, portanto, a vida, para que você e seus descendentes possam viver, amando a Javé seu Deus, obedecendo-lhe a apegando-se a ele, porque ele é a sua vida e o prolongamento de seus dias. Desse modo você poderá habitar sobre a terra que Javé jurou dar a seus antepasssados Abraão, Isaac e Jacó” (Dt 30,19-20).

         Se a sabedoria e a Lei de Deus são comparadas na Bíblia a árvores, “comer destas árvores” significa ter sabedoria, observar a Lei de Deus, ser sábio, viver. O homem deve crer nisso, aceitar isso, pois é o próprio Deus quem lhe garante. Esse é, pois, o sentido da ordem de Deus de o homem poder comer de todas as árvores, inclusive da árvore da vida (Gn 2,16).
         Mas o homem não aceita facilmente o que Deus lhe ordena; não crê na sua Palavra. Quer ter a sua certeza, alcançar por si mesmo o conhecimento do bem e do mal seguindo seus próprios critérios, deixando de lado a Sabedoria e a Lei de Deus.
         Essa experiência, sempre amarga, a Bíblia a chama “comer da árvore do bem e do mal”. Deus o proibira, exatamente porque já dera ao homem a possibilidade de ser feliz observando sua Lei, sendo fiel e sábio. Deus não quis e não quer o mal. Mas o homem o quis e quer. Esse é o sentido de “não comer da árvore do conhecimento do bem e dal”. Não é preciso fazer experiência por si. Basta confiar e crer em Deus.
         A expressão bíblica “comer das árvores do jardim, exceto da árvore do conhecimento do bem e do mal”, é, de fato, expressão, modo de falar que o autor usa para dizer que o homem tem na vida duas opções: ser sábio e ter a vida (= “comer das árvores do paraiso” = obedecer à Lei de Deus) ou ser ignorante e encontrar a morte (= “comer da árvore do bem e do mal” = seguir suas próprias idéias).
         b) A maçã. A maçã não é mencionada nesse texto bíblico. O texto fala de “fruto” (Gn 3,3.6). O costume de se designar a maçã como o fruto proibido do paraíso, vem das pinturas bíblicas clássicas, que por sua vez traduzem a idéia da mitologia antiga[6] na qual a maçã era o símbolo da tentação. Na Bíblia, essa tradição da mitologia antiga é também usada para designar a tentação do homem para o mal. No Gênesis, o fruto ou a “maçã” simbolizam a “eterna tentação do homem em não querer conhecer-se como criatura diante de Deus, mas querer comportar-se por si mesmo, não submeter-se, escolher o próprio caminho, julgar-se norma única e exclusiva para conhecer o bem e o mal”.[7] Comer desse fruto, ou comer a “maçã”, é deixar Deus e seguir a si próprio; é seguir imprudentemente o próprio caminho.
         c) As folhas da figueira e a nudez; o rumor dos passos de Deus e o esconder-se de Adão e Eva (Gn 3,7-8).
         Todos esses elementos pertencem ao mesmo quadro: o da tomada de consciência, pelo homem, de um erro cometido, de um passo em falso! Deus mostrara ao homem o caminho do bem e da vida (= árvores do paraíso e árvore da vida); o homem não aceitou a proposta de Deus e quis fazer a sua experiência, decidir por si mesmo (= conhecer a árvore do bem e do mal).
Uma vez feita a experiência contra Deus, o homem percebeu imediatamente o mal que acabara de praticar; sentiu toda a frustração que essa experiência amarga lhe trouxera e a desilusão; sentiu-se sem argumentos diante de Deus que já o prevenira anteriormente; tomou consciência da situação e com medo não quis olhar para Deus, não quis enfrentá-lo! Era preciso fugir dele!
         Esse drama do homem é descrito com imagens, com símbolos em Gn 3,7-8. A nudez é a tomada de consciência do homem diante de Deus: ele está desarmado, envergonhado, desprevenido; errou, tem que calar a boca. As folhas de figueira designam o medo do homem depois de uma trágica experiência feita: é preciso cobrir-se, ou seja: o erro foi descoberto, percebido; era preciso, pois, tentar ocultá-lo. A reação é a mesma de pessoa que é surpreendida nua!
         O rumor dos passos de Deus, designa o temor profundo do homem que errou voluntariamente: ele deve agora encontrar-se com Deus, dar-lhe satisfação por ter abandonado a Lei divina. Designa a ânsia do homem que espera um Deus que lhe pedirá contas dentro em breve! Enquanto ele, o homem, seguia a Lei de Deus (= comer das árvores do paraíso e da árvore da vida), os passos de Deus eram aguardados por ele como sinais da agradável visita de amigo (=Em seguida eles ouviram Javé Deus passeando no jardim à brisa do dia”, diz Gn 3,8). Tão logo deixou de seguir a Lei de Deus e seguiu a sua própria lei (= comer da árvore do conhecimento do bem e do mal), os mesmos passos de Deus são aguardados com temor e angústia (Gn 3,8b). O “esconder-se” de Deus (Gn 3,8b. 10) é o símbolo do homem que se reconhece pecador, culpado e consciente; ainda não aberto à conversão; orgulhoso. Prefere a fuga ao diálogo; prefere a angústia do culpado à misericórdia e à paz que vêm de Deus. O homem estava nu (= consciente de sua culpa), mas não tinha a humildade de reconhecer-se culpado diante de Deus (= esconder-se).
         d) A serpente. O autor bíblico faz nesse relato uma pergunta:
por que o homem não quer ser sábio, seguir a lei de Deus e ser feliz, mas prefere percorrer seu próprio caminho, esconder-se de Deus e ser infeliz? Ou por outras palavras: por que o homem sente mais atração para o mal do que para o bem?
         E ele responde: a causadora de todo esse transtorno foi a serpente. Foi ela que levou o homem a comer o fruto proibido!
         A serpente personifica aqui a tentação; personifica aquela inclinação quase indomável que todos nós temos para o mal. Para o autor a causa de todo o mal é o próprio homem que se deixa levar por essa tentação, por essa má inclinação.
         Ele usa um símbolo para dizê-lo; o símbolo é a serpente. E por que a serpente?
         Porque no seu tempo a serpente era o símbolo da religião de Canaã, país em que vivia também o povo de Deus. Essa religião não tinha muitos compromissos éticos; era religião mágica, idolátrica e praticava a prostituição “sagrada” como sinal da perenidade da vida (lRs 14,24; 15,12; 22,47; 2Rs 23,7). E a serpente era o símbolo dessa religião; era símbolo porque representava, primeiramente, o órgão sexual masculino, reprodutor da vida (emblema fálico), e depois porque soltando periodicamente sua pele e renovando-se sempre, a serpente tornava-se símbolo de vida eterna! Esses elementos entraram na mitologia e no folclore orientais.
         Outro elemento a ser considerado na explicação do texto: a serpente é, para todos os povos, símbolo do mal; é traiçoeira, venenosa, mata.
         O povo de Deus sempre sentiu a tentação de deixar a sua religião de aliança comprometida com Deus para seguir a religião de Canaã, mais sedutora, sem muitos compromissos, além de favorecer a prostituição
embora sob aparência de culto.
         Esse tipo de religião exerceu grande fascínio sobre o povo. Atraía. E tantas vezes o povo de Deus se deixou seduzir! Esse tipo de apostasia religiosa trazia sérias conseqüências para a vida do povo. Descompromissando-se com Deus, o homem descompromissava-se também com seu próximo. O resultado disso era a falsidade cultual, a exploração dos mais fracos, o sincretismo religioso; e tudo isso feito com a consciência tranquila! Por isso os profetas e os reis justos atacavam violentamente esse tipo de “religião” (veja as citações feitas acima e mais as seguintes: Os 4,12.18; 6,10; Ez 16,24.31.39; Is 1,21- 23; Am 4,1-3).
         A serpente tornou-se símbolo da traição a Deus e à fé; símbolo de todo mal.
         O autor bíblico usa todo esse contexto cultural, mítico e religioso que envolvia a figura da serpente, como também o próprio símbolo, para explicar a causa do pecado do homem, que não quis ser sábio e seguir a lei de Deus. Ele prevaricou porque a serpente o seduzira; isto é, foi tentado, cedeu.
         A origem do mal está, pois, nessa escolha errada do homem; preferiu “ouvir” a serpente a ouvir a Deús.
         Desse modo parece claro que a presença da serpente no relato é presença etiológica, ou seja, é usada como figura, símbolo para dar explicação sobre a origem do mal. Evidentemente não foi a serpente que tentou o homem. O homem sentiu dentro de si o fascínio do mal, foi atraído, cedeu e percebeu depois que isso lhe foi nocivo, venenoso, trouxe a morte!
         Essa mesma tentação está dentro de cada um de nós; ainda hoje
o homem protesta contra Deus, não quer ouvir a sua voz, preferindo
“ouvir a serpente”. A tentação
(= serpente) está sempre espreitando
o homem. Assim é hoje e assim foi também no começo da humanidade.[8]


         Há muita gente que diz que o pecado de Adão e Eva foi pecado de ordem sexual. Não é verdade; não está na Bíblia. Pelo contrário, a Bíblia diz que Deus criou o homem e a mulher e deu-lhes ordem para terem muitos filhos: “Sejam fecundos, multipliquem-se” (Gn 1,28). Portanto, a ordem para uma vida sexual entre eles é anterior a uma transgressão que vem narrada depois (Gn 3). Além do que, para ser pecado sexual, deveria haver proibição de Deus nesse sentido. E não há. Há, pelo contrário, ordem de Deus para o casal procriar, ter filhos, constituir família.
         Certamente os elementos: nudez-não-percebida e nudez-percebida, fruto proibido, serpente (como símbolo fálico) é que condicionaram tal interpretação. Já vimos acima o sentido desses símbolos. Nada têm eles a ver com a vida sexual.
         Então: qual foi o pecado de Adão e Eva? O que é o pecado original?
         A Bíblia não diz qual foi o pecado de Adão e Eva. E nem podia dizer, pois o primeiro pecado, ou o “pecado original”, embora seja real, não é aferível historicamente, isto é, não pode ser comprovado com documentos.
         O autor bíblico não está querendo também descobrir qual o primeiro pecado do homem. Nós é que damos ao texto uma interpretação que é estranha para o próprio autor. A intenção dele é outra: ele não quer provar nada e nem quer demonstrar que houve pecado que se teria transmitido de pai para filho; ele apenas constata, verifica, que há pecado no mundo; constata que existe em cada pessoa a misteriosa e inexplicável tendência para o mal. Diante da lei de Deus, o homem é tentado a escolher o mal e não o bem. É isso um mistério profundo que se esconde no coração do homem.[9]
         A narração bíblica sobre o pecado original é montagem literária feita sobre uma grande verdade: o homem pecou, errou no passado porque ele peca e erra no presente. Essa tendência e essa inclinação de todos para o mal, exigem que também o primeiro ser humano que surgiu no mundo tenha tido também ele essa inclinação para o mal; tendência que está na raiz  de todos,“ uma ruptura do homem com sua Origem, que é Deus”[10] E como todos pecamos, essa inclinação está no coração de todos. Essa é a constatação que o autor bíblico faz, e é verdade. E para retratar tudo isso, o autor bíblico usa a linguagem simbólica e elementos de sua cultura: nudez, voz de Deus, esconder-se de Deus, como vimos. Para o autor, todo homem é Adão, isto é, pecador. Só isso,  ou tudo isso!
         Não se pode, pois, responder à pergunta: “qual foi o pecado de Adão e Eva?” Primeiramente, porque a Bíblia não o identifica, e depois porque não é intenção do autor identificá-lo também. E nem poderia fazê-lo; além disso, o pecado é detectável, percebido, sentido por todos e por cada um de nós, mas não é aferível historicamente, como se disse. Em outras palavras: o pecado de Adão e Eva é histórico no sentido de real e não aferível, comprovado, documentado.
         Muitos autores dizem que o pecado original foi ato de desobediência à lei de Deus. Mas não conseguem esclarecer qual lei seria essa e nem qual teria sido a proibição. Talvez, quando o homem se percebeu dotado de inteligência e de vontade quisesse experimentar sua capacidade de decidir, indo contra a vontade de Deus que o queria feliz. Sua experiência foi escolha errada que o infelicitou e marcou para sempre. E apesar de todas as amargas experiências anteriores, o homem quer sempre experimentar! O pecado original, então, não existiu, existe; não aconteceu, mas acontece. Talvez esteja aí a chamada “desobediência à lei de Deus”, considerada o núcleo do pecado. Essa desobediência, esse erro inicial, primordial, é chamado “pecado original” porque está na origem, no começo da humanidade; é uma “força perigosa e ameaçadora e da qual cada geração é responsável, inclusive a primeira”.[11]
         Para o autor bíblico, a tarefa mais importante não é a de descobrir qual foi o pecado original, mas sim como combatê-lo agora, em cada pessoa, em cada estrutura, em cada época. Combater esse mal de origem é também reconstruir o paraíso. (   
         O paraíso bíblico, como lugar geográfico, jardim de flores, com muita água, plantas frutíferas e brisa suave, nunca existiu e nem existe. O paraíso descrito na Bíblia não é lugar, mas é o estado de justiça, de paz, de fraternidade, de felicidade em que o homem deveria viver. Esse paraíso, como estado de justiça, paz, felicidade não foi destruído, pois é o projeto de Deus para o homem. A narração sobre o paraíso na Bíblia é apenas um modo de escrever, é descrição de estado de felicidade segundo modelo oriental. Para o autor bíblico, a descrição tem a finalidade de mostrar o contraste da realidade em que ele vive. O projeto de Deus não era nada daquilo que os homens de seu tempo viviam, mas era exatamente o contrário; daí a intenção do autor em mostrar com seu escrito que todo homem deve lutar para reconstruir o paraíso querido por Deus. O paraíso, então, existirá quando o homem conseguir eliminar as estruturas geradoras do mal, do pecado, da injustiça. E o homem quem constroi ou destroi o paraíso. A luta de cada um contra o mal é já início da construção do paraíso querido por Deus.
         Na construção desse estado de felicidade o homem defrontar- se-á sempre com enormes dificuldades. A Bíblia exprime essa idéia dizendo que havia querubins (= anjos) com espadas flamejantes guardando o paraíso (Gn 3,23-24). A reconstrução do paraíso será possível só depois de superados todos os obstáculos e com a ajuda misericordiosa de Deus. Sem isso é impossível que ele “estenda a mão e colha também da árvore da vida, e coma, e viva para sempre(Gn 3,22b).
         O paraíso existe como possibilidade de realizar o projeto de Deus, o plano de Deus. Plano de felicidade e de vida para o homem. Para isso é preciso que o homem volte à observar a lei de Deus, que agora é a lei de Cristo, e assim possa viver para sempre.[12]
        



         Essa pergunta é feita por todo mundo que lê os primeiros capítulos do Gênesis (Gn 1-5).  Ela não tem sentido porque a Bíblia não está  relatando  uma história ou redigindo uma genealogia. O autor faz uma reflexão sobre a vida; constata ele que há homens e mulheres; dominadores e dominados; há ambivalências; há uma tendência inata no homem para o mal; constata o peso da tentação que seduz o homem; há homens bons e justos, maus e injustos etc. Ele vivia esse drama na sua época. E projetou o antítipo de todo esse estado de negatividade, isto é,  o contrário de tudo isso: o contrário de tudo isso, diz,  é o paraíso.  Nesse contexto, então, é que  entram Caim e Abel. Entram como protótipos, representantes,  do mal e do bem respectivamente. Só isso.
         O autor não está interessado em informar se Caim  era filho de Adão e Eva, se casou-se ou não; e se tivesse casado, não lhe interessa saber com quem (embora o texto relate o casamento dele: Gn 4,17). Nós é que nos preocupamos em identificar a mulher dele. A Bíblia, porém, tem apenas a intenção de relatar que existe a maldade desde o começo do mundo e a personifica aqui em um homem (Caim); assim como existe a maldade hoje e é personificada em tantos outros homens maus (outros Cains).
         Não podemos dizer que Caim casou-se com sua irmã porque o texto não autoriza essa interpretação. Não podemos também dizer que ele casou-se com mulher de outra família, pois proporíamos o problema do poligenismo no texto monogenista do autor bíblico, isto é, afirmaríamos que existiram vários casais no início do mundo (=poligenismo) quando a Bíblia diz que existiu um só casal (= monogenismo).  E é tão verdade que a Bíblia não está narrando história de família ou de raça humana porque no capítulo 4,14, depois de ter assassinado Abel e ser amaldiçoado por Deus, Caim, com medo,  diz a Deus: “o primeiro que me encontrar, me matará”.
Mas não havia outras pessoas,  pois conforme o texto, só existiam Adão, Eva e  ele!
         Alguns autores, porém, resolvem simplesmente a questão dizendo que de fato Caim casou-se com uma de suas irmãs ou com uma de suas sobrinhas, pois o texto bíblico diz que Adão e Eva tiveram muitos filhos e filhas (Gn 5,4). Essa interpretação é maquiagem no texto e ingênua. Outros autores aceitam a hipótese do poligenismo (a existência de vários casais no início do mundo).[13]
         Ainda que o poligenismo fosse verdadeiro, o texto bíblico não está absolutamente preocupado com isso. Não está interessado em identificar quem casou com quem. Quer apenas refletir sobre a existência do mal no mundo e identificar seus representantes concretos. O representante do bem no mundo é o homem (Abel), como também é o homem o representante do mal (Caim). O resto é pura especulação que escapa à intenção do autor.[14]


         O texto bíblico diz: “Caim disse a Javé: ‘Minha culpa é grave e me atormenta. Se hoje me expulsas do solo fértil, terei de esconder-me de ti, andando errante e perdido pelo mundo; o primeiro que me encontrar, me matará’. Javé lhe respondeu: ‘Quem matar Caim será vingado sete vezes’. E Javé colocou um sinal sobre Caim, a fim de que ele não fosse morto por quem o encontrasse”(Gn 4,13-15).

        
Esse relato, como outros já vistos, não pode ser tomado ao pé da letra como se fosse narração histórica no sentido moderno do termo, isto é, a documentação de um fato, aferível, comprovável. É histórico, sim, por tratar de drama humano, real: o crime, a vingança e o castigo. Esse drama nós o sentimos e o percebemos presente na História. O texto bíblico é narração popular, etiológico-teológica sobre a presença do mal social no mundo. O mal não existe apenas em plano pessoal, mas também no plano da convivência social. Se os homens são filhos de Deus e irmãos entre si, como se explicam o crime e a vingança?
         A Bíblia relata então “como começou a violência no mundo”; a seu modo procura dar a “causa” da violência.  Mas essa narrativa não é uma crônica.
Esse tipo de narração é chamado “etiológico” (= dar a causa, ou explicação de alguma coisa).         A Bíblia critica e condena a violência: Deus não a quer, pois ela está fora de seu projeto. Essa conclusão é o aspecto teológico da narração.
         Essas reflexões do autor, nascidas de sua pesquisa, de sua fé e de sua experiência, são agrupadas numa história especial com a qual ele informa sobre a origem e o desenvolvimento do mal na vida social, bem como a origem da violência e da vingança no mundo.
Além disso, como pano de fundo, o autor desse relato faz certamente referência a uma tribo que se considerava como tribo dos descendentes de Caim. Esse grupo, chamado dos cainitas ou também quenita; era tribo nômade, errante e muito temida. O autor diz no seu texto que a tribo vivia errante porque ela tinha por fundador um fratricida; ela nascera de crime entre irmãos; Caim, o fundador da tribo, matara seu próprio irmão Abel. Por isso ele passou a viver errante (em hebraico: nad). A Bíblia lembra esse aspecto dizendo que Caim foi morar na “terra de Nod” (Gn 4,16). As palavras nad (= errante, em hebraico) e Nod (a cidade) formam um jogo de palavras significativo: cidade errante ou grupo errante.
         Percebe-se que a finalidade desse texto é a de constatar a existência da violência no mundo, mostrar que Deus a desaprova e explicar por que a tribo dos quenitas (descendentes de Caim) era tribo errante e feroz.
         Voltando ao texto: o autor quer denunciar ainda a violência que gera sempre violência e a vingança que gera sempre vingança na convivência social. Quer ensinar que é preciso parar com a violência, pôr ponto final nas mútuas agressões.
         As palavras que Caim dirige a Deus demonstram essa cadeia de violência: o assassino tem sempre medo de ser assassinado (vv. 13- 14). A resposta de Deus confirma que, de fato, a vingança levará à vingança e a violência se tornará uma bola de neve crescente sempre mais, à medida que rola. Se Caim, assassino, for assassinado, seu clã e seu grupo se vingarão. Haverá recrudescimento da violência. A Bíblia usa a expressão “sete vezes sofrerá violência” o que significa aqui,  maior violência ou grande violência.
         O “sinal” que Deus põe em Caim é símbolo que o autor usa para dizer que Deus não quer a violência, condena-a. O sinal de Deus é um “basta” à violência e não uma marca infamante. O autor está dizendo:   Deus põe uma barreira à violência,  não aceita violência. É esse o sentido do “sinal de Caim”. O sinal de Deus é de perdão!
         Nesse texto a Bíblia denuncia então: a existência da violência no mundo e o extremado senso de vingança existente nas pessoas; constata que existem muitos “Cains” na sociedade: são as pessoas de ontem e de hoje que violentam, agridem, matam o irmão. Denuncia o texto que a vingança chama vingança e que isso tudo não está conforme à vontade de Deus; Deus exige o fim desse estado de coisas e quer os homens felizes, amigos, vivendo em paz e em fraternidade.
         Nessa ótica o texto em questão tem sentido e é questionador.

         Dilúvio quer dizer enchente, inundação. Pela Bíblia (Gn 6-9) o dilúvio aconteceu e foi universal, isto é, envolveu o mundo inteiro. No dilúvio morreram todos os homens e animais, exceto os que estavam na arca de Noé. As causas do dilúvio foram a maldade e a depravação humanas. Com o dilúvio Deus castigou e purificou a humanidade; depois do dilúvio Deus fez com Noé uma nova aliança, simbolizada pelo arco-íris e disse que não mais castigaria o homem com novo dilúvio.
         O relato do dilúvio é, na Bíblia, interpretação teológica de catástrofe acontecida e conhecida por todos os povos da antigüidade.[15] Mais abaixo falaremos sobre essa interpretação teológica.
         Historicamente todos os povos antigos conhecem uma tradição sobre dilúvio. Essas tradições existem tanto no mundo oriental (p. ex., na Palestina, na Babilônia, na Mesopotâmia), como também no mundo ocidental (p. ex., na América, na África). Todos os povos guardam na memória coletiva a lembrança de uma inundação catastrófica acontecida em tempos imemoriais. Na tradição mesopotâmica, principalmente, há uma narração sobre o herói de um dilúvio;  chama-se Utanapistim, que quer dizer o “Muito sábio”. Entre essa narração e a narração bíblica há muita semelhança literária e de conteúdo. O dilúvio é descrito, nessa narrativa, como universal (mas no sentido antropológico, isto é, atingiu todo o gênero
humano); salvaram-se da destruição somente os homens e animais que estavam numa barca; a chuva parou depois de sete dias e a barca parou num monte também; o monte Nizir, no norte da Mesopotâmia. Utanapistim soltou uma pomba, a seguir uma andorinha e depois um corvo. As duas primeiras aves voltaram, o corvo não. Era sinal de que as águas haviam baixado; o corvo encontrara alimento na terra. O herói oferece então um sacrifício de ação de graças aos deuses.
            Em todas as tradições orientais o dilúvio não é descrito como fenômeno natural, mas como castigo dos deuses; segundo tais tradições a humanidade descende dos sobreviventes que estavam na barca; a inundação aconteceu por causa das muitas chuvas ou por causa do mar revolto; e em todas essas tradições há — como se disse - a presença de pássaros que anunciam o fim do dilúvio.[16]
         Diante disso tudo, a narração bíblica parece sem novidade. Os pontos de contato entre a narração bíblica e a narração mesopotâmica são evidentes. Uma coisa fica bem clara: o dilúvio foi inundação imensa que de fato aconteceu.
         Qual é então a diferença entre o relato bíblico e o relato mesopotâmico?
         A originalidade da narração bíblica está na interpretação que ela dá ao fato. E o que se chama de interpretação teológica de um acontecimento.
         E qual é a interpretação teológica da Bíblia sobre o dilúvio?
         O autor bíblico afirma, com seu texto, que o dilúvio aconteceu por causa da depravação humana e não por causa das desavenças entre os deuses, como diz o relato mesopotâmico. O dilúvio, diz a Bíblia, foi castigo infligido pelo Deus único e verdadeiro, o Deus de Israel, e não pelos deuses. O dilúvio não destruiu toda a humanidade, mas “todos os homens” da região atingida (exceto os que estavam na arca); a humanidade teve novo começo com Noé e seus filhos, isto é, os homens, mesmo diferentes, são descendentes ainda de um só casal.
         Por isso podemos considerar a narração bíblica como relato etiológico também, isto é, relato que procura dar o motivo, a causa, o porquê de determinado fato, do qual todas as pessoas tinham lembrança na consciência coletiva. Não foi inundação universal no sentido de mundo inteiro, como sugere a Bíblia, pois isso seria geologicamente impossível, mas universal no sentido de mundo conhecido.
         A narração etiológico-teológica da Bíblia sobre o dilúvio sublinha então algumas idéias religiosas centrais e profundamente diferentes das idéias veiculadas pela narração mesopotâmica: o dilúvio foi castigo enviado pelo Deus único e verdadeiro; foi enviado por causa do pecado dos homens; a humanidade descende de um só casal, apesar das diferenças raciais.
         Podemos dizer que o núcleo histórico da tradição sobre o dilúvio constitui patrimônio cultural comum dos dois povos: os israelitas e os mesopotâmicos. É uma tradição cultural, semítica. No correr dos séculos a tradição comum foi sendo enxertada com as concepções religiosas de cada povo. Assim a tradição mesopotâmica é marcada pelo politeísmo e a tradição israelita pelo monoteísmo. E a diferença fundamental entre ambas.
         A paleontologia (ciência que estuda os fósseis animais e vegetais) e a etnografia (ciência que estuda as raças e culturas) garantem cientificamente a existência de inundações imensas acontecidas entre os anos 3.700-2.800 aC na Mesopotâmia. O dilúvio foi então uma imensa inundação que ocorreu em determinado período imemorial da História e que é lembrada por todos os povos nas suas tradições religiosas. A Bíblia também a lembra, mas purifica teologicamente o relato sobre ela. A narração bíblica não pode, portanto, ser tomada ao pé da letra porque se tornaria inexplicável, incompreensível. Não caberiam, por exemplo, na arca de Noé exemplares de todos os animais; a água que, segundo a Bíblia, caiu sobre a terra (“A água alcançou a altura de sete metros e meio acima das montanhas” Gn 7,20) teria desviado o eixo da própria terra, etc.
Convém lembrar aqui que o dilúvio é visto pelo autor bíblico, dentro de um esquema teológico, como  relato do pecado de toda a humanidade. Ele já relatara antes o pecado do homem (= Adão e Eva: Gn 3); relatara o pecado  do irmão contra o irmão  (família-Caim: Gn 4); relata agora, aqui, o pecado de todos os homens. O pecado, diz ele, pessoal, social ou coletivo, sempre traz sérias conseqüências para o homem e para a comunidade. É sempre rompimento da aliança com Deus.
         Para finalizar podemos dizer que o dilúvio existiu de fato. Foi uma imensa inundação acontecida na antiguidade. A Bíblia, porém, viu esse fenômeno como castigo de Deus para uma humanidade depravada e viu também nesse fenômeno a ocasião para reafirmar a aliança que o homem deve manter sempre com seu Deus. Segundo a ótica bíblica, a narração do dilúvio pode ser lida também como relato que quer mostrar o poder de Deus na História e sobre a criação. Ele é o Senhor, o Criador; pode até destruir a criação. E ele também aquele que a conserva e a sustenta (Gn 8,22; 9, 1ss). [17]

     
        
O relato bíblico sobre a torre de Babel (Gn 11) vem logo depois da narração do dilúvio (Gn 6-10) que termina falando que é da família de Noé que se originaram os povos do mundo. Daqui se percebe que o relato tem finalidade etiológica também, isto é, a de dar a causa, explicar por que existem tantas línguas no mundo. Para tanto o autor bíblico se valeu de relatos já existentes no seu tempo, de lendas, como de sua visão religiosa Fez também de seu relato arma apologética: combater o orgulho dos babilônios e o politeísmo deles.
          Na Babilônia existiam, de fato, torres muito altas e de diâmetro imenso, chamadas zigurates. Hoje restam delas apenas ruínas. Dizem os especialistas que tais zigurates eram também expressão da religião do povo, porque segundo a concepção mesopotâmica os deuses habitavam nas alturas; tais torres eram tão propositadamente altas para servirem, segundo a crença deles, de moradia para seus deuses. Eram, de certa forma, templos religiosos. Disso se orgulhavam muito os babilônios, os quais, segundo a lenda, queriam, por meio da torre, chegar um dia ao céu; todavia os deuses os tinham castigado por causa desse orgulho e pretensão.
         O autor bíblico relê essa história dentro da teologia monoteísta:
a dispersão dos povos e a divisão das línguas são um mal e procedem da soberba dos homens. A união de todos os homens seria o ideal desejado. A dispersão é castigo de Deus.
         Também polemiza o autor bíblico contra o orgulho dos babilônios que davam às suas torres o nome de bab-ilu, isto é: “Porta de deus”; o autor diz então que elas não são bab-ilu (Portas de deus), mas Babel,  isto é, confusão, segundo étimologia popular. Babel lembra certamente Babilônia, a civilização e potência opressora (também do povo hebreu), mas que se destruíu por sua auto-suficiência e orgulho. Com uma história inventada a partir de realidades históricas o autor explica a razão de tantas línguas no mundo: o homem, pelo orgulho, perdeu a unidade social. Contruir uma só cidade é ato de globalização que destrói a identidade das pessoas e dos povos. Não é possível falar uma só língua, a língua do interesse, da ambição, da economia. Cada pessoa, cada povo tem direito à sua autonomia e autodeterminação. Esse é o projeto de Deus..
         A história da torre de Babel foi o modo literário que o autor usou para explicar algo que todos sabiam e sentiam e também para transmitir sua mensagem  sobre o verdadeiro projeto de Deus.

         A Bíblia fala, de fato, da poligamia (= ter várias mulheres), como costume adotado por muitos personagens bíblicos. A poliandria (= ter vários maridos) não existe na Bíblia.
         Na idade patriarcal, Abraão, Naor, Elifaz, Jacó, tiveram mais de uma mulher cada um (Gn 16,1-2; 22,20-24; 29,13-30). Esaú teve três mulheres (Gn 26,34; 28,9 e 36,1-5). Mais tarde, no tempo dos Juízes e dos Reis, houve casos de poligamia ilimitada como, p. ex., a de Gedeão (Jz 8,30-31), a de Davi (2Sm 3,2-5; 15,16), e o famoso caso de Salomão, que teve 700 esposas e 300 concubinas (lRs 11,3)! (Esse caso de Salomão é exagero literário para ressaltar o poder econômico dele: riquezas, exército, harém).
         A  poligamia no Antigo Testamento era um componente cultural, isto é, fazia parte dos costumes locais. Ela  era expressão do poder econômico do homem, sua capacidade de sustentar uma casa com muitas mulheres. Por outro lado, dentro da concepção machista oriental, o homem desejava ter família numerosa para ter assim mais força política, mais poder, mais prestígio. De modo geral, os reis e os príncipes. Eles queriam mostrar seu poder, sua influência, sua força, pelo exército que organizavam e pelo número de mulheres que tinham e sustentavam. Esse era o critério deles. Hoje tais poderes, prestígio e força se medem pelos dólares e euros que os ricos escondem nos paraísos fiscais.
         Nesse quadro de poligamia, como expressão de poder e de força, devemos inserir os patriarcas e os reis bíblicos que adotaram tal costume. Eles não podem ser censurados por isso e muito menos se pode invocar o modo de agir deles como justificativa para uma possível poligamia hoje. Eles se movem dentro de um quadro cultural totalmente diferente do nosso.
         É de se notar que logo no início da monarquia (e já no tempo dos Juízes também) a monogamia (= uma só esposa) era o estado de vida mais comum. Conhecem-se poucos casos de poligamia. Os livros sapienciais, por exemplo, que nos dão o quadro dos costumes familiares daqueles tempos, mostram a família como comunidade monogâmica (Pr 5,15-20; 31,10-31; Ecl 9,9; Eclo 26,14).[18]
         Tobias é testemunho eloquente da monogamia. Os profetas, principalmente falam sempre de Israel como a esposa única do Deus único. A imagem monogâmica está muito mais presente na Bíblia do que a poligamia (Os 2,4-5; Jr 2,2; Is 50,1; 54,6-7 etc.).
         E Jesus diz que a monogamia é o estado conjugal que Deus quer desde a criação (Mt 19,3-9) e que todo desvio é obra de “coração duro”, permissivo (Mt 19,8).
         Já no Antigo Testamento há o esforço muito grande para sublinhar que a monogamia é o estado matrimonial querido por Deus, conforme o relato bíblico da criação (Gn 2,18-24).
         A Bíblia não autoriza, pois, a poligamia; pelo contrário: reforça sempre a estabilidade familiar monogâmica.


         Quem ler o relato bíblico e o interpretar ao pé da letra sentirá  revolta e indignação contra Deus! De fato, não se compreenderá jamais porque Deus exigira, como prova da fidelidade de Abraão, o sacrifício do próprio filho! Caso semelhante relata ainda a Bíblia no livro dos Juízes (Jz 11,29-40) quando outro pai, Jefté, sacrifica a própria filha a Deus por causa de uma promessa feita! São atitudes ou relatos que ferem por demais a nossa sensibilidade!
         Mas não se pode ler os textos bíblicos ao pé de letra, como se tem repetido tantas vezes aqui. Essa narração a respeito de Abraão é também um gênero literário, isto é, um modo de se escrever; tem a finalidade de ilustrar duas grandes idéias: primeiramente, a fidelidade de Abraão a Deus, e depois mostrar que o Deus de Abraão é o Deus da vida e não da morte. É uma grande verdade bíblica transmitida, porém, por meio de uma história. O importante não é a história narrada  mas a verdade bíblica incorporada na
história.
         Para o autor, Abraão fôra de tal modo fiel ao Deus verdadeiro que, para cumprir um compromisso com ele, esteve disposto até a sacrificar-lhe o seu próprio filho como o faziam as religiões pagãs para com os seus deuses..
         Por essa fidelidade absoluta, Abraão foi digno das grandes promessas que Deus lhe fizera: ter grande descendência, tão numerosa quanto a poeira da terra e as estrelas do céu (Gn 13,16; 15,5).
         A força do relato está no realce que dá à fidelidade de Abraão a Deus e ao alto grau de sacrifício que ele estava disposto a fazer pelo Deus verdadeiro que a ele se revelara na longa caminhada e com quem se comprometera. Por outro lado, essa narração é, segundo a Bíblia, protesto radical contra o costume cananeu de sacrificar aos deuses os filhos primogênitos. Tal costume era condenado por Deus (Lv 18,21; 20,2-5; Dt 12,31; 18,10). Mas alguns reis ímpios tinham tentado reintroduzir essa prática em Israel (2Rs 16,3; 21,6; 23,10). Contra esse abuso é que o autor protesta e usa a história de Abraão para mostrar que o Deus de Israel é o Deus da vida e não da morte. Insere então, já na história de Abraão, a rejeição por Deus desse costume pagão. Sublinha com isso a tradição israelita do respeito pela vida: os primogênitos dos israelitas deviam ser resgatados (Ex 13,11-12) e não sacrificados; isto é, deviam ser consagrados ao Senhor e não oferecidos em sacrifício.
         O episódio pode ainda ser considerado como relato de “fundação de santuário”, isto é, feito com a intenção de mostrar aos leitores que no monte Moriá é que estava o santuário do Deus vivo, o Deus de Israel, no qual não se ofereciam vítimas humanas, e sim apenas animais. O monte Moriá é, segundo Gn 22,2, o monte sobre o qual Abraão sacrificaria o próprio filho, como é também, segundo a tradição de 2Cr 3,1, o monte sobre o qual fora depois construído o Templo, conforme a visão que tivera o rei Davi.
         O relato une então numa só história vários dados teológicos do
AT: a rejeição por Deus dos sacrifícios humanos (Javé quer dizer Vida
e não morte), a importância do monte Moriá como lugar da presença
de Deus (Shekiná, Glória; cf Ex 16,7.10; 24,16.17; 40), e a segurança
dessa Presença e Glória do Senhor no Templo de Jerusalém (lRs
8, 10-13).
         Nessa ótica o relato do sacrifício de Isaac perde todo o peso de tragédia e ganha colorido histórico e teológico especial que o torna um dos mais belos e significativos relatos bíblicos: quer mostrar a fidelidade absoluta de Abraão a Deus; sublinha a idéia da originalidade do Deus de Israel, que é o Deus da Vida (e não da morte, como eram os deuses pagãos); é relato histórico-litúrgico sobre a existência do Santuário de Deus no monte Moriá (onde no tempo do autor estava edificado o Templo); e finalmente, à luz do NT, esse relato tipifica a paixão do Filho único de Deus, sacrificado pelos pecados do mundo, como vítima da Aliança definitiva.

20. É verdade que a mulher de Lot virou estátua de sal? (Gn 19,17-26)

         A narração desse episódio está em Gn 19,23-26. Esse capítulo fala da destruição das cidades de Sodoma e Gomorra, duas cidades onde era livre a prática da homossexualidade, O episódio citado pertence a essa narrativa, cujo núcleo é a condenação da homossexualidade: é prática abominável aos olhos de Deus (Lev 18,22) e é sancionada com a pena de morte no AT (Lv 20,13).
         A região de Sodoma e Gomorra, mais as cidades Adama e Seboim (Gn 14; Dt 29,22-23) foram palco de cataclismo, incêndio talvez. A região é betuminosa e tem reservas de gás natural. É a região hoje coberta pelo mar Morto[19]. A narração quer explicar por que desapareceram tais cidades, e liga o cataclismo à homossexualidade que aí se praticava.
         Na região havia uma rocha de sal em forma humana (semelhante, por exemplo, a algumas das figuras de pedra [arenitos vermelhos] que existem no Parque Estadual de Vila Velha no Paraná). Uma lenda dizia que aquela rocha era a mulher de Lot que, desobedecendo à ordem de Deus, olhara para trás e fora transformada em estátua de sal, por castigo. O texto o repete; é uma explicação popular para esse capricho da natureza. E claro que a mulher de Lot não virou estátua de sal.
         Jesus faz referência popular a esse fato para expressar a decisão que deve ter aquele que quer segui-lo; não pode ser indeciso como “a mulher de Lot” e ficar olhando para trás (Lc 17,32; 9,62).

(Gn 19,20-38)

        
A relação sexual entre consanguíneos, afins ou adotivos é chamada incesto. A Bíblia relata o citado episódio das filhas de Lot em Gn 19,30-38.
         O episódio não retrata acontecimento real, histórico; é brincadeira de mau gosto e ofensa feita pelos israelitas aos moabitas e aos amonitas, dizem os comentaristas.  Esse relato é considerado apêndice à narração da destruição de Sodoma e Gomorra que está em Gn 19. Em Gn 19,29 é dito que Deus fez Lot fugir da destruição, já que ele morava em Sodoma. A narração termina aí, segundo os estudiosos.
         O acréscimo (19,30-38) é posterior e relata uma história que corria na tradição popular dos hebreus a respeito de seus vizinhos e inimigos: os moabitas e os amonitas. Esses dois povos eram aparentados de longe com os hebreus. E foram grandes inimigos deles, quer na religião, quer na política, quer nas guerras. Os moabitas chegaram a constituir uma monarquia muito antes dos hebreus (Jz 3,12-30); a religião deles era politeísta e até ofereciam sacrifícios humanos aos deuses (2Rs 3,26-27). Por isso tudo eram desprezados e odiados pelos judeus, e de tal forma o eram, que o Deuteronômio diz que os filhos de israelita com moabita não podiam ser aceitos na comunidade israelita sequer na décima geração (Dt 23,3-4)! Esses dois povos, Israel e Moab, viviam em constantes conflitos (lSm 14,47; 2Rs 3,4-27; 2Cr 20,1-30 etc.)
         O mesmo acontecia com os amonitas, tribo aramaica. Como os moabitas, eram também eles inimigos dos israelitas, tanto na religião, quanto nos costumes e na política. Os conflitos entre Israel e os amonitas são também muito lembrados na Bíblia (Jz 3,13; 10,6-9; 11,1-12,4; 11,1-11, 10,1—11,1 etc.).
         Por tudo isso, esses dois povos eram odiados pelos israelitas. Até os profetas criticavam violentamente os amonitas e os moabitas pelo fato de serem eles tentação para a fé dos israelitas (Am 1,13-15; Sf2,8- 11; Jr 9,25; 48; 49,1-6; Is 15 etc.).
         Por causa dessa inimizade é que foi inventada essa história narrada aqui em Gn 19,30-3 8. Já que eles, os moabitas e os amonitas, se consideravam parentes dos israelitas, esses que não os aceitavam resolveram demonstrar “historicamente” a origem desse parentesco entre eles. E construíram essa história: eles teriam nascido de um incesto entre um pai idoso e bêbado e as próprias filhas! Lot, o pai dos amonitas e moabitas, era sobrinho de Abraão, o grande patriarca e pai do povo judeu (Gn 13,8).
         Na verdade, tal fato não se deu. É uma história de mau gosto, hostil e ofensiva como lembram os especialistas. Foi o modo literário que os israelitas encontraram para ofenderem e insultarem seus vizinhos moabitas e amonitas. A história, inventada, toma por base o significado das palavras Moab e Amon . Moab, em hebraico, significa “saído do pai” e Amon significa “filho de meu parente”. A história faz então um trocadilho com esses nomes. Trocadilho ofensivo e humilhante[20].

22. Jacó lutou com Deus e o venceu, diz a Bíblia. Como pode ser isso?  (Gn 32,23-32)

        
Evidentemente um homem não pode lutar com Deus corpo a corpo, como aparece nesse texto (Gn 32,23-32).
         A Bíblia usa muitas histórias religiosas que corriam na boca do povo e as transmite dando-lhes, porém, base teológica. Essa é uma delas: Jacó luta com Deus e começa a vencê-lo; mas ao perceber que estava lutando com Deus, pede-lhe a bênção e pergunta-lhe o nome. O estranho lutador o abençoa, mas não diz quem ele é. Depois da luta, Jacó manca de uma perna. O texto concluiu que por isso até hoje os israelitas não comem o nervo ciático (v. 33).
         Temos aqui dois elementos importantes da vida religiosa hebraica. O primeiro é a explicação que o texto quer dar sobre o nome “israelita”, nome que caracteriza o povo de Deus; o segundo é a explicação do significado do nome “Fanuel”, nome que designava um lugar de culto no Jaboc e muito conhecido pelo povo.
         Na montagem dessa história são dadas então as explicações: o nome “israelita” provém de Israel, que foi o nome dado por Deus a Jacó (Gn 33,20); e deu-lhe esse nome porque Jacó, de fato, lutara contra Deus. Em hebraico popular se dizia : is-ra-el, ou seja: o homem que lutou contra (com) Deus. Outros autores traduzem o nome “Israel” como “aquele que viu Deus”, ou seja: Jacó travou luta muito grande no seu interior para aderir a Deus e ser-lhe fiel, como seu pai Abraão. Só depois de muita luta ele conseguiu aderir a Deus e ser então abençoado por ele.
         O outro elemento da narrativa quer dar o significado do nome “Fanuel”, que designava o lugar de um santuário como se disse. Fanuel é o lugar onde o homem está “diante de Deus” (Fanuel, em hebraico, significa: rosto de Deus, diante de Deus). Aquele local de culto, tão conhecido por todos, chamava-se Fanuel diz o texto porque aí o patriarca Jacó vira Deus face a face, estivera diante dele. Esse é o aspecto etiológico da narrativa. Dá o motivo, a causa. O aspecto teológico é a explicação do nome de Israel. Ambos os aspectos formam o núcleo da narrativa.
         A menção do “nervo ciático” é alusão a uma regra alimentar: o israelita não podia comer o nervo ciático. Todavia, essa regra alimentar não é mencionada em nenhum lugar da Bíblia. Somente a tradição fala dela.
É chamada “lei do terefah” (= coisa proibida).


         As famosas “Pragas do Egito” são narradas no livro do Êxodo (7,1—10,27; e 12, 29-36). Muito já se discutiu e se escreveu sobre elas. Para alguns autores, como por ex. G. Riccioti, Vigouroux, D. Rops e entre nós, D. Estevão Bettencourt, (“Para entender o Antigo Testamento, AGIR, 1965, p. 242-245), elas aconteceram de fato e foram milagres verdadeiros operados por Deus em favor de seu povo. Para outros, as pragas devem ser estudadas dentro de um contexto mais amplo: cultural, literário e teológico. Nessa ótica elas perdem muito da carga miraculosa e se constituem “sinais” da ação de Deus na História.  De fato, no texto hebraico as pragas  são chamadas mofetim e otôt (Ex 7,3),  palavras que significam  “maravilhas’  (ou coisa que surpreende) e  ‘sinais’ –  não milagres.  Algo extraordinário não é sinônimo de milagre. O sinal  não é a realidade mas revelador  de uma realidade. No caso, revela  a presença e a ação de Deus na história do seu povo.
         Vamos, então, estudar primeiramente as nove primeiras pragas e depois a décima, porque essa é especial.

         As nove primeiras pragas
         As pragas são narradas na seguinte ordem:
         1ª Transformação das águas do rio Nilo em sangue (7,14-24)
         2ª Infestação de  rãs nos rios e nas casas (7,26—8,11)
         3ª Onda de mosquitos em todo território egípcio (8,12-15)
         4ª  Invasão de  moscas nas casas dos egípcio(8,16-28)
         5ª  Peste maligna no gado dos egípcios (9,1-7)
         6ª  Tumores e chagas nos homens e nos animais (9,8-12)
         7ª  Chuva de pedra  contra homens e animais egípcios (9,13-35)
         8ª  Nuvens de gafanhotos sobre o território egpício(10,1-20)
         9ª  Escuridão total por três dias sobre o território egípcio  (10,2 1-27)
        
         A finalidade das pragas, pelo que lemos, era a de persuadir o faraó[21] a libertar o povo. O ponto culminante das narrações do Exodo está nos capítulos 14-15: é a vitória sobre o faraó no mar Vermelho com a consequente libertação do povo. O caminho para essa libertação foi longamente preparado por Deus através desses meios: as pragas. E essas “ações prodigiosas” ou sinais de Javé em favor de seu povo são sempre lembradas nas profissões de fé do povo de Israel (Dt 4,34; 6,22; 7,19; 26,8; Js 24,5; Sl 78,43 etc.).
Como foi lembrado, todas essas “ações prodigiosas” são chamadas no texto “sinais” e “prodígios” (maravilhas).  São “sinais” porque devem ser interpretadas. Hoje em dia, alguns intérpretes dizem que as pragas foram fenômenos naturais conhecidos no Egito. O aspecto extraordinário estaria na intensidade delas e na sucessão rápida, uma após a outra, e que acontecem ou desaparecem  com a ordem de Moisés.
         O texto mostra que os mágicos egípcios são capazes de repetir algumas delas (7,10-12; 7,22; 8,3).  Outras, não. Declaram-se incapazes: “Isso é o dedo de Deus”, dizem (8,15). A participação dos mágicos na provocação das pragas já é elemento suficiente para se duvidar de que eram elas fenômenos naturais ou até extraordinários.
         Outra observação ainda sobre essas nove primeiras pragas: era de se esperar que tanto o faraó como os egípcios ficassem assustados já com as primeiras pragas e deixassem o povo partir o mais rapidamente possível. Mas isso não aconteceu. Pelo contrário, alguns mágicos, como se disse, repetiram alguns prodígios e o faraó nem se importou com as ameaças de nenhuma das pragas. Continuou obstinado. (Esse é o sentido da frase: “endurecer o coração do faraó”, que aparece dezoito vezes no relato: 4,21; 7,3.13.22; 8,19,32, 9,7 etc).  Nesse sentido, as pragas falharam! Só depois da última, a décima (11,1), o povo pôde partir.
         O leitor israelita, como observam os autores, não se decepcionava quando lia isso. Ele não desacreditava do poder de Javé, pois já sabia que no final da história Javé vencera o faraó e libertara o seu povo. Para o israelita o mais importante fora a libertação. As pragas foram parte do caminho para consegui-la.  Não eram coisas importantes em si.
         É conveniente ainda fazer uma observação literária sobre o texto.
         A narração atual sobre as pragas tem origem em duas narrações distintas que depois foram fundidas numa só, a atual. O número das pragas variava em cada uma das narrações. A tradição dizia que as pragas tinham sido sete. O número 7, como é sabido, é o número da plenitude, da totalidade segundo os judeus. Com isso, as citadas narrações ensinavam que as pragas foram sinais de uma luta muto dura, contínua, mas perseverante.
         O modo de narrar as pragas é também diferente em cada narração. Os autores usavam esquema próprio para que o povo pudesse gravar facilmente na memória os seus relatos de sua história. Um recurso de mneumônica.
         A primeira narração falava de três pragas apenas e que são as atuais 3ª, 6ª e 9ª, A segunda narração falava de seis: 1.ª, 2ª , 4ª, 5ª, 7ª e 8ª.
A primeira narração é feita pelo grupo sacerdotal, por isso usam o esquema litúrgico da Palavra de Deus, que é falada e realiza aquilo que diz.
O esquema é sempre esse: há uma  palavra de Deus, depois,  uma ordem e em seguida a execução. Por exemplo:
         A Palavra de Deus: “E Deus disse...”
         A ordem de Deus:  “estenda  a vara; peguem a cinza; estenda a mão”.
A execução: “Aarão estendeu... pegaram a cinza, estendeu a mão (cf. Ex 8,12s; 9,8s; 10,21 s).
 A segunda narração é popular; usa dois refrões que se completam; é um recurso especial para guardar na memória um ensinamento. O esquema é este: manhã (madrugada) e apresente-se. É sempre repetido.
 “Vá encontrar o faraó de manhã (ou madrugada)”
  “Apresente-se ao faraó” (cf. Ex. 7,15.26; 8,16; 9,1.13; 10,1)

          A partir dessas observações todas, podemos perguntar se as pragas aconteceram ou não. Se  é histórico  ou não esse relato sobre elas.
         Para nós, um fato é histórico quando  pode ser comprovado, quando pode ser verificado, aferido. Nesse sentido as pragas não são históricas, porque não podem ser comprovadas por nenhum meio, afora o relato. Mas o autor bíblico ou os autores não tinham intenção alguma de descrever a natureza desses fenômenos. O que eles querem dizer com esse tipo de linguagem e com esse tipo de relato é que, para libertar o povo, Javé se mostrou tão presente que só um coração obcecado não o perceberia. Deu na vista a ação libertadora de Javé.
         Para relatarem essa ação libertadora de Javé, os autores usaram o artifício literário das pragas, ou seja, de castigos. A fonte de informações deles foi, sem dúvida, a tradição oral de seu povo. E era forte na tradição a lembrança de que Javé agira em favor do povo no Egito com “mão poderosa”. (Confira alguns dos muitos textos: Ex 6,1; 32,11; Dt 3,24; 4,34; 5,15; 6,21; 7,8; 9,26; 11,2; Ne 1,10; Sl 136,12; Jer 32,21;Dn 9,15 etc.).
         Para concretizar essa expressão “mão poderosa” os autores usaram o artifício das “pragas” que têm certa base histórica, mas que foram reelaboradas.
         O núcleo histórico do relato sobre as pragas é este: “Javé agiu na história da libertação do povo de Israel”. Isso é certo, é histórico, é aferível, é real.
A composição e a redação literária dessa ação libertadora de Deus, foram feitas, em estilo épico, de guerra,  bem depois do êxodo e seguem a linha das tradições do povo. Uma tradição oral sempre salienta mais um ponto, exagera outro, esquece outro e nem sempre segue à risca a lógica. E é isso que se percebe no relato sobre as pragas. Elas não aconteceram, pois, tais quais são escritas. Há muitas contradições nos relatos e muita coisa difícil de acreditar! Por exemplo: as águas transformadas em sangue. Coisa difícil ou impossível. Além do que os magos fazem o mesmo prodígio em seguida; ou seja, fazem o que já estava feito! (Ex 7,22). Ainda: as moscas e a peste só atingem as casas e os animais dos egípcios e não fazem mal algum aos vizinhos israelitas (8,17-8; 9,4-6). O gado dos egípcios, que morrera na 5.ª praga (9,6), é atingido pela chuva de pedras (granizo)  na 6.ª  praga (9,25). Enfim, as trevas cobrem somente metade da cidade, onde moravam os egípcios; na parte da cidade onde moravam os hebreus havia luz (10,22-23).
         Não seria bom senso afirmar que as pragas aconteceram tal como vêm descritas, apelando para o poder de Deus, sua onipotência, sua  providência. Isso é inserir no texto coisas que ele não diz.
         Por outro lado, afirmar que tudo o que vem relatado é explicável naturalmente como fenômenos da natureza, é igualmente descabido. porque, aceitando esse tipo de interpretação é preciso admitir que o texto está relatando fatos históricos, acontecidos, comprovados. O que não é verdade, pois o autor não está fazendo reportagem. E mesmo que tais acontecimentos tivessem sido naturais, a sucessão deles é tão intensa que ultrapassa o natural! 
                  Foi dito acima que há um fundo histórico no relato sobre as pragas. Esse fundo histórico é constituído, acreditamos, por acontecimentos que se deram naturalmente, mas que foram entendidos pelos israelitas como castigos de Deus contra os egípcios. E tais acontecimentos certamente foram poucos, como por exemplo, uma violenta chuva de pedra que excepcionalmente ocorrera; o desbarrancamento anormal das margens do Nilo com o consequente avermelhamento das águas; o surgimento anormal de enxames de moscas após grande inundação; o aparecimento de nuvens de gafanhotos e até a chamada “morte dos primogênitos”.
         Quando a tradição oral sobre a saída dos hebreus do Egito foi escrita, o autor juntou todos os coloridos de que dispunha e os fundiu num só quadro, multicolorido, com todos os exageros e contradições que existem nas tradições orais.
         Numa palavra e repetindo o que se disse: as pragas são históricas como concretização da ação de Deus na história da libertação do povo hebreu do Egito.  Elas foram o caminho para a libertação. São elas expressões concretas e literárias do refrão conhecido por todo o povo hebreu e sempre usado nas suas profissões de fé: “Javé agiu em favor de nossos pais com mão poderosa e braço estendido (Dt 4,34; 7,19; 26,8; Sl 136,12)[22].

         A décima praga:  a morte dos primogênitos (12,29-36).
        
         Todos que lêem a narrativa sobre a morte do primogênitos  fazem muitas perguntas a respeito. E estão certos, porque a narrativa incomoda.
         A décima praga é algo muito especial. Por isso é destacada das
demais. A narração sobre a morte dos primogênitos dos egípcios, dizem os autores hoje, é muito difícil de ser entendida se ficarmos no texto que diz: à meia-noite o Senhor matou todos os primogênitos dos egípcios, desde o primogênito do faraó até o primogênito dos animais; não fez, porém, nenhum mal aos filhos dos hebreus (11,7 e 12,29).
         A montagem dessa história é bastante complexa. O trecho é uma colcha de retalhos de diversas tradições que foram alinhavadas aqui. No cap. 10,28-29, o faraó expulsa Moisés de sua presença e o próprio Moisés diz ao faraó que não voltará mais à sua presença. Todavia o cap. 11 mostra Moisés de novo na presença do faraó; e não só, mas é dito ainda que Moisés tinha grande prestígio em todo o Egito, junto à corte e junto ao povo. Ainda: os personagens que compõem a história do anúncio da morte dos primogênitos, nesse cap. 11, são um tanto nebulosos: não se fala do faraó, mas ele está na história; não se sabe a quem Moisés fala, embora seja dito que depois de falar, ele saiu da presença do faraó. Mesmo depois de ter assinalado que Moisés saíra do palácio do faraó, o texto volta a dizer que ele e Aarão fazem novamente prodígios diante do faraó!
O capítulo 12 relata sobre a saída do povo do Egito e sobre a celebração da Páscoa,  e dentro desse relato pascal é que vem  incluída a décima praga!
         Essa décima praga sempre foi considerada como a decisiva para a libertação do povo. Para os intérpretes mais antigos a praga deve ser entendida ao pé da letra: morreram de fato todos os primogênitos dos egípcios e salvaram-se todos os israelitas. E tudo isso aconteceu por obra de Javé.
         Todavia, essa interpretação não pode ser aceita, pois não existe nenhuma referência sobre esse acontecimento na História dos povos antigos, principalmente na história dos povos vizinhos do Egito. Se tivesse acontecido tamanha desgraça numa nação, haveria algum registro na História. Mas não há.
         Os  autores dizem hoje que nesse relato há dois núcleos: um núcleo histórico e um núcleo teológico-cúltico. O núcleo histórico é a afirmação de que houve, de fato, um acontecimento dramático que atingiu os primogênitos dos egípcios. São Jerônimo diz, citando uma antiga tradição judaica, que naquela noite, citada em Ex 11,4-6,  os templos egípcios foram destruídos por um terremoto; supõe-se que naquela noite era celebrada a “Festa de apresentação dos primogênitos” às divindades egípcias. Tal festa era tradicional no calendário religioso dos egípcios. Com o terremoto morreram todos os primogênitos dos egípcios, pois estavam reunidos num templo. Não só morreram os primogênitos como também foram destruídos os templos das divindades pagãs, egípcias.
         Essa informação de S. Jerônimo (Epístola 78 a Fabíola: ML 22,701) tem  certa base no próprio texto bíblico (Ex 12,12 e Nm 33,4). Nesses textos é dito que Deus exerceu sua justiça e seu julgamento contra os deuses do Egito. Isto é, destruiu-os e os seus templos (cf.  Ex 12,12).
         A décima praga seria então acontecimento histórico, real: houvera na história do Egito uma tragédia de grandes proporções, e que ceifara a vida de todos os primogênitos reunidos para uma festa religiosa de apresentação.
         Outra informação histórica que poderia fundamentar o relato bíblico é a da morte do filho primogênito do faraó Ramsés II (faraó do Êxodo). O fato constituiu-se em  tragédia nacional, porque o filho  estaria sendo preparado para ser o sucessor do pai.
Desse modo, as tragédias: terremoto que derrubara os templos ou a morte do filho primogênito do faraó seriam a base  da fuga dos hebreus. O terremoto que derrubara os templos foi interpretado também  pelo texto bíblico como vingança de Javé contra os deuses.
Outros autores propõem interpretação diferente, partindo, porém, dos mesmos textos (Ex 11-12) e da informação histórica de S. Jerônimo. Segundo esses autores, a morte dos primogênitos foi provocada pelos chefes do povo hebreu revoltado. Foram eles os “enviados de Javé”; são eles o “Exterminador” de que fala o texto (Ex 12,23). E os próprios textos bíblicos favorecem essa interpretação: os judeus não podiam, de fato, sair de casa porque era a noite da Páscoa (Ex 12,2 1-22); suas casas eram distintas das casas dos egípcios; não corriam perigo de serem confundidas, pois estavam marcadas com o sangue do cordeiro (12,2 1-22); os egípcios reuniram seus primogênitos num templo para a festa da apresentação conforme S. Jerônimo. Isso facilitaria a ação de vingança dos chefes e do povo hebreus. Além do que a noite era de lua cheia, pois a Páscoa era sempre celebrada na primeira lua cheia da primavera (Ex 12,6).
         A intervenção de Javé, provocando a morte de todos os primogênitos bem como derrubando o grande templo dos deuses, provocou a dor comum. Diante da dor comum a atenção dos egípcios e a oposição do faraó diluíram-se. Foi o momento oportuno para os israelitas partirem, aproveitando-se da ocasião. Essa partida constitui o chamado êxodo-fuga, que motivará, em seguida, feroz perseguição pelo faraó e pelos egípcios (Ex 14,5ss).
         A morte dos “primogênitos dos animais” é lembrada no texto apenas por redundância, isto é: já que Deus atingira os primogênitos dos homens não poderia poupar os primogênitos dos animais. A intervenção de Deus não teria sido completa. O texto sublinha a importância e o risco de ser primogênito.
         Esse é o núcleo histórico desse relato. Todavia, acreditamos, não é preciso entender como histórica a morte de todos os primogênitos. Se tal fato acontecera, haveria algum registro dele na História
como já foi lembrado. E não há. Certamente ocorreu uma tragédia local, como lembra S.Jerônimo,  no dia da “Apresentação dos primogênitos”, morrendo muita gente, principalmente primogênitos. Essa tragédia ocasional foi vista pelos hebreus como sinal de Deus e oportuna intervenção dele para a libertação de seu povo. E aproveitaram a ocasião. Esse núcleo histórico é depois reelaborado pelo autor sagrado: os primogênitos não devem ser oferecidos aos deuses, mas consagrados a Javé. Os primogênitos dos animais, porém, devem ser sacrificados (Ex 13,1- 2.11-16).
O núcleo teológico-cúltico constitui-se por essa consagração dos primogênitos a Deus. A partir da libertação do Egito, o povo de Israel deve ter consciência de que é ele “o primogênito” de Deus. E o povo escolhido entre tantos povos. A eliminação dos primogênitos dos egípcios e dos animais é o sinal dessa escolha, diz o texto. Como lembrança dessa pertença a Deus, Israel deverá consagrar-lhe todos os primogênitos, quer dos homens, quer dos animais. E diferentemente dos costumes pagãos, os primogênitos de Israel não devem ser sacrificados, mas “santificados”, isto é, separados, dedicados ao Senhor. Aqui entra o rito de consagração, ou o aspecto cúltico do relato. A consagração dos primogênitos a Deus tem o sentido de separação: dar a Deus as primícias. Esse rito demitiza o costume cananeu, principalmente, de sacrificar os primogênitos. Com esse rito cúltico-teológico o texto do Êxodo quer sublinhar que Deus é o autor e defensor da vida. Ele não quer a morte de ninguém. É nesse sentido que deve ser lida também a história do “sacrifício” de Isaac: Deus não quer a morte do homem, por isso há a substituição do homem pelo animal[23].
        

         A narração desse fato, em Ex 14,15-31, intriga qualquer leitor e desperta perguntas muito lógicas: é possível separar em duas colunas águas que correm? Por que os  egípcios foram cobertos pelas águas e os israelitas não? E outras.
         A imagem plástica que fazemos dividindo o mar em duas partes, é mais coisa de filme - embora os versículos 21 e 22 falem exatamente isso!
          Então é bom notar, de início, que o texto aqui citado (Ex 14,15-31) não designa o mar como “mar Vermelho”, mas fala somente de mar (14,16.21.23.26.27.28.29.30). A designação “Mar Vermelho”, que aparece nos capítulos 13, 14 e 15 do Êxodo,  como em outras passagens do Pentateuco (e no Novo Testamento em At 7,36 e Hb 11,29), é de procedência etiópica[24]. A tradução grega do Antigo Testamento (LXX) foi que traduziu erroneamente por “Mar Vermelho” o termo hebraico yam-süf, que significa mar das taboas.  Mar Vermelho era o nome popular na Eritréia porque havia certo tipo de bactéria que quando proliferava  deixava a água do mar avermelhada. A palavra “vermelho” em grego se diz “erithrós”. Por isso os LXX traduziram por “Mar Vermelho”[25]. E como se sabe,  onde há taboa não há profundidade.
 O texto diz que os israelitas entraram pelo meio do mar a pés enxutos. E já explica por que passaram a  pés  enxutos”: “Javé fez o mar se retirar com um forte vento oriental,que soprou a noite inteira: o mar ficou seco e as águas se dividiram em duas” (Ex 14,21). O forte vento que soprou durante toda a noite nas águas rasas do mar das taboas fez de fato essas águas recuarem, deixando o caminho aberto (= pés enxutos, de que fala o texto). Esse fenômeno é observável, de certo modo, em qualquer maré. A “divisão das águas” a que se refere o texto, não pode ser entendida à maneira do cinema, mas sim no sentido de que as águas recuaram. O aspecto surpreendente é que não é normal que isso aconteça. A intervenção divina estaria, segundo o texto, na precipitação do fenômeno por ordem de Moisés.
         A idéia que se tem de que as águas do mar se dividiram, vem da expressão: “...as águas se dividiram em duas... as águas formavam duas muralhas à direita e à esquerda” (Ex 14, 21 b-22). A impressão que se tem é que, de fato, os israelitas passaram por um corredor seco, dentro do mar, e com água pelos dois lados! É claro que isso é algo impossível de acontecer. Sem dúvida, Deus pode fazer milagres e os faz; mas certamente não faz milagres contra o bom senso. Como poderiam parar e formar um muro as águas que já estavam correndo naturalmente no fluxo e refluxo do mar? O agir de Deus é mais simples.
         Todas essas questões são levantadas a partir das citadas expressões de Ex 14,21-22. Todavia, as conclusões, as dúvidas e o suposto milagre que situamos nesse trecho, não estão na intenção do autor. Ele fala de outra coisa, mais importante e mais significativa do que um passar miraculoso por entre as águas do mar. De que falaria então o autor?
         Ele descreve a luta que o povo travou para sair do Egito e mostrando que apesar de tantos inimigos à direita e à esquerda, o Povo de Israel
 por seu fé em Deus conseguiu vencer e chegar à Terra prometida.
         O grupo sacerdotal que redigiu essa tradição histórico-religiosa sobre a vitória de Javé no Egito, seguiu esquema litúrgico para escrevê-la. O esquema litúrgico tem a finalidade de mostrar a força e a eficácia da palavra de Deus. Realmente, nesse relato podemos observar isso. A palavra de Deus pronunciada, sempre produz efeito, é cumprida. Nesse texto, Deus fala (Ex 14,1-4) e sua palavra é cumprida (14,8-9); novamente fala (14,15-17) e novamente sua palavra é cumprida (14,22-23); e pela terceira vez Deus fala (14,26) e outra vez a sua palavra é cumprida (14,27).
         O esquema litúrgico-sacerdotal quer celebrar o acontecimento da libertação num rito, onde a palavra de Deus tem toda a força. Deus liberta pela sua palavra. As forças do mal das quais Deus liberta seu povo são simbolizadas, nesse esquema litúrgico, pelo mar e pelas águas do mar. Dentro do simbolismo cósmico, as águas têm não só o sentido de salvação como também o de perigo e de destruiçãoª. Principalmente o mar, que é o conjunto das “muitas águas”, o “ajuntamento das águas” (Gn 1,10).
         A redação sacerdotal compara a “águas perigosas” os inimigos de Israel, tanto os egípcios opressores como os povos hostis encontrados no caminho para a Terra prometida (2Sm 22,17-18; S169,1 .15; Is 8,7; 28,2; Jer 51,55). Eles eram “águas perigosas” à direita e à esquerda do povo. Todavia, pela Palavra de Deus, pela força de Deus, o povo conseguiu passar ileso (= a pé enxuto) por um corredor de perigos à direita e à esquerda ( divisão das águas)[26].
         O texto em questão informa que foi Deus quem conduziu seguramente seu povo à libertação; informa que Deus é Força onipotente; ele venceu o faraó e os inimigos de seu povo.
         Essa é uma interpretação exegeticamente correta do relato sobre a passagem do povo pelo meio das águas (Ex 14,15-31). E tal interpretação encontra apoio seguro no “canto de Moisés” que está logo em seguida, no cap. 15 do Exodo. O “canto de Moisés” não fala da divisão das águas e nem da passagem dos israelitas pelo mar a pés enxutos. E deveria falar, pois é Moisés quem está celebrando a vitória. Mas fala exatamente de outro tipo de passagem feita pelo povo: a passagem pelo meio de inimigos: fihisteus, edomitas, moabitas e cananeus:
                   “Os povos  ouviram  e tremeram e o terror se espalhou entre os governentes filisteus, e os chefes de Edom ficaram com medo. O temor dominou os nobres de Moab; os governantes de Canaã cambaleiam todos.  Sobre todos eles cai o tremor e o temor. A grandeza de teu braço os deixou petrificados  até que teu povo atravesse, ó Javé, até que passe este povo que compraste” (Ex 15,14-16).
                   Os inimigos tremem à frente de Israel por obra de Javé (Ex 15,12-13).
                   Concluindo: a passagem pelo mar é fato histórico; aconteceu. Foi um dos passos fundamentais no processo da libertação. Tal passagem, que de fato foi perigosa, foi tomada também como símbolo dos perigos encontrados pelo povo na caminhada até a Terra Prometida. O perigo verdadeiro eram os povos inimigos de Israel. O texto bíblico usa simbolicamente as palavras “água” e “mar” para designálos. Passar pelo mar, pelos egípcios e pelos povos inimigos, foi de fato, para Israel, passar entre dois muros de perigo, “à esquerda e à direita”!


         A relação dos 10 mandamentos, ou decálogo, aparece em dois lugares na Bíblia: Ex 20,1-17 e Dt 5,6-21.
         No livro do Êxodo (Ex 34,28) é dito que os 10 mandamentos foram escritos por Moisés por ordem de Deus; no Deuteronômio (Dt 4,12-13 e 10,1-4), é dito que foram escritos pelo próprio Deus, em placas de pedra (5,22).
           A forma do decálogo é conhecida no Oriente; algumas religiões usavam listas de mandamentos semelhantes ao Decálogo como por exemplo,  o chamado “Código de Hamurabi”, rei da Babilônia (séc. XVII aC). [
A coluna de mármore com as  leis e mandamentos desse rei pode ser  vista ainda hoje no Museu do Louvre em Paris. Tem 2,25m de altura e 1,60 de diâmetro].
 A elaboração dos 10 mandamentos é de Moisés, pelo menos como núcleo legislativo. Os 10 mandamentos são uma síntese do modo ético de o homem comportar-se, quer como pessoa, quer como grupo social, tanto em particular como em público. 
         Os 10 mandamentos, como também as leis éticas naturais, são um reflexo da consciência humana em suas manifestações. Há, porém, diferença entre o decálogo e as leis éticas primitivas. Segundo essas leis, o homem deve prestar contas à divindade na outra vida. Na outra vida ele será julgado pelo que fez ou deixou de fazer. O decálogo, porém, apresenta ao homem exigências morais aqui na terra; exigências ordenadas por Deus. Deus interfere na história, aqui. Esse caráter sobrenatural é que distingue o decálogo das leis éticas antigas. “O Decálogo funda uma religião na qual a presença sobrenatural da divindade vive e opera por meio da consciência moral no meio do mundo”[27].
         Além do que o Decálogo é fundamentalmente diferente de todos os códigos éticos da antiguidade. Os três primeiros mandamentos, por exemplo, contêm as exigências do puro monoteísmo, a proibição de imagens para adorar e a observância do sábado. Isso não existe em nenhuma das listas de comportamento da antiguidade.
         Podemos agora responder à pergunta acima feita dizendo que os
10 mandamentos foram realmente dados por Deus, porque é Deus
mesmo quem está à base deles. Eles são um modo de comportar-se
e de comprometer-se em relação a Deus e ao próximo. Expressam a
vontade salvífica de Deus.
         Para mostrar que era Deus mesmo quem pedia ao povo a fiel execução de sua vontade, expressa pelos 10 mandamentos, a Bíblia usa um tipo de literatura, um recurso literário, chamado “esquema de teofania”, isto é, de aparições de Deus. Segundo o esquema, é Deus mesmo quem fala e promulga os 10 mandamentos. E segundo os israelitas, quando Deus fala, quando Deus aparece, há transtornos na natureza. Daí procede  a majestosa plasticidade narrativa da entrega dos 10 mandamentos a Moisés, segundo Ex 19,16-20,1-21: há fogo, nuvens, trovões, relâmpagos, fumaça, som de trombeta, medo, voz do céu!
         “O Decálogo é consequência lógica da libertação do cativeiro do Egito; é o estatuto do homem livre, segundo Deus, o que implica regulamentação do uso de toda a liberdade humana nas duas únicas direções capitais: nas relações com Deus e nas relações com o próximo. É por isso, aliás, que as tábuas da lei são duas. Mas elas são inseparáveis. É impossível bom relacionamento com Deus sem bom relacionamento com o próximo, e vice-versa”[28].


[1] C. MESTERS, Flor sem defesa (Vozes, 1983) p.15.
[2]  Veja nota ao pé da p. 34
[3]  Veja nota ao pé da p. 34
[4] . Citado no Diccionário Bíblico, F. Spadafora (Barcelona, 1959), verbete: “Gêneros literários”, p. 229.
[5] . Cf. M. ELIADE, La nostalgie des origines (Ed. Gallimard, 1971), p. 161ss; G. de CAMPEAUX, Le monde des symboles (Zodiaque, 1972, pp. 208-272)
[6] . Mitologia é historia fabulosa dos deuses, dos heróis da antiguidade. Vem da palavra mito, que é uma pequena história feita para explicar certas tradições ou crenças populares. A palavra mito, literalmente, quer dizer narração.
[7] . C. MESTERS, Paraíso terrestre: saudade ou esperança? (Vozes, 1971), p. 56-57.
[8] .Cf. C. MESTERS, Paraíso terrestre: saudade ou esperança? , p. 57-61.
[9] .Cf. C. MESTERS, Paraíso terrestre: saudade ou esperança?, p. 67.

[10].  Cf. C. MESTERS, op. cit., p. 97.
[11]. C  fC. MESTERS , op. cit., p.64. Cf.  JUAN ANTONIO ESTRADA, A impossível teodiceia. A crise da fé emDeus e o problema do mal. Paulinas, 2004)

[12] . Cf. C. MESTERS, op. cit. p. 79
[13] . Cf. B. BARTMANN, Teologia Dogmática (Vol. 1) (Paulinas, SP, 1962) p. 421-422.
[14] . Uma sintética exposição sobre o poligenismo pode ser vista no citado livro de C. MESTERS, Paraíso terrestre: saudade ou esperança? p. 103-105.
[15] . cf. Comentário Bíblico “San Jerônimo”, AT, vol. I, p. 79
[16] . Cf. ANET (Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament), p. 42-44.
[17] . Cf. J.L. R. de la PEÑA, Teología de la creación (Sal Térrea, Santander, 1986), p. 33.
[18] O livro do Eclesiástico não tem, quanto ao nome, uma maneira única de ser citado pelas Bíblias em português. A Bíblia de Jerusalém (Paulinas), a Bíblia das Vozes, a Bíblia da Ave Maria e a Bíblia Sagrada, Edição Pastoral (Paulus) - que uso nesse trabalho - usam o nome Eclesiástico.  A Bíblia, Mensagem de Deus (Lyola) usa o nome Sirácides. As Bíblias protestantes não têm esse livro.
[19] O mar morto tem 80 km de comprimento, com 15 km de largura no seu ponto máximo. Sua profundidade máxima é de 450 m. Está a 400 m. abaixo do nível do mar. Sua água é 25% mais salgada que a dos oceanos. Neste mar não há peixeis ou qualquer tipo de planta aquática ou marinha. Ele é formado pelas águas do rio Jordão.  Não há saída pra as suas águas; há porém intensa evaporação.
[20] Cf. L.H. GROLLEMBERG, A nova imagem da Bíblia (Herder, SP, 1970) pp. 63-64.
[21] O nome faraó é egípcio (par’oh ou também per-âa) e significa casa grande, palácio. Não é um nome pessoal, mas um título dos reis do Egito a partir da 18ª dinastia (séc. 16 a.C.)
[22] Cf. J.PLASTARAS, Il Dio Dell´Esodo (Turim, 1977), p. 84-100
[23] Cf. J.PLASTARAS, op. cit. p. 101 – 107; S. BARTINA, em: La Sagrada Escritura AT/I (Madrid, 1967), pp. 385-397.

[24] A tradução etiópica da Bíblia foi feita pelo texto grego no séc. IV. Dessa tradução foram feitas as traduções copta e árabe. É o Mar Vermelho que banha  a costa da Etiópia e grande parte da Eritréia.
[25] A Bíblia hebraica foi traduzida para a língua grega no ano 245 a.C. aproximadamente. Essa tradução é chamada “Tradução Grega”, ou também “Tradução dos 70 sábios” (LXX). Dizia-se  que 72 sábios, 6 de cada uma das doze tribos de Israel, tinham feito este trabalho em Jerusalém. Essa informação, , porém,  não é histórica, mas folclore religioso. – Delta designa aqui a foz do Rio Nilo, que é formada por vários canais e pequenas ilhas; tem a foz do Nilo a forma da letra D grega, por isso é chamada Delta.
25ª. Cf. J.J. MCKENZIE, Dicionário Bíblico, Paulus, São Paulo, 1984, Verbete “Água”, p. 19.
[26] Talvez possa ser entendida como simbólica a expressão usada em Ex 14, 21: “um forte vento do oriente soprando a noite toda” secou as águas. Vento e sopro são traduzidos em hebraico pela palabra Ruah. Ruah significa também “espírito”, “hálito” de Deus, vida. Pela fé na Palavra de Deus, o povo conseguiu passar com segurança no meio de tantos perigos e conseguiu viver. Deus “secou” os perigos e o povo pôde caminhar tranquilamente e salvar-se.
[27] Diccionario de la Bíblia, verbete: “Decálogo”, col. 446.
[28] Cf. Bíblia, Mensagem de Deus  (Loyola, 1983): comentário a Ex 20, 1-21.

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