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sábado, 31 de março de 2012

TEXTOS FREI MAURO STRABELI (MARÇO 2012): "BÍBLIA perguntas que o povo faz Nova edição, revista e atualizada " - PERGUNTAS E RESPOSTAS DE Nº 42 a 58:

42. Diz a Bíblia que o povo hebreu caminhou quarenta anos pelo deserto e que Deus fez muitos milagres em favor dele. Por que caminhar tanto tempo e por que tantos milagres?

         A caminhada do povo de Deus pelo deserto, bem como todos os fatos extraordinários que se deram antes e durante a caminhada são relatados nos livros do Exodo e dos Números. O livro do Exodo narra fundamentalmente a luta do povo hebreu pela sua libertação, a saída do Egito para a Terra prometida, a caminhada pelo deserto, a Aliança feita com Deus e termina narrando a construção da Tenda do Senhor, ainda no deserto (cap. 40). O livro dos Números continua a história da caminhada, narrando os acontecimentos que se deram, desde a a partida do monte Sinai (Nm 10,12) até a chegada do povo à Terra prometida, na planície de Moab (Nm 22,1). 
         A caminhada foi longa e marcada por grandes intervenções de Deus, chamadas também “milagres no deserto”. Entre esses milagres podemos lembrar: a passagem pelo mar Vermelho (Ex 14,15-31), as águas milagrosas (Ex 15,22-26), o maná e as codornizes (Ex 16,1-36), a água que brotou da rocha (Ex 17,1-7) e a batalha contra Amalec (Ex I7,8-16) etc.
         Sobre a passagem pelo mar Vermelho e sobre o maná no deserto, já foi dito alguma coisa mais acima, nas perguntas n24 e n.º 27. Nos demais milagres aqui lembrados, e em outros tantos narrados nos livros do Êxodo e dos Números, podemos perceber, dentro do gênero literário desses livros, a “mão poderosa de Deus” que age na história e que dirige os acontecimentos para um fim determinado. Nem tudo é milagre, no sentido que nós entendemos. Há muito da mão do redator que interpretou como milagres tantos fenômenos que essencialmente não eram miraculosos. Mas ele viu em tudo isso “a mão poderosa de Javé”  agindo em favor de seu povo.
         Algumas observações, agora, sobre os outros milagres: a presença de Deus na coluna de fogo e na nuvem (Ex 13,21-22), as águas de Mara (Ex 15,22-26), a água que brotou da rocha (Ex 17,1-7) e a batalha contra Amalec (17,8-16). Depois disso diremos alguma coisa sobre os 40 anos da caminhada do Povo pelo deserto. 
 
a)     Presença de Deus na coluna de fogo e na nuvem (Ex 13,2 1-22)

         Esses dois elementos: fogo e nuvem, são parte das teofanias no mundo bíblico. Teofania quer dizer manifestação de Deus sob determinadas formas; a teofania é patrimônio religioso-cultural tipicamente israelita. Acontece, por exemplo, por ocasião da Aliança feita no Sinai (Ex 19,16-19): Deus revela-se, manifesta-se, através da convulsão da natureza; aparecem aí os elementos típicos da teofania: nuvem, fogo, trovão, terremoto, vozes do céu.
         O fogo é na Bíblia sinal da presença de Deus; Javé é fogo que consome (Dt 4,24; 9,3; Is 33,14).
         Por outro lado, a nuvem como elemento teofânico, é também muito lembrada na Bíblia. Javé aparece nas nuvens (Jz 5,4); as nuvens são o carro de Javé (Sl 18,10); ele caminha sobre as nuvens (Sl 68,5).
         Portanto, a “coluna de nuvens” durante o dia, e a “coluna de fogo” durante a noite, que acompanhavam e protegiam o povo de Deus na caminhada, são imagens, símbolos, da presença de Deus no meio de seu povo. Deus caminhava com ele e o protegia dia e noite, quer dizer o texto.

         b) As águas milagrosas de Mara (Ex 15,22-26)

         A força do texto não está no “milagre” que Moisés faz tornando a água salobra em água potável. O texto indica outra direção: a rebeldia do povo. Sublinham esse estado de rebeldia os termos: Mara, água amarga e a locução “não puderam beber”. A caminhada pelo deserto é pontilhada por murmurações do povo contra Deus e contra Moisés, e por revoltas (Ex 15,22-26; 16,2; 17,3; Nm 11,4-6; 20,2-14). A força do texto está em mostrar que, apesar de tudo, Deus sempre atendeu seu povo, dando-lhe alimento e água; um povo que não queria, porém, arcar com as dificuldades da caminhada para a libertação; caminhada que exigia sacrifícios, dureza, luta e não comodidade e inércia. Povo amargo e rebelde. E esse o núcleo da narração. Deus precisou mudá-lo, transformá-lo – esse era o milagre.
         Moisés torna a água potável, lançando na fonte um pedaço de madeira (v. 25). No deserto, diz-se, existia um tipo de madeira que tinha a propriedade de tornar a água salobra em água potável; era usada pelos beduínos. O livro do Eclesiástico alude a isso também (Eclo 38,5). O texto hebraico, porém, atribui ao “poder de Deus” e não à virtude da madeira esse milagre. Uma interpretação plausível do texto pode ser esta: por obra de Deus, usando também das qualidades naturais de uma árvore, Moisés tornou a água amarga em água potável.[55]

         c) A água que brotou da rocha (Ex 17,1-7)

         O tema desse relato é o mesmo de Ex 15,22-26 e de Nm 20, 1-13, isto é: fala da murmuração e da revolta do povo. Os nomes dados ao lugar lembram essa nova revolta do povo: Meriba, que quer dizer contestação em hebraico, e Massa que quer dizer tentação. O povo contestava e tentava a Deus, isto é, exigia dele provas cada vez maiores, desafiando-o. O texto deixa claro que o povo exigia que Deus lhe obedecesse, fazendo-lhe sempre as vontades, e não o contrário, o povo obedecer a Deus: “Está Javé no meio de nós ou não?” (v. 7).
         A prova que Javé dá ao povo de que ele continua presente é o “milagre” da água que brota de rocha, pela intervenção de Moisés. A força do relato, também aqui, está em insistir que apesar de tudo, novamente Deus atende seu povo e dá-lhe nova oportunidade para mudar de atitudes, crer nele e realizar a própria libertação. Deus é capaz de mudar uma rocha em fonte de água,  diz o texto, isto é, Deus é capaz de mudar esse povo rebelde, contestador, desafiante acomodado, em povo obediente, pacífico, dinâmico e liberto (cf. Dt 8,14- 15 e Sl 114,8).
         O texto assinala ainda a ideia bíblica de que Javé é  a fonte da vida. Afastar-se de Javé, abandoná-lo, é beber água contaminada; ser infiel a Javé é separar-se da fonte viva e pura (Jr 2,13; 17,13).
         Outra ideia que o texto sugere também e usada pelo profeta
Ezequiel é esta: estar longe de Deus, a Fonte da vida, é morrer de sede.
Distanciandose o povo, da fonte que é Deus, passará pela grande
sede, o exílio no “deserto dos povos” (Ex 20,35). Convertendo-se a
Deus, voltando à Fonte da água viva, o povo terá água em abundância
(Is 30,25; 35,4-7; 41,15-18; 43,20; SL36,10).
         Finalmente: a presença de Moisés que bate na rocha com um cajado,
é artifício literário que lembra a rabdomancia, isto é, a ação mágica
feita por meio de pauzinhos ou bastões. A narração é posterior ao fato
e já é interpretada: Deus sempre atende o seu povo por meio de
Moisés. O mais importante no relato não é a ação de Moisés, e sim a
ação de Deus que sempre está à frente de seu povo (v. 6)[56]

         d) A batalha contra Amalec (Ex 17,8-16)

         O caráter “miraculoso” desse relato aparece nas atitudes de Moisés sobre a colina: enquanto mantinha as mãos levantadas, seu povo vencia; quando abaixava as mãos, o inimigo vencia.
         É preciso observar que o relato não diz que foi Deus quem mandou Moisés agir daquele maneira; não diz também que Moisés estava rezando com os braços abertos —como se diz habitualmente; e não descreve batalha alguma! Dessas observações pode-se concluir que a intenção do autor ao relatar esse fato é bem outra. Com narração estilizada ele quer transmitir algumas idéias fundamentais da história e da fé do povo hebreu.
         Primeiramente assinala que Amalec e seu povo sempre foram inimigos do povo de Deus, e que são antigas a antipatia e a hostilidade deles contra o povo hebreu. Depois, quer o autor sublinhar a autoridade de Moisés; mesmo diante da rebeldia de seu povo não perdeu ele a liderança e o controle da situação. Não perdeu o bastão de comando.
         O bastão, ou a vara de Deus, está sempre nas mãos de Moisés quando ele toma alguma atitude ou realiza importante façanha em favor do povo (Ex 7,9-12; 7,14-10, 13.16; 17,5 e Nm 20,8-9).
         O bastão tem dois sentidos no texto: um, concreto, é o bastão ou cajado de pastor que Moisés usava e do qual não se desfez quando passou a dirigir o povo; outro, simbólico, é o bastão designativo de sua autoridade de condutor do povo. Num primeiro tempo o bastão foi usado por Moisés como a varinha dos mágicos do Egito, por ocasião das pragas. O texto sobre as pragas (Ex 7-8 principalmente) conserva a lembrança de um Moisés mago, que usa o bastão para provocar encantamento (rabdomancia); a arte mágica era uma disciplina na formação dos egípcios. Depois, o bastão é usado como símbolo da autoridade (17,8-12).
         Para o israelita o bastão de Moisés tinha significado que ultrapassava o concreto: era sinal da autoridade dele e de sua investidura como representante de Deus para conduzir o povo; era um “bastão de Deus” (Ex 4,20; 17,9).
         O texto de Ex 17,8-12 assinala então um dado teológico: toda vez que o povo estava com Deus e era fiel a ele (Ex 15,16), nenhum mal o atingia; sempre era vencedor dos inimigos. Para isso devia obedecer à voz e ao comando de Moisés que dirigia o povo em nome de Deus. Por outro lado, toda vez que o povo esquecia-se de Deus e rejeitava seu representante (Moisés) tornava-se povo desunido, rebelde e vencido. Enquanto a autoridade de Deus fosse acolhida e preservada, o povo seria vencedor; toda vez que fosse rejeitada e esquecida, seria povo vencido. [57]

         e) Os 40 anos de caminhada pelo deserto

         O roteiro exato da caminhada do povo pelo deserto é impossível de ser traçado. Certamente os dados geográficos fornecidos pelos textos não são originais. E há neles informações contraditórias. De modo que hoje se estabelecem até três roteiros diferentes para essa caminhada. A travessia do deserto até a chegada do povo ao vale do Jordão é descrita em Ex 15,22—
19,2; Nm 10,11—14,45; 20,1—22,1; Dt 1—3; Nm 33, 1-49.
         O livro dos Números informa que o tempo da caminhada foi de 40 anos (Nm 14,32-34). As indicações histórico-geográficas que esse livro fornece em outras oportunidades, contradizem a possibilidade de caminhada por 40 anos. As explicações e as teorias dos estudiosos são muitas, até porque os textos favorecem todas as hipóteses. [58]
         Resumidamente podemos dizer que é um dado tradicional da literatura religiosa hebraica que o povo de Deus caminhou 40 anos pelo deserto até alcançar a Terra Prometida (Am 2,10;5,25; Ex 16,35; Nm 14,33 etc.).
         Não se pode, porém, tomar essas indicações bíblicas ao pé da letra. Já foi dito acima que há impossibilidade de se refazer o itinerário do êxodo com exatidão, a partir das informações dadas pela própria Sagrada Escritura. Isso leva a supor que a especificação “quarenta anos” seja simbólica, O número 40, na numerologia hebraica, indica, de fato, a duração de uma geração ou também longo período cuja duração não pode ser precisada. E a Bíblia traz inúmeros exemplos:
— a chuva que causou o dilúvio durou 40 dias e 40 noites (Gn 7,12.17), ou seja: choveu durante muito tempo;
— Isaac casa-se aos 40 anos (Gn 25,20), isto é, mais maduro;
— a terra descansou por 40 dias (Jz 5,32; 8,28), isto é, por muito tempo;
— Moisés jejuou 40 dias e 40 noites sobre o monte Sinai (Ex 24,18), o que vale dizer, fez jejum longo e absoluto;
— a exploração da terra a ser conquistada pelos judeus durou 40 dias (Nm 13,25; 14,34), ou seja, levou tempo;
— a viagem de Elias para o monte Horeb durou 40 dias e 40 noites (lRs 19,8), isto é, foi bastante longa;
— Jonas pregou em Nínive durante 40 dias (Jon 3,4), isto é, por muito tempo;
— Jesus jejuou durante 40 dias e 40 noites no deserto (Mt 4,2); e apareceu aos discípulos e com eles ficou por 40 dias (At 1,3).
         E há dezenas de outros exemplos na Bíblia.
         Todos esses exemplos não especificam tempo cronológico, mas espaço de tempo mais ou menos longo. O número 40 é, portanto, nessas passagens, número simbólico. E no caso que analisamos aqui, significa que a caminhada do povo desde a saída do Egito até às margens do Jordão foi muito longa, levou muito tempo. Fica em aberto a questão de se traçar, a partir dos textos bíblicos e de outros, o roteiro geográfico dessa caminhada. Se é que vale a pena e tenha algum valor!
         A caminhada pelo deserto se tornou, porém, um ponto referencial da teologia bíblica, O povo de Deus é povo a caminho da salvação. A salvação tem seu começo na hbertação do homem de toda espécie de escravidão. Vai-se realizando no Hoje da História, que é o deserto, cheio de perigos, de conquistas, de derrotas, numa tensão constante. A salvação não se constrói pacificamente, tranquilamente. Ela é opção fundamental que exige do homem renúncia e afoiteza, avanços e recuos. É nessa caminhada que Deus se revela com sinais e portentos como se revelou ao povo no deserto.
         O deserto é o tempo da crise, da opção, pois é o lugar onde Deus se revela. Por isso os profetas têm certa preferência pelo tema do deserto. Oséias vê no deserto o tempo do primeiro amor, quando Israel, esposa de Javé, correspondia ao amor de Deus (Os 2,17; 11,1; 13,4). Quando Israel, a esposa, prevaricou, Javé a conduz ao deserto onde ela se purificará e converter-se-á (2,16-17; 12,10). Também Jeremias usa o tema do deserto como referência teológica nas suas pregações (Jer 2,2-3). Isaías, do mesmo modo, explora essa temática (Is 63,11-13).
         Além dos profetas, o tema do deserto está muito presente nos salmos (Sl 77,21; 78,40.52; 105,38-41 e outros).
         Finalizando: os 40 anos de caminhada pelo deserto constituem sinal da Igreja caminhante, tempo importante da História da Salvação. E o espaço onde essa História da Salvação começa a articular-se historicamente. Nesse processo de salvação-revelação, tal qual o homem bíblico, o homem de hoje também se rebela, torna-se amargo e deixa tantas vezes de ver a “mão poderosa do Senhor” que se revela no seu dia-a-dia, na sua história.


É o  livro dos Números que relata esse episódio. Diz o livro:
“Do monte Hor, eles tomaram o caminho para o mar Vermelho, contornando o território de Edom. Ms o povo não suportou a viagem e começou a murmurar contra Deus e contra Moisés, dizendo: ‘Por que nos tiraram do Egito? Foi para morrermos neste deserto? Não temos nem pão, nem água e estamos enjoados deste pão de miséria.’ Então, javé mandou contra o povo serpentes venenosas que os picavam, e muita gente de Israel morreu. O povo disse a Moisés: ‘Pecamos, falando contra Deus e contra você. Suplique a Javé que afaste de nós estas serpentes.’ Moisés suplicou a Javé pelo povo. E Javé lhe respondeu: ‘Faça uma srpente venenosa e coloque-a sobre um poste: quem for mordido e olhar para ela, ficará curado.’ Então Moisés fez uma serpente de bronze e colocou no alto de um poste. Quando alguém era mordido por uma serpente, olhava para a serpente de bronze e ficava curado” (Nm 21,4-9).

         O mesmo fato é lembrado também em Dt 8,15 onde é dito que Deus conduziu o povo “através do deserto, cheio de serpentes venenosas, escorpiões e sede”.  Pelo que se lê no livro dos Números, toda pessoa, picada por uma daquelas cobras que apareciam no deserto, ficava curada quando olhava para a figura da serpente de bronze que  Moisés fizera  por ordem de Deus (Nm 21,8).
         Também aqui não podemos deixar de sublinhar que essa narração não é histórica no sentido como nós entendemos história, isto é, que foi isso mesmo que aconteceu. Essa narrativa é considerada pelos estudiosos  como narrativa etiológico-folclórica, isto é,  quer transmitir informação sobre um fato extraordinário acontecido no deserto e que tal fato estava ligado, de um lado, à poderosa ajuda de Deus e de outro, à falta de confiança do povo. Por outras palavras: a narração fala de crise na caminhada.  Além disso, há   uma  história cultural por detrás desse fato, que explica ou dá o sentido do gesto de Moisés. E no centro dessa história está a figura da serpente.
         A serpente tinha papel importante na cultura no Antigo Oriente. Nós sabemos disso pelos documentos antigos, pela literatura que chegou até nós e pelas descobertas arqueológico-bíblicas.
         A serpente tinha função de destaque na mitologia e no folclore da antiguidade. Os antigos acreditavam que a serpente era o símbolo da vida ou da morte. E esse tipo de crença conserva-se ainda hoje. Por exemplo, o símbolo da medicina e da farmácia é uma cobra enrolada numa varinha: é o símbolo antigo da vida. A serpente era considerada divindade que dava a vida. Tal idéia era difundida na antiguidade entre os sumérios, mesopotâmicos, judeus e mesmo entre os romanos.
         Por ser considerada símbolo de vida ou de morte, a serpente aparece muito na literatura sagrada de todos os povos antigos. Na Bíblia ela aparece várias vezes e quase sempre ligada a esse binômio: vida-morte. Em Gn 3 a serpente é a responsável pela expulsão do homem do paraíso e pela morte que entrou no mundo. O Apocalipse fala que a antiga serpente seduziu o homem (Ap 12,9; 20,2). O Êxodo relata o episódio do bastão de Moisés que se transformou em serpente e refere as palavras de Javé, o Deus da vida: “Isso é para acreditarem que Javé, o Deus dos antepassados deles, o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó, apareceu a você” (Ex 4,5). Temos aí o binômio: serpente = morte, Javé = vida. Isaías faz referência às serpentes como castigo aos filisteus (Is 14,29); o livro dos Números relata o episódio acima citado, em que a figura da serpente é ligada à conservação da vida (Nm 21,4-9).
         Além desses casos citados, a Bíblia faz ainda muitas referências sobre as serpentes: os Salmos, por exemplo, aludem ao veneno delas como veículo de morte (Sl 58,5), e à sua língua perigosa e venenosa, segundo a concepção dos antigos (Sl 140,4); o veneno delas é castigo, diz o Deuteronômio (Dt 32,24); o sibilar da serpente é perigo, diz o livro da Sabedoria (Sb 17,9). Refere ainda a Bíblia que a serpente se esconde porque é traiçoeira (Am 5,19; Ecl 10,8).
         Fora do campo bíblico, no Antigo Oriente, é conhecida a figura da serpente que rouba a planta da vida do herói Guilgames (= corresponde a Gn 3 em que a serpente rouba a vida divina a Adão e Eva); aparece ainda a serpente nas mitologias, como monstro do mar, chamado Leviatã. A Bíblia lembra essa crença (Sl 74,13- 14; Jó 3,8; Is 27,1).
         O temor que o homem tem da serpente levou-o a adorá-la, transformando o medo em submissão na tentativa de escapar do perigo que ela representava. Desse modo, no Antigo Oriente, aparecem os diversos cultos sagrados dirigidos à serpente, como deusa da vida e da morte, e às vezes também como símbolo fálico da transmissão da vida — como em Canaã.
         O encantamento de serpentes, tão comum no Oriente, talvez possa ser visto por esse prisma cúltico: tentativa de domínio do homem sobre o monstro que o atemorizava. A Bíblia fala também dos encantadores de serpentes (Sl 58,5-6; Jr 8,17; Ecl 10,11; Eclo 12,13; Tg 3,7).
A serpente era considerada como divindade na Grécia, no Egito, na Babilônia e em Canaã. Uma divindade ligada à vida!
         É nesse contexto que devemos inserir o relato de Nm 21,4-9.
         Entre os sumérios era conhecida a figura da serpente enrolada numa varinha como sinal da vida. Um símbolo que, como foi dito, conserva-se até hoje e é o logotipo da classe médico-farmacêutica.
         O relato do livro dos Números, como foi dito acima,  é considerado relato etiológico, como tantos outros na Bíblia. É feito para dar a explicação necessária de algo que ninguém explicara até então: fato tradicionalmente transmitido de que houvera o perigo das serpentes na caminhada pelo deserto; de que houvera muitas mortes causadas pelas picadas das cobras; a murmuração do povo contra Moisés por causa das dificuldades enfrentadas na caminhada; e finalmente sabia-se que diante dos perigos o povo pedira a ajuda de Deus
         O redator do texto faz, bem depois, um relato para explicar tudo isso, usando o conhecido símbolo da serpente, deusa da vida. A vida foi conservada, diz ele, não pela deusa-serpente, mas por Javé que é o Deus da vida e a pedido de Moisés. Foi Javé quem conservou a vida de todos os que lha pediam e não a serpente. A picada dessas cobras fora castigo para os revoltados, diz o autor.
         Com esse relato, o redator sacerdotal do livro dos Números explica a causa, o porquê da tradição sobre as mortes no deserto causadas pelas cobras; também desmitifica a divindade pagã, pondo a origem e a manutenção da vida do homem em Javé, que é o Deus da vida (Ex 3;13-14). Todo aquele que olhar para Javé, quer dizer o texto, será salvo, será curado (Is 45,22; 49,25; Jr 17,14).
         Tudo o que foi dito acima é realmente um fundo cultural a respeito do culto às serpentes nas religiões antigas. Mas  no povo de Israel nunca houve culto algum à serpente e nem Moisés fez serpente alguma para ser adorada. Isso seria impensável dentro da rígida defesa do monoteísmo que a Sagrada Escritura faz. Aceitar esse texto literalmente seria pura  idolatria.
         Afinal de contas, o que o texto quer dizer então?
         Podemos dizer o seguinte: o povo de Israel levou tempo, porém,  para se desfazer da idolatria e aderir ao monoteismo puro (adorar um só Deus). A figura e a presença de ídolos estiveram sempre  presentes na vida do povo, às vezes veladamente, até o tempo dos reis (Os reis começaram mais ou menos em 1040 aC. com Saul; Moisés é de 1250 aC.). E até alguns reis foram idólatras como por ex.  os reis Joás e Jeroboão II no reino do Norte (veja  2Rs 13,10-11; 13,23-29) e os reis Acaz e Manassés no reino do Sul (veja 2Rs 16,1-4; 21,1-7). A idolatria deixa de existir no Povo de Deus somente depois do exílio da Babilônia (587-539 aC.).
         O texto presente, do livro dos Números, não se refere propriamente a uma serpente de bronze feita por Moisés para ser adorada e curar o povo. O texto na verdade é bem posterior a Moisés (é do século IV aC) e quer explicar outra coisa: quer explicar por que havia no Templo de Jerusalém a imagem de uma serpente chamada Noestã -  como relata o segundo livro dos Reis (2Rs 18,4).
Esse texto diz que Noestã era a serpente que Moisés fizera no deserto. O autor do texto pretendia justificar a presença dessa imagem da serpente (que era velada idolatria) dizendo que ela ela estava ali no Templo porque era a mesma serpente de bronze que Moisés fizera no deserto. Seria ela apenas  uma lembrança do grande Moisés!  Mas  isso era realmente uma tentativa de justificar a idolatria porque Moisés não fizera serpente alguma! A história diz que o rei Ezequias despadaçou essa serpente de bronze  (2Rs 18,4). O autor do texto de Números monta essa história para tentar justificar a presença do ídolo (a serpente de bronze) no Templo.
O relato de Números é apenas um relato etiológico-ideológico.
          Esse relato pode ser considerado também folclórico, isto é: seria  referência ao costume popular oriental de as pessoas usarem figuras de cobra de bronze como amuleto contra picadas desses répteis. Como hoje, na versão cristã, o uso popular de medalhinhas de são Bento contra picadas de cobra. A narrativa bíblica é, sem dúvida, figurada, simbólica,  Assim também a entendeu Jesus quando disse:  “Assim como Moisés levantou a serpente no deserto, do mesmo modo é é preciso que o Filho do Homem seja levantado.  Assim todo aquele que acreditar nele terá a vida eterna” (Jo 3,14-15).
         O tema da “serpente” aparece muito no Novo Testamento também: Mt 7,10; 10,16; 23,33; Mc 11, 18; Lc 10, 19; 11,11; Jo 3, 14-15; Ap 9,19; 12,9.14.15; 20,2 etc.


         Algumas corrrentes religiosas de origem protestante têm o hábito de dizer que os católicos adoram imagens. E pretendem convencer o mundo inteiro de que isso é a mais pura verdade!
         Essa afirmação não tem fundamento algum e sequer merece consideração, pois é sem sentido e não suporta a menor das análises histórico-teológicas. Tolice extrema cometeria quem adorasse uma estátua, uma imagem. E seria digno de compaixão e até de tratamento psicológico o católico que assim agisse.
         Esse tipo de “problema bíblico” não é levantado, porém, pelas grandes confissões religiosas protestantes. O alto protestantismo tem uma teologia séria, senso de ecumenismo e de colaboração científico-teológica com a Igreja católica.
         Na Bíblia, Deus proíbe, de fato, fazer imagens; mas imagens para adorar. Assim diz o livro do Êxodo:
        
         “Não faça para você ídolos, nenhuma representação daquilo que existe no céu e na terra, ou nas águas que estão debaixo da terra. Não te prostre diante desses deuses, nem sirva a eles, porque eu, Javé seu Deus, sou um Deus ciumento [...]” (Ex 20,4-5).
         A mesma coisa repete o Deuteronômio:
         “Não faça ídolos para você, nenhuma representação do que existe no céu, na terra ou nas águas que estão debaixo da terra. Não se prostre diante desses deuses, nem os sirva [...]” (Dt 5,8-10).
         E há dezenas de outros textos, vigorosos e veementes, contra os ídolos e a idolatria. Por exemplo:
         “Os ídolos são como espantalho numa plantação de pepinos: não sabem falar e precisam ser carregados, porque também não sabem andar. Não tenham medo deles, pois nada de mal podem fazer, e não são capazes de fazer o bem” (Jr 10,5).
         “Eles são ignorantes e insensatos: o ensinamento dos ídolos é só madeira. Eles trazem de Társis prata batida e de Ofir trazem ouro, tudo trabalho de carpinteiro e de ourives...” (Jr 10,8-9).
         “... e com sua prata fazem estátuas findidas, ídolos que eles inventam, todos trabalho de artesão”(Os 13,2).
         “O escultor faz uma estátua; vem o ourives e a cobre de ouro e lhe solda correntes de prata. Quem faz uma oferta pobre, escolhe madeira que não apodreça e procura um escultor hábil para fazer uma estátua que não se mova” (Is 40,19-20).
         É célebre a sátira de Isaías contra os ídolos, as imagens e os idólatras:
         “O ferreiro trabalha o ídolo com a fornalha e o modela com o martelo. Forja-o com a força de seu braço; mas, em dado momento,  fica com fome e perde a força, ou então tem sede e fica exausto. O carpinteiro mede a madeira, desenha a lápis uma figura, e a trabalha com o formão e lhe aplica o compasso. Faz a escultura com medidas do corpo humano e com rosto de homem, para que esta imagem possa estar num templo feito de cedro. Corta cedros, escolhe um cipreste ou um carvalho, deixando-os crescer no meio das árvores da floresta; planta um pinheiro e a chuva o faz crescer. Tudo isso serve para queimar; o próprio escultor usa parte desta madeira para se aquecer e assar o seu pão; e também fabrica um deus e diante dele se ajoelha, esculpe uma imagem para se ajoelhar diante dela. Com a metade ele acende o fogo, assa a carne na brasa e mata a fome; também se esquenta ao fogo, e diz: “Que coisa boa! Eu me esquento enquanto olho as chamas!” Depois com o resto ele faz um deus, uma imagem esculpida. Em seguida, ajoelha-se diante dela e faz uma oração, dizendo: “Salva-me porque tu és o meu deus”(Is 44,12-17).

         E há, como se disse, dezenas de outros textos bíblicos contra os ídolos e os idólatras (Ez 18,15; 20,7; 23,7; Hab 2,18-19; At 15,20 e muitos salmos). Os que lembramos acima são os mais citados pelas seitas contra a “adoração de imagens” pelos católicos.
         Nos textos citados por extenso e nos outros indicados, a tônica, o refrão, é a condenação por Deus das imagens feitas para serem adoradas. Aí elas tomam o lugar de ídolo. E o ídolo nada é, diz Isaías (Is 41,29); por isso adorá-lo é atentar contra o Deus Único (Ex 20,5b).
         Excluída a intenção de adoração, as imagens são indiferentes; são sugestivas principalmente nos campos da arte, da decoração, da pintura.  A arte não tem religião; ela é bonita ou feia, boa ou ruim!A própria Bíblia fala do uso de imagens como decoração. Não as condena de modo algum. Elas estão presentes no Templo (lRs 6,29) e até no coração do Templo, no lugar mais sagrado que era o “Santo dos Santos” (lRs 6,23-28; Ex 26,3 1-33).
         Os judeus usavam imagens como sinais da presença de Deus e por elas Deus até lhes falava (Ex 25,18-22). Os citados textos dizem resumidamente:

         “Salomão mandou esculpir figuras de querubins, palmeiras e lores ao redor de todas as paredes do Templo,tanto por fora, como por dentro, e mandou cobrir de ouro o piso interior e exterior do Templo” (lRs 6,29).
         “Para o Santíssimo, Salomão fez dois querubins de oliveira selvagem, cada um com cinco metros de altura” ( 1Rs 6,23).
         “Nas duas extremidades da placa, faça dois querubins de ouro batido, cada um sairá de um extremo da placa e a cobrirão com as asas estendidas por cima. Estarão um diante do outro , olhando para o centro da placa. Aí me encontrarei com você; e, de cima da placa, do meio dos querubins que estão sobre a arca da aliança, direi a você tudo o que deve ordenar aos filhos de Israel” (Ex 25,18-20.22).

         Que Deus falasse pelos querubins era coisa tão aceita pelo povo de Israel que até havia um ditado popular que dizia: “Deus está sentado entre os querubins” (lSm 4,4; 2Sm 6,2; Sl 98,1 e outros.). E tais querubins, tais imagens e pinturas, foram feitos por ordem de Javé, como se viu. Foi Javé quem deu os pormenores para a construção do Templo — segundo o estilo da narração (2Sm 7,12-13; 1Cr 22,8-10; 1 Rs 6,11-13). Foi também Javé quem deu o modelo para a construção do Santuário (Ex 25,40).
         Pelos textos bíblicos pode-se dizer que Deus tanto proíbe como manda fazer imagens  –  por ex. a serpente no deserto (Nm 21,9).
         A intenção da Bíblia, porém, não é a de falar de imagens, e sim do significado da imagem. Se a imagem leva à idolatria, ela deve ser condenada e abolida; se é lembrança, objeto de arte ou de decoração, é coisa indiferente.
         Os judeus, no tempo da instalação na terra de Canaã (cf. livros dos Juízes e de Samuel), tinham muita dificuldade para distinguir entre o significado religioso e o artístico de uma imagem, pois conviviam com povos idólatras. Rodeados por povos pagãos, os judeus sentiam grande atração pelas religiões pagãs, que eram descompromissadas e permissivas. O javismo, religião do povo de Deus, era religião exigente e radical. A tentação de passar para as religiões dos vizinhos era grande. E tais religiões tinham como símbolos as várias imagens de seus deuses. Por isso toda imagem lembrava uma divindade. Daí a posição radical da Bíblia em proibir a fabricação e o uso de imagens para o povo judeu. Eram elas perigo de apostasia. Eram tentação. Isto está claro na Bíblia e na história das religiões. Afirmar diferentemente do que diz o contexto histórico é desvirtuar a Palavra de Deus e adulterar a História.
         A Igreja católica não estabelece o culto aos santos acima do culto a Deus (chamado culto de latria, isto é, de adoração). Somente Deus
deve ser adorado.
         O culto aos santos é ato público de veneração. É memória ou recordação. Santo ou santa, são cristãos, cristãs, que souberam viver o seu batismo e deram testemunho de Jesus Cristo e do Evangelho no mundo. Alguns deles foram até grandes pecadores, mas se converteram radicalmente a Deus e ao próximo. Por isso eles são modelos de santidade, modelos de vida.
         Quando a comunidade reconhece que de fato um irmão ou uma irmã na fé, viveu exemplarmente sua fé, seu batismo e testemunhou com palavra, com atos ou até com a própria vida o Evangelho de Jesus, a comunidade os declara “santos”, isto é, modelos de vida cristã e dignos de imitação. O número de santos canonizados oficialmente é muito grande; porém o número de santos declarados tais pelas comunidades é muito maior!
         Todo aquele que vive integralmente sua fé é digno de imitação, é modelo. São Paulo diz isso na primeira carta aos Tessalonicenses:
“De resto, irmãos, pedios e suplicamos no Senhor Jesus: vocês aprenderam de nós como comportar-se para agradar a Deus...”(1 Ts 4,1). Paulo se apresenta ainda como modelo pessoal para ser imitado: “Portanto, eu lhes dou um conselho: sejam imitadores” (1 Cor 4,16); “Sejam meus imitadores como eu o sou de Cristo” (1 Cor 11,1); “Irmãos, sejam meus imitadores...” (Fl 3,17).
         A imagem do santo ou da santa é apenas sinal. Lembra a pessoa que serviu e amou Deus e os irmãos. E sinal indicativo da grande realidade invisível: a santidade de Deus manifestada na vida daquele irmão ou daquela irmã. E nós vivemos num mundo de sinais, de símbolos; tudo é simbólico ou sinal. Assim, a linguagem que usamos na escrita ou que falamos é símbolo da comunicação; o círculo é símbolo da perfeição, da homogeneidade; o ponto é símbolo da totalidade, do que é completo etc.
         E no campo religioso o símbolo é constante: mitos das origens e do fim, o céu, o centro, a árvore, a serpente etc. E é no campo do simbólico que entram as imagens. Como sinais de realidades que não vemos. As imagens funcionam então como sacramentais.
         Essa percepção do valor simbólico pode ser comprovada na Igreja pós-apostólica, principalmente pelos desenhos de símbolos religiosos, de pinturas de santos e nas orações aos mártires, gravados nas catacumbas cristãs de Roma.
         É a partir dessa ótica histórico-psicológica e teológica que a Igreja propõe os santos à veneração da comunidade. A pessoa, porém, que fizer do santo o ponto final de sua fé, essa é herege e idólatra.
         Não se pode negar, todavia, que não haja abusos, exageros e até desvios no culto aos santos na Igreja católica. Muitos católicos, por deficiência de formação religiosa, tanto teológica como bíblica, têm mais amor, fé e confiança nos “seus” santos do que em Deus. Nunca participam de sua comunidade ou da Eucaristia; não lêem a Palavra de Deus, são avessos a todo tipo de formação religiosa, são alienados.., mas não deixam de fazer infalivelmente as suas novenas e devoções aos santos, e até supersticiosamente acreditarem correntes milagrosas!
         A Igreja católica nunca ensinou e nunca defendeu tal atitude. Pelo contrário, sempre censurou e condenou tal procedimento como contrário à Bíblia e à teologia.

         Essa afirmação é equivocada, totalmente. Está fundamentada na doutrina espírita, muito difundida no Brasil. Grande parte dos católicos não tem a devida formação religiosa para saber distinguir as profundas diferenças doutrinárias que existem entre o cristianismo e o espiritismo. O Evangelho de Jesus Cristo não é a mesma coisa que “O evangelho segundo o espiritismo”, de Allan Kardec, assim como a ressurreição de Jesus Cristo não é a mesma coisa que reencarnação espírita. São princípios doutrinais tão opostos quanto a água o é do fogo.
         Nós devemos, sem dúvida, respeitar as convicções religiosas das pessoas, mas  não aceitar suas idéias e princípios religiosos, opostos aos nossos e às nossas convicções.
         Muita coisa já foi falada, discutida e escrita sobre reencarnação e ressurreição. E muita coisa se escreve ainda. Aqui não discutirei esse tema. Darei apenas algumas pistas teológico-bíblicas que servirão para situar o problema, como também  responder à pergunta feita. [Nessa explicação usarei as siglas L.E. e E.S.E. para designar os livros de doutrina espírita: O livro dos espíritos (L.E.) e O evangelho segundo o espiritismo (E.S.E.), ambos de Allan Kardec), editados pela Federação Espírita Brasileira  e pela Livraria A.K. Editora respectivamente].


         1. O que é a reencarnação segundo o Espiritismo

         A reencarnação, segundo o espiritismo, é o retorno do espírito a novo corpo depois da morte. O espírito volta a assumir a carne, corpo novo; ou seja, o espírito da pessoa falecida reencarna-se em outro corpo.
         A alma ou o espírito pode reencarnar-se imediatamente após ter- se separado do corpo, como também pode levar algumas horas, alguns milhares de anos ou até milhares de séculos para reencarnar- se, diz Allan Kardec (L.E. p. 177-178). Durante esse período de “espera” para nova encarnação, diz Allan Kardec, o espírito vagueia como sonâmbulo lúcido por mundos especiais nos quais pode habitar temporariamente; tais mundos são uma espécie de acampamento, casa de campo, ou ilhas de descanso (L.E., p. 180-181). Os espíritos desencarnados andam errantes, vagando pelos espaços infinitos. Essa divagação é chamada de “princípio de erraticidade” pelo espiritismo (L.E. pp.  102 e 179)
         Depois de certo tempo e de certo progresso nesses mundos especiais e transitórios, o espírito reencarna-se.
         E por que deve reencarnar-se?
         Segundo o espiritismo, o espírito reencarna-se para purificar-se, uma vez que na primeira vida, ou nas vidas anteriores, não conseguira depurar-se. A reencarnação tem, pois, a finalidade de expiar as culpas cometidas na vida anterior e aprimorar o espírito. A cada nova existência o espírito dá um passo no caminho do progresso. E quando purificou-se completamente pelas sucessivas reencarnações, o espírito torna-se “espírito puro”, bem-aventurado (L.E. p. 114).
         O espiritismo baseia a necessidade de reencarnação na justiça de Deus: “Todos os espíritos tendem à perfeição e Deus lhes fornece os meios pelas provas da vida corpórea; mas em sua justiça lhes faculta realizar em novas existências o que não puderam fazer ou concluir numa primeira prova” (L.E., p. 246).
         A finalidade da reencarnação, segundo o espiritismo, é a purificação da pessoa; a necessidade da reencarnação é exigida pela justiça de Deus que quer salvar a todos e por isso dá a todos inúmeras oportunidades em vidas sucessivas. O motivo da reencarnação é o fato de terem os homens sortes diferentes no mundo: uns nascem ricos, outros pobres; uns sadios, outros doentes; uns bons, outros maus. Deus não poderia ter feito essas diferenças entre os homens; seria grande injustiça da parte dele. De modo que as diferenças entre as pessoas somente se explicam pelo fato de os espíritos, a princípio todos iguais, terem-se diferenciado uns dos outros por seu livre- arbítrio em encarnações sucessivas. O mal que o homem faz é uma dívida que ele tem a pagar; e paga ou aqui nesta vida ou em outras vidas sucessivas. Por isso há aleijados, deficientes, doentes, cegos e paralíticos no mundo; por isso há pessoas boas e caridosas também. Essas estão numa última fase de purificação!
         Conforme a doutrina espírita da reencarnação, há uma lei inexorável que exige o castigo, a punição de tudo o que o homem comete de mal. É lei, como o karma entre os budistas e hinduístas.[59] Reencarnando-se, o espírito “limparia seu karma” , isto é, melhoraria seu destino, sua sorte.

         2. Alguns textos bíblicos citados geralmente pelo espiritismo como provas da reencarnação
         a) O primeiro texto é Mt 11,14:
         “E se vocês quiserem aceitar, João é o Elias que devia vir”.
        
Para Allan Kardec esse trecho de Mateus é prova inequívoca da reencarnação; e o testemunho é do próprio Jesus: João era Elias reencarnado (cf. E.S.E., cap. IV,11).
         Isso, porém, não é verdade. O próprio João Batista negou ser ele  Elias:
        
         “O testemunho de João foi assim. As autoridades dos judeus enviaram de Jerusalém saerdotes e levitas para perguntarem a João: “Quem é você?” João confessou e não negou. Ele confessou: “Eu não sou  o Messias”. Eles perguntaram: “Então, quem é você? Elias?” João disse: “Não sou”. Eles perguntaram: “Você é o Profeta?” Ele respondeu: “Não”. Então perguntaram: “Quem é você?Temos que levar uma resposta para aqueles que nos enviaram. Quem você diz que é?” João declarou: “Eu sou uma voz gritando no deserto: ‘Aplainem o caminho do Senhor”, como disse o profeta Isaías”(Jo 1, 19-23).
         A interpretação espírita desse trecho, identificando em João Batista um Elias reencarnado, é muito arbitrária, pois o próprio João Batista desmentiu que ele fosse Elias, conforme lemos no texto acima. Além do que, essa interpretação não conhece uma regra elementar da exegese que ensina que um texto bíblico deve ser analisado e interpretado dentro de seu contexto. Tanto o texto quanto o contexto desmentem tal interpretação O texto são as palavras do próprio Elias (Jo 1,19-24); e o contexto que fala da figura de um Elias vindouro aparece numa passagem do profeta Malaquias que diz:

         “Vejam! Eu mandarei a vocês o profeta Elias, antes que venha o grandioso e terrivel Dia de Javé. Ele há de fazer que o coração dos pais volte para os filhos e o coração dos filhos para os pais; e assim, quando eu vier, não condenarei o país à destruição total” (Ml 3,23-24).
        
         O profeta Malaquias já anunciara o envio desse mensageiro (Ml
3,1). Diante da situação religiosa de seu povo, ele via a necessidade
de restauração, a qual deveria ser feita definitivamente pelo Messias.
Daí, em seus oráculos proféticos, ele anuncia esperançoso a vinda do
Messias e do seu precursor para logo.
         A vinda de Elias como precursor do Messias era crença da religiosidade popular judaica. Ele era considerado o grande defensor do javismo e o inimigo da idolatria. Sua grandeza moral era inquestionável. Por isso ele sempre gozou de alto prestígio na religiosidade hebraica. A partir desses dados é que se originou a crença de que ele viria nos tempos messiânicos para preparar o “Dia do Senhor”, ou o “Dia de Javé”. Esse “Dia de Javé” seria o dia em que Deus se manifestaria com todo o seu esplendor e poder; derrubaria todos os inimigos de Israel e restabeleceria a supremacia de seu povo. E a idéia da vinda de um Messias guerreiro e político, libertador da nação. O profeta Elias, dada a sua grandeza moral e autoridade, viria antes do Messias para pôr em ordem a comunidade de Israel. Restabeleceria primeiramente as doze tribos (cf. Eclo 48,10) e reuniria depois todo o povo.
         Malaquias é o último dos profetas clássicos.
         Quando os evangelistas começam a escrever os evangelhos eles retomam a tradição e crença populares sobre Elias-precursor e as aplicam a João Batista, que era, de fato, o arauto do Messias, o precursor (Mt 11,10; Lc 7,27; Mc 1,2).
         É a essa tradição que se refere Jesus. Suas palavras: “João é Elias que devia vir” (Mt 11, 14) não se referem absolutamente à reencarnação de Elias, “mas apenas dizem que João, por sua têmpera forte e destemida, reproduzia o papel de Elias”. [60]

         b) Outro texto citado é o de João 3,3:
         “Jesus respondeu: ‘Eu garanto a você: se alguém não nasce do alto, não poderá ver o Reino de Deus’”.
         A prova de que Jesus acreditava na reencarnação está, segundo
a interpretação espírita, nas suas palavras aqui pronunciadas, e que
Allan Kardec traduz assim: “Ninguém pode ver o Reino de Deus se
não nascer de novo”, e “... não vos espanteis do que eu vos disse, que é preciso que nasçais de novo” (Jo 3,3.7) (cf. E.S.E. cap. IV, 5-9). E diz ainda Allan Kardec:
         “Se essa crença (a reencarnação) tivesse sido erro, Jesus não teria deixado de combatê-la, como combateu tantas outras; longe disso, ele a sancionou com toda a sua autoridade, e a afirmou como uma condição necessária...” (E.S.E. cap. IV, 6).
         Tanto a tradução quanto a interpretação do texto feitas por Allan Kardec são equivocadas. Primeiro: Jesus não diz, segundo o texto bíblico original, “nascer de novo “, mas “nascer do alto “. A palavra grega original (ánothen) é advérbio que significa: do céu, do alto, de cima, aquilo que está em contraposição ao terreno. Não significa “de novo” ou novamente.
         “Nascer do alto “corresponde nesse texto de João a “nascer do Espírito” através da água (v. 5). É o que demonstra a análise estrutural do texto. Não é “nascer de novo”, reencarnar-se.
         Segundo seu ponto de vista, Allan Kardec interpreta esse texto negando-lhe o caráter teológico-batismal. Equivoca-se completamente desvirtuando o sentido das palavras manipulando-as  para afirmar que esse texto é reencarnacionista. Isso, a análise exegética, a filológica e a estrutural não o permitem.
         Em segundo lugar: o próprio Nicodemos desmente que as palavras de Jesus se refiram a novo nascimento carnal (reencarnação). Ele perguntou a Jesus: “... Como é que um homem pode nascer de novo, se já é velho?” (Jo 3,4).  Jesus  o corrige dizendo que não se trata de voltar ao seio da própria mãe -  como se fosse uma  reencarnação. Pelo contrário. Jesus lhe diz: “Quem nasce da carne é carne, quem nasce do Espírito é espírito” (Jo 3,6). Suas palavras e seu ensinamento referem-se pois ao nascimento espiritual do homem, à regeneração da nova vida pelo Espírito e não a novo nascimento carnal. A vida nova a que se refere Jesus não é, pois, a vida física. Isso ele o diz claramente a Nicodemos. Mas é a vida espiritual. Todo o texto e todo o contexto levam a essa conclusão. Sair dessa interpretação é forçar e adulterar a intenção de Jesus, do autor, da gramática e da exegese.

c) O terceiro texto é o de João 9,1-3:
         “Ao passar, Jesus viu um cego de nascença. Os discípulos perguntaram: ‘Mestre, quem foi que pecou, para que ele nascesse cego? Foi ele ou seus pais?’ Jesus respondeu: ‘Não foi ele quem pecou, nem seus pais, mas ele é cego para que nele se manifestem as obras e Deus’” (Jo 9,1-3).

         Pela pergunta que os apóstolos fazem a Jesus, tem-se a impressão de que o texto fundamenta a afirmação espírita de que as doenças e os males que uma pessoa sofre nesse mundo são castigos merecidos por pecados cometidos em vidas anteriores!
         Esse texto é citado pelo espiritismo como prova de que também os judeus acreditavam na reencarnação.
         A interpretação feita pelo espiritismo, dos textos até agora citados, é de carater fundamentalista, tomando os textos ao pé da letra e apoiando-se em tradução já tendenciosa. O texto do livro, o contexto mais amplo de toda a Escritura, a mentalidade religiosa do povo judeu não são levados em conta. Isso já foi dito.
         O texto aqui citado é um dos interpretados como suposta prova da crença judaica na reencarnação. Alian Kardec diz isso claramente
(E.S.E., cap. IV, 12).
         Os judeus, porém, não acreditavam na reencarnação. A pergunta dos apóstolos a Jesus representa uma mentalidade: os judeus julgavam, dentro da concepção corporativista daquele tempo, que uma pessoa pagava pela outra por um mal praticado. As consequências por mal praticado eram assumidas por alguém do grupo! Essa mentalidade excluía, pois, a responsabilidade pessoal. Foi combatida já no Antigo Testamento. Ezequiel condena-a duramente, dizendo que cada um é responsável pelo mal que faz (Ez 18). Também Jeremias rejeita esse modo de agir e de pensar (Jr 31, 29ss).
         No caso do cego aqui relatado, Jesus desmente categoricamente a afirmação de crença judaica na reencarnação, bem como desmente que o cego ou seus pais tivessem pecado: “Não foi ele quem pecou, nem seus pais, mas ele é cego para que nele se manifestem as obras e Deus” (Jo 9,3).
         Não podemos, pois,  aceitar uma interpretação que o texto não autoriza e nem a supõe implicitamente.

         d)  Outros textos
Há ainda três outros textos citados  pelo espiritismo sobre esse mesmo tema: Isaías 26,19; Jó 14,10.14 . Sobre esses textos Allan Kardec faz malabarismo exegético para tentar provar  uma suposta crença judaica na reencarnação.
         O primeiro texto é de Isaías  e diz:
         “Mas os teus mortos hão de reviver e seus cadáveres se levantarão. Os que dormem no pó vão levantar e cantar, pois o teu orvalho é um orvalho de luz, e a terra das sombras dará a luz” (Is 26,19).

         Allan Kardec traduz essa passagem a seu modo e a  interpreta dizendo que a expressão “teus mortos hão de reviver” é prova da reencarnação  (E.S.E. cap. IV, 12).
         Todavia a exegese bíblica e todo o contexto histórico-profético mostram que esse texto trata de uma ressurreição nacional, ou seja, o profeta diz que os inimigos do povo de Deus serão um dia vencidos e aniquilados e o povo de Deus, restaurado, crescerá. Esse mesmo povo será depois reduzido a um Resto, diz o Profeta (o famoso “Resto de Israel” dos profetas: Jr 40,11.15; 42,19; Ez 6,8; 11,13 etc.). Finalmente, a nação ressurgirá forte e numerosa.[61] Essa é a interpretação  correta e unânime da exegese. O texto não tem nada a ver, pois, com reencarnação.

         Os outros dois textos  são de Jó:
“O homem, porém, morre e fica inerte. Para onde vai o homem quando expira?” (14,10); e “quando morre, o homem poderá talvez reviver? Eu ficaria esperando todos os dias do meu serviço, até que chegasse a hora da mudança de turno...” (14,14).
            A interpretação de Allan Kardec desse texto baseia-se numa tradução livre feita pela Igreja grega que diz:
         “Quando o homem está morto, ele vive sempre; terminando os dias de minha existência terrestre, esperarei, porque a ela voltarei de novo” (E.S.E., p. 63).
         Essa tradução se distancia enormemente do texto original, como se pode ver. A partir dessa tradução, Alian Kardec conclui: “eu esperarei parece antes se aplicar à nova existência: ‘quando minha existência terrestre se findar, eu esperarei porque a ela retornarei’ (idem, ibidem).
O texto original (v. 14) diz o contrário: Quando more, o homem poderá talvez reviver?
         Essa pergunta está dentro do contexto temático do livro de Jó — livro sapiencial que discute o problema da verdadeira religião, do sofrimento do justo, da justiça de Deus. O texto aqui citado constitui um dos primeiros sinais da esperança do homem numa futura ressurreição, no Antigo Testamento. Jó, nesse texto, confirma a crença de todo o Antigo Testamento, segundo o qual todo aquele que morre vai para o xeol, “lugar” abaixo do mundo subterrâneo e que servia de habitação dos mortos. No xeol não havia vida plena mas subvida; era a região escura, e do xeol não havia esperança de retorno: era o “não-mundo”! É essa concepção que Jó questiona. Ele espera que um dia esse mundo inferior acabe e que ele seja libertado; ele espera que o homem possa ser objeto do amor e da misericórdia de Deus e ressuscite um dia para viver para sempre. [62]
         A visão de Jó é de esperança, de fé; é otimista e responsável. A interpretação espírita extrapola o texto.

         3. Ressurreição e reencarnação
         Não são a mesma coisa ressurreição e reencarnação, como às vezes se diz. São conceitos que se excluem e se contradizem.
         Ressurreição é, segundo a Bíblia,  a plenificação da pessoa no plano individual e no plano eclesial-relacional.
         Plenificação pessoal significa que a pessoa alcança, com a ressurreição, sua máxima realização; aquela pessoa que crescia aqui na terra, alcança com a ressurreição o ponto mais alto do seu processo evolutivo. Esse ponto máximo é a participação plena pelo homem da vida de Deus, em toda a sua realidade. Ele se torna então, como dizem os teólogos, o homem-revelado: aquilo que estava escondido, que era esperado, torna-se a máxima realidade. Ele é a plenitude do que Deus quis que ele fosse.
         Plenificação eclesial-relacional significa que o homem ressuscitado participará do Reino de Deus já consumado, participará da Igreja definitiva (também chamada Igreja escatológica). E como participante do Reino, da Igreja definitiva, o homem estará em relacionamento com os seus irmãos: ele não é só. Sua plenificação exige a complementaridade que é o outro. Essa complementaridade é chamada comunhão.
         O homem ressuscita em corpo novo (“e desfeito o nosso corpo mortal nos é dado nos céus um corpo imperecível”, diz o Prefácio da Missa para os Falecidos). Pelo fato de o homem ter corpo e ser corpo, necessariamente haverá relacionamento na vida eterna. O relacionamento é que nos faz pessoas, indivíduos e comunidade: eu-tu-nós.
A ressurreição é, pois, a plenitude de vida alcançada e posse da vida eterna pelo homem-corpo-espírito em plena e íntima comunhão com Deus, com os outros e com o cosmo.
         A ressurreição supõe que o homem seja composto harmonioso de corpo e alma; corpo e alma não são duas realidades diversas no homem, ou duas realidades separáveis. “Alma é a subjetividade do ser humano concreto, o que inclui também a dimensão corpo. Corpo é o próprio espírito realizando-se dentro da matéria. Não é apenas instrumento do espírito... É o próprio espírito em sua encarnação e expressão no espaço e no tempo materiais”. [63]A ressurreição exige pois a glorificação tanto do corpo como do espírito. Eles são a pessoa. Formam unidade ôntica indissolúvel, indivisível.
         A reencarnação, como já se disse, é o retorno do espírito a novo corpo. Supõe que o corpo seja o cárcere da alma; esta pode desligar- se dele, desfazer-se dele e passar a constituir outro indivíduo. A matéria é má, para o espiritismo. Sua visão antropológica é dualista: o corpo e a alma são separáveis. A reencarnação é a purificação do espírito em processo longo para alcançar a sua bem-aventurança. O corpo é relegado. A antropologia mostra, porém, que o homem é um ser indivisível. Ele não tem alma, ele é alma; ele não tem corpo, ele é corpo, já dizia Bultmann. Por isso, dentro das coordenadas da antropologia bíblica e teológica a reencarnação é impossível. O “eu encarnante” anularia o encarnado ou teríamos duas pessoas numa só natureza.
         Para quem admite apenas a dualidade antropológica de Platão (que ensinava que o corpo e a alma são separáveis; o espírito é bom e a matéria é má), a reencarnação seria possível, embora a antropologia, a razão e a fé mostrem o contrário.
        
         Conclusões
        
1. A Bíblia não fala de reencarnação, nunca. Fala de ressurreição, que é outra coisa, como se mostrou. Portanto, Allan Kardec se equivoca ao dizer que os judeus admitiam a reencarnação sob o nome de ressurreição. A ressurreição exige o corpo, a reencarnação exclui o corpo. Logo não são a mesma coisa.
         2. Jesus nunca falou da reencarnação. A interpretação dos textos bíblicos citados como provas da reencarnação, é interpretação sem base exegética  e inconsistente; é contrária às leis da exegese e da hermenêutica.
         3. A antropologia mostra a impossibilidade da reencarnação. A menos que se negue a ciência e se admita o absurdo antropológico da coexistência de duas pessoas numa só natureza.
         4. Quem admite a reencarnação deveria desinteressar-se pela história do mundo para não cometer outros tantos males que o obrigue a entrar em círculo de eterno retorno: culpa/castigo/expiação/culpa.
         5. A reencarnação violenta, sem dúvida, o princípio fundamental do ser homem, que é a liberdade consciente: o espírito reencarna- se para expiar culpas de que não tem a mínima lembrança! A pessoa é responsável pelo que faz. Disso deve dar contas aos homens e a Deus. Sem liberdade para agir, mas vivendo para expiar inexoravelmente culpas anteriores, o homem não construiria a História. Seria marionete, robô manipulado por Deus... Mas sabemos que a História caminha, avança, progride.
         6. Se os espíritos reencarnam para purificarem-se de culpas anteriormente cometidas, certamente não poderão cometer novos erros. O que não é possível, a menos que se negue a liberdade humana, ou admita-se eterno reencarnar-se. Se os homens estivessem em processo de purificação e não cometessem novos erros e pecados, o mundo seria melhor. Cada vez melhor!
         7. Por fim, para quem tem fé, para quem é cristão, tudo o que foi dito acima sobre reencarnação pode muito bem ser deixado de lado. Basta-lhe a Palavra de Deus muito simples e muito clara na Bíblia: “E dado que o homem morre uma só vez e depois disso vem o julgamento...” (Hb 9,27). Disse ainda Jesus ao ladrão crucificado e arrependido: “...Eu te garanto: hoje mesmo você estará comigo no Paraíso” (Lc 23,43).







         A infância de Jesus é narrada não só por Mateus, mas também por Lucas. Esses evangelistas não narram, porém, toda a infância de Jesus. Dentre aquilo que conheciam,  escolheram o que mais lhes interessava, segundo a finalidade teológica de seus evangelhos. Os outros dois evangelistas, Marcos e João, não falam da infância de Jesus.
         Mateus escolhe episódios da vida de Jesus diferentes dos escolhidos e narrados por Lucas. Por exemplo: Mateus faz a chamada árvore genealógica de Jesus, narra a visita dos magos, a fuga de Jesus para o Egito, a morte dos inocentes, a volta para Nazaré. Lucas não fala disso; em compensação narra outros episódios da infância de Jesus, como: a anunciação do anjo a Maria, a visitação de Maria a Isabel, a circuncisão, as profecias de Simeão e de Ana sobre Jesus. (Confira, por exemplo: Lc 1,5-25: anúncio do nascimento de João Batista; 1,26-38: anúncio do nascimento de Jesus; 1,39-56: visitação a Isabel; 2,21-40: circuncisão e apresentação de Jesus no Templo; 2,41-52: Jesus entre os doutores da Lei).
         Uma coisa importante para ser observada e de muito valor na seleção desse material sobre a infância de Jesus é a finalidade teológica de Mateus ao escrever seu evangelho. Para ele, Jesus é o Messias enviado por Deus, mas rejeitado pelos seus compatriotas desde o seu nascimento. Jesus é o Filho de Davi, o filho de Abraão (1,1), o Messias esperado e enviado. Por isso o evangelho dele começa com uma genealogia, ou lista de nomes. Ele quer mostrar que Jesus é descendente de Abraão, de Davi. É, portanto, o legítimo herdeiro das promessas feitas por Deus.
         A genealogia no Evangelho de Mateus é artificial, embora tenha fundamentos reais, históricos. O importante para o evangelista era salientar para sua comunidade que Jesus era o Messias, “o Filho de Davi”, aquele que fora prometido nas Escrituras (cf. 2Sm 7,1-16; Ez 34; Jr 33; Sl 144). Por essa ótica Mateus constrói os três grupos de genealogia de seu evangelho; cada grupo com 14 nomes. Isso o obriga naturalmente a omitir alguns nomes. A artificialidade dessa genealogia se percebe não só pelo próprio texto que o diz claramente (Mt 1,17), mas ainda pelo nome de Davi, sobre quem é calcada tal genealogia. As consoantes hebraicas que compõem o nome de Davi têm como soma o número 14: D = 4; V = 6; D = 4. E podemos ainda notar que o número 14 é múltiplo de 7 (2x7). Sete é o número da perfeição, número do que é completo, plenitude, na simbologia popular hebraica. Por exemplo: no Antigo Testamento os dias da semana são 7 (Gn 2,2); os israelitas marcham 7 dias ao redor da cidade de Jericó com 7 sacerdotes tocando trombetas (Js 6,15s); o sétimo ano é o ano sabático etc. No Novo Testamento há outros exemplos: Maria Madalena tinha 7 demônios (Lc 8,2); os fariseus apresentam a Jesus o caso de mulher que tinha casado 7 vezes (Mt 22,25 e paralelos); os diáconos são 7 (At 6,3ss); Pedro deve perdoar não somente 7 vezes, mas 70x7 (Mt 8,21-22); o Apocalipse fala muito da simbologia do número 7: há 7 igrejas (1,4), 7 espíritos (1,4), 7 lâmpadas (4,5), 7 selos (5,1), 7 anjos (8,2), 7 trombetas (8,2) etc.
         Os três grupos de nomes representam ainda, em Mateus, as três fases da História bíblica: a primeira, que vai de Abraão até Davi; a segunda, de Davi até o exílio (monarquia); e a terceira, que é a do pós- exílio e da reconstrução nacional.
         Toda essa artificialidade numérico-simbólica tem a finalidade de acentuar que a plenitude dos tempos chegara, o tempo da espera messiânica acabara; já estava entre os homens o Messias de Deus, o Emanuel, o Deus-conosco.
         O uso de genealogias é, nos escritos antigos, recurso literário muito comum. A historiografia bíblica usa-a também não só para estabelecer árvores genealógicas, mas ainda para resumir grandes períodos históricos (cf Gn 5; 1Cr 1-2 etc.).
         Mateus usa a genealogia não só para resumir grandes períodos históricos, mas, no caso, para mostrar com ela que Jesus é o Messias prometido, é o descendente de Davi que deveria vir; ele é o Messias encarnado na história, na humanidade; é o Emanuel, o Deus-conosco desprezado pelo seu povo, mas acolhido pelas nações.
         Importante ainda nessa genealogia de Mateus é a presença de mulheres. Os judeus não inseriam mulheres nas genealogias. A única exceção parece ser o caso de Judite (Jt 8,1-3); todavia nessa genealogia só são citados os seus descendentes masculinos.
         Mateus, porém, insere quatro mulheres na genealogia que faz de Jesus; mas nenhuma delas pertence ao povo hebreu! São elas: Raab (v. 5), famosa prostituta em Jericó (Js 2,1); Rute (v. 5), a moabita que teve envolvimento sexual com Booz (Rt 3,1-8; 4,10-13); a mulher de Urias (v. 6), Betsabéia, com quem Davi adulterou (2Sm 11,1-3) e talvez Tamar, (v.3) filha de cananeus, com quem Judá também adulterou  (Gn 38,1-26).
         Isso tudo sublinha a intenção de Mateus ao compor a genealogia de Jesus: ele quer associar ao Messias, que foi rejeitado pelo seu povo, todos os outros povos, com todas as classes de pessoas, sem distinções. Por isso inclue cinco  mulheres (que eram discriminadas entre os judeus),  sendo quatro dentre elas de conduta considerada suspeita. A outra é pura,  é Virgem, é Maria, a mãe do Filho de Deus encarnado.O Messias veio para todos. Esse é, pois, o sentido das genealogias artificiais em Mateus.


         Sobre o relacionamento de Maria com José diz o Evangelho de
Mateus:

“A origem de Jesus, o Messias, foi assim: Maria, sua mãe, estava prometida em casamento a José, e, antes de viverem juntos, ela ficou grávida pela ação do Espírito Santo. José, seu marido, era justo. Não queria denunciar Maria, e pensava deixá-la, sem nunguém saber” (1,18-19).

         Em seguida o evangelista fala do sonho de José (1,20-23) e termina o capítulo dizendo: “Mas ele não teve relações com ela até quando deu à luz um filho a quem deu o nome de Jesus” (1,25).
         Sobre esse relacionamento de José com Maria temos então três
dados para serem considerados brevemente: o noivado deles, a ideia
do abandono
de Maria por José por causa da suspeita de adultério e
o fato de José não ter mantido relações com ela “até quando ela deu
a luz
         O noivado. Em hebraico é chamado kiddushin. Era o compromisso de casamento feito pelos dois contraentes diante de duas testemunhas. Esse compromisso era já considerado casamento legal; os noivos tinham prazo de um ano para passarem a morar juntos. Se durante o tempo do noivado nascesse um filho para o casal de noivos, esse filho era considerado legítimo. Os textos legislativos provam que o noivado já tinha efeitos jurídicos (Dt 20,7; 22,23-27)
         No tempo oportuno era feita grande festa nupcial, e então a noiva passava a morar na casa do noivo. Com tal cerimônia o casamento era considerado  completo, legalmente constituído. Havia solene ritual público e comunitário para a celebração.
         O abandono. A idéia do abandono de Maria por José é compreensível diante do acontecimento. Antes de passarem a morar juntos, ou seja, antes da cerimônia solene da festa nupcial, Maria já estava grávida. De um lado, José a julgava mulher virtuosa e pura, por ser ele homem justo, diz o texto. De outro lado, havia o problema da gravidez dela, e o filho não era dele! De acordo com a lei ele deveria denunciá-la perante a sociedade; dizia a lei que se uma noiva engravidasse por adultério deveria ser apedrejada (Dt 22,13-21). José, porém, não queria acusar Maria, pois sabia de sua virtude. Diante desse impasse, resolveu repudiá-la, largá-la, como previa a lei, sem acusá-la, porém o que a livrava da pena de morte. Era o melhor caminho para os dois.
         Nesse tempo ocorre então a intervenção de Deus, que o evangelista descreve com o gênero literário dos “sonhos”. Deus falou a José por sonhos. Esse é o modo da comunicação divina no evangelho de Mateus. Por sonhos, Deus falará aos magos (2,12) e mais uma vez ainda a José (2,13.19).
         O sonho era de fato considerado no Antigo Oriente como o veículo da comunicação divina. Por exemplo, em Gn 15,12 Deus se comunica com Abraão durante o sono; em Gn 38,5 o sonho de José é também comunicação superior.
         O importante, segundo o evangelista, é a comunicação superior, a comunicação feita por Deus a José. Deus lhe revela o mistério. Ele entende e aceita então a paternidade legal de Jesus. O importante na narração é a revelação e não o modo como ela é narrada. Deus comunicou-se com José.
         A expressão: “Até quando’ Muitos autores antigamente e muitas pessoas hoje também, entenderam e entendem essa expressão como termo de limite temporal, ou seja: José não manteve relações com Maria até que Jesus nasceu. Depois certamente manteve relações com ela. E vêem nessa expressão “até quando” argumento bíblico muito forte contra a proclamada virgindade de Maria.
         Outros autores, baseando-se no versículo 23: “Vejam; a virgem conceberá e dará à luz um fiho. Ele será chamado pelo nome de Emanuel, que quer dizer: Deus está conosco”,  sustentam a virgindade de Maria.
         Parece que a intenção de Mateus não é nem uma nem outra coisa. A virgindade de Nossa Senhora é dado buscado em outras fontes bíblicas, na tradição e no Magistério eclesiástico. “O Novo Testamento não conhece outros filhos de Maria e nem de José; nunca, em nenhuma passagem do Novo Testamento, ninguém é chamado filho de Maria (no sentido estrito: cf. Jo, 19,25) a não ser Jesus; nunca, em nenhum texto do NT, de ninguém Maria é chamada mãe, a não ser de Jesus (cf. Jo 19,25)...” [64]
         A expressão “até quando” não significa que depois do nascimento de Jesus José passou a manter relações sexuais com Maria. Na linguagem bíblica essa conjunção temporal (no original grego: éos ou e no hebraico: ad kî) é inconclusiva,  não implica necessariamente mudança de situação no que se segue depois. E há exemplos claros do uso de tal conjunção temporal em outras passagens bíblicas como, por exemplo, na primeira carta a Timóteo em que Paulo diz a Timóteo que se dedique à pregação, à exortação e à instrução até que ele chegue; isso não significa que, depois da chegada de Paulo, Timóteo tenha desistido de seu trabalho apostólico (lTm 4,13).  Ainda, outro exemplo muito semelhante ao texto de Mt 1,25 é o de 2Sm 6,23 no Antigo Testamento, onde é dito: “E Micol, filha de Saul, não teve filhos até o dia de sua morte”. Isso não significa que ela teve filhos depois que morreu!
E há outros exemplos semelhantes no Antigo e no Novo Testamento.
         Por outro lado, a citação que Mateus faz do profeta Isafas: “Eis que a Virgem conceberá e dará à iuz um filho, ao qual será dado o nome de Emanuel, que quer dizer: ‘Deus conosco’ “(Is 7,14), não pode ser tomada como prova da virgindade de Nossa Senhora também. Essa deve ser buscada em outras fontes bíblicas, da tradição e do Magistério — como se disse. O evangelho de Mateus, dentro de seu plano teológico de fazer realizarem-se em Jesus as profecias do AT, usa para tal fim também esse trecho de Isaías, que historicamente não se refere a Jesus e a Nossa Senhora, e sim à jovem mãe do rei Ezequias e ao próprio Ezequias. O futuro rei Ezequias seria o sinal de salvação que Deus enviaria ao seu povo. Ele nasceria de uma jovem mãe (em hebraico: ‘almah) -  que o texto grego traduz virgem (em grego: parténos).  Ezequias seria rei tão justo e sábio que seria chamado “sinal” de Deus” ou Emanuel (= Deus está no meio de nós. cf. Is 7,14; 2Rs 18,1-7).
         Quanto aos irmãos de Jesus já se disse que o NT não conhece outros filhos de Maria e de José e que em nenhuma passagem do NT alguém é chamado filho de Maria no sentido estrito da palavra, a não ser Jesus. A locução “irmãos do Senhor” que aparece no NT é um hebraísmo para designar parentesco próximo. Essa designação aparece em Mt 12,46; 13,55-56; Mc3,31;6,3; Lc8,19; Jo 2,12 7,3-5; 20,17; At 1,14; 1Cor 9,5 e Gl 1,19. Os nomes desses “irmãos do Senhor” também são conhecidos: Tiago, José, Simão e Judas.
         Na língua hebraica não há muitos termos para designar os diversos graus de parentesco, como primo, sobrinho, tio, enteado etc. Segundo a tradição nômade, os membros de uma tribo ou de um clã eram chamados irmãos, do mesmo modo que o chefe era chamado pai. O termo hebraico ah significa literalmente irmão, mas pode significar também outros consangüíneos como sobrinho (Gn 14,4ss); tio (Gn 29,15); primo (Lv 10,4; 1Cr 23,21).
         Os quatro “irmãos do Senhor” mencionados no NT não podem ser entendidos como filhos de Maria e José. Tiago e José são filhos de outra Maria, que estava aos pés da cruz de Jesus: “Entre elas estavam maria Madalena, Maria, mãe de Tiago e de José, e a mãe dos filhos de Zebedeu” (Mt 27,56). Simão e Judas eram parentes de Jesus. Não há menção alguma no NT de que eles fossem irmãos uterinos de Jesus. Além do que fica difícil entender como é que Jesus teria entregue sua mãe aos cuidados de um discípulo dele, João (Jo 19,26), se ela tivesse outros filhos que poderiam cuidar dela.[65]
 Certos livros da literatura apócrifa do NT é que especularam com fantasias a infância de Jesus e fomentaram curiosidades.

48. A visita dos magos, a morte dos inocentes, a fuga de Jesus para o Egito. São fatos históricos? Por que só o Evangelho de Mateus fala disso?

         A
chamada visita dos reis magos a Jesus é narrada somente por Mateus (Mt 2,1-12). O capítulo 2 de Mateus é considerado hoje como “página instrutiva” do evangelista sobre a infância de Jesus, e não página histórica. Esse modo de escrever é chamado na linguagem bíblica  midraxe; esse capítulo é pois um texto midráxico. A palavra midraxe é hebraica e quer dizer exposição, ensinamento religioso; é a explicação de texto bíblico feita muito livremente, com alegorias, imagens, comparações e até com fantasia.
         Mateus usa livremente vários textos bíblicos do Antigo Testamento para transmitir o seu ensinamento sobre Jesus. Para ele, Jesus é o novo Moisés e é maior do que Moisés. E o novo Legislador. O evangelho de Jesus é, para Mateus, a Nova Lei; a Igreja é o novo povo. Todos esses ensinamentos têm fundamento no Antigo Testamento. Por isso Mateus os usa. Portanto, os relatos em estilo de midraxe no evangelho de Mateus não são falsos por não relatarem fatos historicamente comprovados sobre a vida de Jesus. A base deles são os fatos históricos passados, recebidos à luz de sua teologia, e de sua intenção ao escrever o seu evangelho.
         Usando esse gênero literário, esse modo de escrever, Mateus fala então, nesse cap. 2, sobre a visita dos reis magos, a fuga para o Egito, a morte dos inocentes e a volta de Jesus para Nazaré.
         Todos esses fatos têm base no Antigo Testamento, na história do povo de Deus. E Mateus faz essa história bíblica tornar-se presente, atualizando na vida de Jesus e na sua pessoa os fatos acontecidos no passado de seu povo.
         Uma vez entendida essa ótica de Mateus, podemos considerar os elementos concretos dessa narração em forma de midraxe. E tais elementos são: a) A visita dos reis magos; b) a fuga para o Egito, a morte dos inocentes e a volta de Jesus para Nazaré.

 a) A visita dos reis magos.
 O fato é situado no tempo do rei Herodes, o Grande. Ele reinou na Palestina, do ano 37 a.C até o ano 4 d.C. Foi nesse tempo, segundo Mateus, que vieram do Oriente os reis magos, dirigidos por uma estrela.
         O texto do evangelho não chama esses personagens de “reis”.
         Segundo estudiosos, e de modo especial, segundo as informações do historiador grego Heródoto, os magos constituíram um grupo sacerdotal no reino dos medos. A Bíblia diz que existiam certos sábios em Babilônia que eram chamados magos (Jr 39,3; Dn 2,4).
         Sabe-se pela própria Bíblia e pela História que muitos reis e muitos pagãos visitavam Jerusalém, atraídos — entre outros motivos — também pela religião aí praticada. Por exemplo, a rainha de Sabá visitou Salomão (1 Rs 10); e nos tempos do Novo Testamento, os Atos relatam apresença de inúmeros estrangeiros em Jerusalém (At 2,7-12).
         A presença de sábios estrangeiros em Jerusalém é fato histórico; os magos pertenciam a esses grupos de visitantes, certamente.
         Mateus insere, porém, como motivo da visita deles o aparecimento da estrela de Jesus: “Nós vimos a  sua estrela no Oriente, e vimos para prestar-lhe homenagem” (2,2). Clarissimamente Mateus usa aqui a referência histórica do livro dos Números, onde se relata um oráculo messiânico de um mago ou sábio da Mesopotâmia chamado Balaão. Ele diz: “Eu vejo, mas não é agora; eu o contemplo, mas não de perto: uma estrela avança de Jacó, um cetro se levanta de Israel...” (Nm 24,17). [66]
         Mateus usa esse trecho e o interpreta como profecia sobre Jesus e põe essa profecia nos lábios dos magos; faz deles o veículo da realização do oráculo profético: a estrela que Balaão previra é Jesus; os magos vieram para ver Jesus.
         Poderíamos ainda acrescentar que Mateus dá aqui novo sentido ao simbolismo da estrela. A estrela é o símbolo da nação judaica (Nm 24,17; Gn 49,1-10). Para Mateus a estrela agora  é Jesus.
         Alguns autores tentam, porém, explicar o aparecimento da “estrela dos magos” como fenômeno astronômico: teria sido um cometa, ou até a famosa conjunção de Júpiter e Saturno que se dera no ano 7 aC.  segundo a astronomia. Tudo isso, porém, é alheio ao texto de Mateus. Ele não faz referência a astro nenhum; faz  um midraxe do texto de Números 24,17.
 Podemos ainda observar que para a astrologia antiga o  nascimento de um novo rei era sempre indicado pelo  surgimento de uma estrela.  Mateus usa talvez  essa crença para indicar o nascimento do novo rei Jesus.
         Historicamente podemos até admitir que alguns sábios visitaram Jesus. Mateus relata essa tradição através da releitura de textos bíblicos do Antigo Testamento.  É nesse contexto narrativo que  entram os conhecidos personagens: os três reis magos, a viagem deles, a estrela, o rei Herodes, os sábios da corte, profecias de Miqueias e de Isaías. Todos eles são atores de uma história, na qual o núcleo teológico é este: Jesus, é o Deus conosco (Is 7,14), nasceu para todos os povos, manifestou-se para todas as nações. Os presentes ( ouro, incenso e mirra) levados a Jesus pelos reis magos,  significam a natureza divina de Jesus (incenso), a natureza humana de Jesus (mirra) e o senhorio de Jesus como rei do Universo (ouro). Com esses elementos, Mateus compôs um lindo quadro teológico, poético, simgelo e puro que muito nos ensina e encanta até hoje. A tradição deu aos reis magos os nomes de Gaspar, Melquior e Baltazar.
         b) A fuga para o Egito, a morte dos inocentes e a volta de Jesus para Nazaré.
         Esses fatos podem ser colocados na mesma moldura teológico- bíblica do relato anterior sobre os reis magos. Mateus relê aqui dois outros textos bíblicos e os aplica a Jesus. São textos dos profetas Oséias e Jeremias. E faz referência a uma certa passagem da Escritura onde Jesus é chamado Nazareno.
         Oséias fala do povo de Israel que era escravo no Egito e que Javé o libertou: “Do Egito chamei o meu filho” (Os 11,1). Para Mateus, Jesus é o novo Moisés, chamado também do Egito para libertar o novo Povo de seus pecados. Jesus, o novo Moisés, deve realizar o novo êxodo, a salvação definitiva. Por isso  é que Mateus faz, analogamente, Jesus ir para o Egito (= fuga para o Egito com seus pais) e usa para fundamentar essa finalidade didático-teológica a passagem de Oséias 11,1, muito bem trabalhada por ele. É o tipo perfeito de exposição catequética, ou como se disse, verdadeiro midraxe. Historicamente não se conhece fuga de Jesus para o Egito. A informação de Mateus é evidentemente teológico-catequética.
         O mesmo fenômeno ocorre com a morte dos inocentes. A matança de tantas crianças em Belém, como a refere Mateus, não pode ser comprovada historicamente. Mas dentro do esquema teológico de seu evangelho, ele usa das tradições religiosas e históricas do seu povo como quadro de fundo na narração da vida de Jesus, o novo Moisés. Faz “realizar” também agora em Jesus, tudo o que já acontecera no passado da história de seu povo.
         Sabemos que é histórico o episódio da concentração dos prisioneiros judeus condenados ao exílio na Babilônia no ano 585 aC. (2Rs 25,11; Jr 40,1). O exílio vai acontecer em 587 aC. Com esse evento, precedido já pelo exílio do rei e dos nobres (2Rs 24,13), a nação, o povo de Deus, deixava de existir em Israel. O fato era doloroso e desesperador para todo o povo.
         A concentração dos prisioneiros destinados ao exílio foi feita em Ramá, hoje Er-Ram, que dista 9 quilômetros de Jerusalém. Nesse tempo atuava no meio do Povo de Deus o profeta Jeremias. Ele descreve essa situação, dizendo: “Assim diz Javé: ‘Escutem! Ouvem-se gemidos e pranto amargo em Ramá: é Raquel que chora inconsolável por seus filhos que já não existem mais”(Jr 31,15).
         O profeta se refere à deportação dos judeus para Babilônia, e põe nos lábios de Raquel, esposa de Jacó e mãe do povo hebreu, as palavras de dor sobre a “morte dos seus filhos”, isto é, o exílio.
         O evangelista Mateus usa o evento histórico e o atualiza na vida de Jesus pelo episódio da “matança dos inocentes” em Belém -  onde estava sepultada Raquel, a mãe do povo hebreu, como diz Gênesis: “Quando eu voltava de Padã-Aram, para minha infelicidade sua mãe Raquel morreu em viagem na terra de Canaã, a um bom trecho de Éfrata, e eu a enterrei no caminho de Éfrata, que é Belém” (Gn 48,7).
         Para Mateus, situação análoga acontecia agora em Belém: as mães das crianças choravam vendo seus filhos morrerem pela espada  do ímpio Herodes. A situação de dor era idêntica à de Raquel. Para Mateus, esse acontecimento realizava o que dissera Jeremias sobre Raquel:  “Assim diz Javé:  Escutem! Ouvem-se gemidos e pranto amargo  em Ramá: é Raquel que chora inconsolável por seus filhos que já não existem mais” (Jr 31,15).

         A volta de Jesus para Nazaré.
         É também um midraxe de Mateus para mostrar aos leitores e à sua comunidade que de fato em Jesus se realizava tudo o que se dera também na vida de Moisés: esse, depois de perseguido e de ter fugido, recebeu aviso de Deus para que voltasse ao Egito, sua terra: “Em Madiã, Javé disse a Moisés: ‘Volte para o Egito, porque morrerem todos os que projetavam matar você’” (Ex 4,19).
         O mesmo se dá com Jesus, o novo Moisés. O texto de Mateus é idêntico: “e lhe disse: ‘Levante-se, peque o menino e a mãe dele, e volte para a terra de Israel, pois já estão mortos aqueles que procuravam matar o menino’” (Mt 2,20).
         Mateus diz ainda que Jesus foi para Nazaré para que se cumprisse o que fora dito pelos profetas: “Ele será chamado Nazareno” (2,23). Não existe, porém,  na Bíblia nenhum oráculo, nenhum texto de profetas a esse respeito. Mateus certamente sintetiza nessa expressão redacional as antigas tradições sobre a cidade de origem do Messias; essas tradições baseavam-se no texto de Isaías que diz: “Do tronco de Jessé sairá um ramo, um broto nascerá de suas raízes” (Is 11,1). Em hebraico a palavra broto se diz neser, cuja raiz NSR é foneticamente muito semelhante à palavra Nazareno, que tem também a raiz NSR. Mateus certamente faz aqui um jogo de palavras envolvendo essa tradição religiosa, popular e o texto de Isaías. Como se disse, a citação que Mateus faz atribuindo aos profetas esse oráculo não existe na Bíblia.  Jesus é de fato  nazareno, isto é, consagrado.


         O Batismo de Jesus, conforme narrado nos evangelhos, intrigou muita gente. Tem-se dito que o batismo de João é o mesmo batismo que a Igreja confere hoje. Mas não é. São coisas totalmente diferentes. O batismo que a Igreja confere hoje  foi  instituído por Jesus; é sacramento, sinal e veículo da graça de Deus, mediante o qual o homem passa a pertencer  ao novo povo de Deus, tornado-se filho de Deus, co-participante da ressurreição de Jesus (Rm 6,1-14), herdeiro dos céus e membro ativo da Igreja de Jesus (Gl 3,26-29; 1Cor 12,l2ss).
         O batismo de João não é sacramento, mas sinal penitencial. João o administrava a toda pessoa que mudasse de vida e procurasse seguir a sua pregação penitencial. Dado importante no batismo de João é a exigência de metanóia, isto é, de conversão. João exigia a conversão, a mudança de vida para conferir seu batismo. Desse modo ele se posicionava na linha da pregação profética que exigia constantemente do povo a mudança de coração, a mudança interior, para ser fiel à Lei. Assim o batismo dele exigia a conversão interior em vista do Reino de Deus.
         O batismo de João é chamado “batismo de conversão para o perdão dos pecados” (Mc 1 ,4; Lc 3,3). Todavia não é batismo suficiente para alcançar a salvação de Deus, como o é o batismo instituído por Jesus; nem comunica, o batismo de João, a participação da vida do Espírito Santo. Essa diferença aparece nos próprios evangelhos e nos Atos dos Apóstolos pela oposição dos termos “água” e “Espírito Santo” que usam quando se referem ao batismo de João e ao instituído por Jesus. Ou seja: o batismo de João é batismo de água somente; o batismo instituído por Jesus é o Batismo do Espírito Santo (Mc 1,8). Às vezes o batismo de Jesus é designado também com o termo “fogo”: “Eu batizo vocês com água para a conversão. Mas aquele que vem depois de mim é mais forte do que eu. E eu não sou digno nem de tirar-lhe as sandálias. Ele é quem batizará vocês com o Espírito Santo e com fogo” (Mt 3,11; cf. ainda Mc 1,8; Lc 3,16; Jo 1,33; At 1,5; l1,16).[67]
         Nesse texto aparecem claramente os elementos que diferenciam um batismo do outro. O de João é inferior ao de Jesus, do mesmo modo que o Precursor é inferior ao Messias: “não sou digno de tirar-lheas sandálias”. 
         Por que então Jesus é batizado por João? Precisava ele de conversão, de mudança de vida?
         Jesus não precisava ser batizado por João porque não precisava também mudar de vida. Mas ele sujeita-se ao batismo de João porque, de fato, ele começaria “nova vida”, isto é,  o seu ministério público, a pregação do Reino. Perante o público que o ouviria, ele deveria apresentar-se como alguém “bem intencionado”, “convertido”, “discípulo de João”, para ter aceitação. E Jesus se presta a isso. Pois ele veio para salvar a todos. Quis fazer-se semelhante em tudo ao homem (FI 2,7). Por isso mesmo, João Batista, que sabia quem era Jesus, reluta em batizá-lo: “...Sou eu  que devo ser batizado por ti, e tu vens a mim?” (Mt 3,14).
         O fato de Jesus, o Filho de Deus, ter sido batizado em batismo penitencial, preocupou a Igreja primitiva também. Por isso alguns disseram que a resposta dada por Jesus a João: “...Por enquanto, deixe como está! Porque devemos cumprir toda a justiça...” (Mt 3,15) é um esclarecimento dado pelo evangelista, através de Jesus, a essa dúvida de sua comunidade. Ou seja: era preciso que o plano de salvação de Deus (= justiça) se realizasse e que Jesus, semelhante a nós em tudo, exceto no pecado (Hb 4,15), fosse visto pela comunidade e por todos os homens como o exemplo acabado de humildade. Por isso, mesmo sem nenhuma necessidade, ele submeteu-se ao batismo penitencial de João Batista.
         O diálogo entre Jesus e João Batista sobre o batismo só é narrado pelo evangelista  Mateus.
         Um aspecto importante ainda para ser observado: o fato de Jesus ter sido batizado antes de começar seu ministério, é considerado por muitos como exemplo ou prova de que o batismo só deve ser conferido a adultos.  Mas isso é uma interpretação errada, sem base.
         O batismo que Jesus recebeu de João não é prova nenhuma porque esse batismo não é o mesmo que a Igreja confere. São coisas bem diferentes, como se falou mais acima. O da Igreja é sacramento e o outro não.
         A figura da pomba e a voz do céu.
         Não se pode tomar a narração de Mateus ao pé da letra. Aliás, na Bíblia é preciso muito cuidado quando se quiser interpretar um texto – isso já foi dito várias vezes. O modo de pensar, de escrever, de narrar dos antigos é bem diferente do nosso. E o caso também desse trecho de Mateus sobre o batismo de Jesus. A “pomba” e a “voz do céu” a que se refere Mateus, são partes de um quadro e devem ser vistas nesse conjunto.
         Para falar do batismo de Jesus, Mateus usa o gênero literário chamado teofania, isto é, manifestação de Deus. E um modo de escrever dos antigos e de que Mateus se serve aqui nessa narração, como usa também mais à frente, para narrar outros momentos importantes da vida de Jesus, como a transfiguração (17,1-8) e sua morte na cruz (27,51-53). Tal modo de escrever tem finalidade: indicar uma manifestação de Deus perceptível pelos sentidos. Na elaboração de um escrito teofânico, o autor se serve dos mais variados recursos literários: simbolismo, figuras humanas, sinais, e muito freqüentemente usa os fenômenos da natureza, mostrados como forças terríveis e descontroladas. Alguns exemplos de teofanias são: Gn 18: Deus aparece a Abraão em forma humana; em Gn 26,2 Deus se mostra a Isaac; em Gn 32,25-31 mostra-se a Jacó e com ele “luta”. Em Ex 19,16 e 20,18 Deus se mostra por meio de fenômenos da natureza: trovões, raios, relâmpagos, fogo, fumaça, nuvem.
         No relato do batismo de Jesus, Mateus usa sempre esse modo de escrever. Assim sendo, aparecem no relato os céus que se abrem, a pomba como figura do Espírito Santo e a voz que vem do alto do céu.
         A pomba tem grande simbologia no Antigo Testamento. A tradição do AT designava o Espírito de Deus como vento ou sopro. Veja, por exemplo, Gn 1,2; 2,7. A poesia popular simbolizava o vento, o sopro de Deus, qual elemento físico dotado de asas. A pomba, por vários motivos, passou a ser identificada com esse elemento físico alado. E logicamente passou a simbolizar o Espírito de Deus. Ela tem no AT simbolismo muito rico. É símbolo do Espírito e da ingenuidade (Os 7,11); do amor (Ct 2,14; 5,2; 6,9); do povo de Deus (Sl 74,19) etc.
         Aqui, no batismo de Jesus, a pomba é alusão ao Espírito Santo, que é força santificadora. O Espírito Santo é vida nova. Como no início dos tempos, na primeira criação, o Espírito de Deus pairava sobre as águas (Gn 1,2), do mesmo modo aqui, o Espírito Santo está no início da segunda, da nova e definitiva criação para dar a nova vida.
         A voz que veio do céu encerra o quadro teofânico. Mateus quer dizer com isso que Jesus é de fato o Filho de Deus; para tanto usa passagens da Escritura que falam do Filho de Deus, do Eleito de Deus, como, por exemplo:
         “Vou proclamar o decreto de Javé! Ele me disse: ‘Você é o meu filho, eu hoje o gerei’” (Sl 2,7); e o texto de Isaías:
         “Vejam o meu servo, a quem eu sustento: ele é o meu escolhido, nele tenho o meu agrado” (Is 42,1). Esses textos são retomados em Mt 12,18 e 17,5.
         De modo especial, como se percebe, Mateus cita a passagem de Isaías (42,1), aplicando-a a Jesus.
         Não podemos descartar aqui referência clara de Mateus ao batismo cristão. Ele mostra à sua comunidade que no batismo cristão entra a força operativa do Espírito Santo (= pomba), que torna o homem filho amado de Deus Pai por meio de Jesus Cristo Salvador. É fórmula batismal muito clara, evocadora da Santíssima Trindade: o Pai que fala dos céus, o Filho, que é batizado e o Espírito Santo que atua.
         Resumindo, podemos dizer que no relato do batismo de Jesus, Mateus quer ensinar à sua comunidade e a nós todos, sob forma literária própria de seu tempo, grandes verdades: Jesus é o Filho de Deus; o Espírito Santo age em nós e cria o homem novo (simbolismo da pomba); o Pai é quem envia o seu Filho ao mundo e confirma sua messianidade e sua missão.


         Muito se escreveu e se escreverá ainda sobre as tentações de Jesus. Os intérpretes dão as mais diversas respostas sobre elas. Os pontos de vista são os mais diversos também. Parece, porém, que hoje, duas são as vertentes que levam a uma reta compreensão delas.
         Primeira: as tentações são a forma literária concreta usada pelos evangelistas para  mostrarem que Jesus é homem, plenamente homem, em tudo, exceto no pecado. Cada evangelista relata as tentações de Jesus dentro da ótica específica de seu evangelho. Nesse sentido, as tentações de Jesus não foram solicitações concretas para o mal, mas integram o quadro teológico literário de cada evangelista sinótico, os quais querem mostrar que Jesus foi homem verdadeiro, em tudo.
         A segunda vertente vê as tentações de Jesus como algo concreto, que aconteceu de fato na sua vida como homem. Ele sentiu realmente uma tentação: a de desviar-se do projeto de ser homem total, pleno, encarnado, destinado ao sofrimento e à morte redentora para refugiar-se na divindade, escapando assim de todo sofrimento e de tudo o que tem de humilhante a condição humana! Jesus como homem passou por esse dilema!
         Em resumo, seriam essas, parece-me, as interpretações mais comuns hoje sobre as tentações de Jesus.
         Como, porém, as tentações de Jesus são narradas com mais pormenores em Mateus e Lucas, creio ser oportuno dizer alguma coisa a mais sobre elas, à luz da ótica do evangelho de Mateus.
         As tentações de Jesus, em Mateus, estão dentro da ótica específica desse evangelista. Cada evangelista tem a sua ótica teológica. Os três sinóticos[68] narram as tentações de Jesus. Mateus e Lucas com mais pormenores, como se disse, e com alguma diferença entre si; Marcos só faz menção das tentações (Mc 1,12-13).
         Além da ótica específica de cada evangelista, uma coisa parece emergir de todos os relatos: a historicidade das tentações.
         Jesus, como homem pleno, foi tentado; passou por tudo o que é humano, até à última experiência, para mostrar assim a imagem humana de Deus; aceitou a mais difícil e crítica das experiências humanas: a tentação. Superou-a para mostrar também a sua perfeita fidelidade a Deus.[69]
         Mateus retoma todos esses dados e trabalha-os dentro de sua ótica teológica. Na base de seu relato estão evidentes os ensinamentos dados por Deus e por Moisés ao povo de Israel no deserto e que são narrados no Deuteronômio (Dt 6-8).
         Os três sinóticos falam que Jesus foi levado ao deserto para ser tentado pelo diabo (Mt 4,1; Mc 1,12-13; Lc 4,1-2). Temos aqui três palavras-chave para a compreensão das tentações: deserto, tentação e diabo. Mateus faz reviver na pessoa de Jesus as lutas e tentações pelas quais o Povo de Deus passou durante a caminhada pelo deserto. O Povo de Deus no deserto foi tentado e caiu na tentação; Jesus, o novo legislador, o fundador do novo povo de Deus, é também tentado, mas vence a tentação.
         A fórmula usada por Mateus: “Então o Espírito conduziu Jesus ao deserto, para ser tentado pelo diabo” (Mt 4,1) corresponde à idêntica fórmula no livro do Deuteronômio falando do povo: “...Javé seu Deus fez você percorrer durante quarenta anos no deserto, a fim de o humilhar e o colocar à prova...” (Dt 8,2).
         Mateus fala que Jesus  jejuou por quarenta dias e quarenta noites (Mt 4,2). O Exodo fala que também Moisés jejuou quarenta dias e quarenta noites sobre o monte Sinai (Ex 24,18). Desse modo o evangelista ensina que Jesus não é menos importante que Moisés.
         A primeira tentação de Jesus lembra a do povo no deserto quando pedia comida (Dt 8,3). O Deuteronômio diz que a comida não é a coisa mais importante na vida, mas sim as palavras que saem da boca de Deus. Jesus repete ao diabo essas mesmas palavras:
         “Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus” (Mt 4,4).
         O povo no deserto cede à tentação da desconfiança em Deus. Apesar de Deus sempre ter atendido aos seus pedidos. A promessa, as palavras que saem da boca do Senhor são verdadeiras.
         Jesus, porém, vence a tentação. Ele acredita na palavra do Pai que o há de ressuscitar.
         A segunda tentação de Jesus é a tentação de auto-suficiência. A primeira fora a de não crer na palavra e na providência do Pai. Ser auto-suficiente é arvorar-se em centro do mundo; não precisar de ninguém; ser por si. E a tentação de “ser igual a Deus” (Gn 3,5). É uma das grandes tentações humanas. E o diabo tenta Jesus: que ele deixasse escondida a sua “hominidade” e fizesse transparecer a sua divindade. Já que ele era “igual a Deus”, poderia demonstrá-lo publicamente, saindo ileso de uma situação de alto perigo, de alto risco: “Se tu és Filho de Deus, joga-te para baixo!...” (Mt 4,6).
         Jesus responde com as palavras do salmo 91,12: “Eles (os anjos) o levarão nas mãos, para que seu pé não tropece numa pedra”. Isto é, se Deus é Pai e protege a todos para que nada de mal aconteça aos seus filhos, por que testá-lo para saber? Ele mostra-o todos os dias. Seus sinais são evidentes. Recusar seus sinais e pedir outros é tentar a Deus. E desconfiar, é ser rebelde e querer tornar-se o centro de toda decisão.
         O povo de Israel não quis entender os sinais de Deus que o acompanhava no deserto e pediu outros sinais que provassem mesmo a presença de Javé no meio do seu povo (Ex 17,1-7). O povo tentou a Deus.
         Jesus, porém, mostra que a providência de Deus é fiel; o homem não pode desconfiar de Deus e procurar apoio em si mesmo. Demonstra a cada dia sua presença e sua bondade. Por isso o homem não deve tentar a Deus exigindo outros sinais de que ele é Pai.
         Jesus vence a tentação mostrando que entende a presença de Deus na História e que não precisa de outros sinais para identificá-la como o exigira o povo de Israel no deserto. Jesus rejeita a tentação com as mesmas palavras com que Deus censurou seu povo no deserto: “Não tente o Senhor teu Deus” (Mt 4,7b; Dt 6,16).
         A terceira tentação é a tentação da idolatria: escravizar-se aos bens do mundo abandonando a Deus. O diabo tenta seduzir Jesus com os bens do mundo e desviá-lo da obediência filial a Deus Pai. Insinua-lhe que é bem melhor gozar dos bens do mundo do que submeter-se à vontade de Deus que o destinara a morrer pelos homens.
         A submissão aos bens do mundo, aos reinos do mundo implica sempre a rejeição a Deus. Por isso, nessa terceira tentação, o demônio exige submissão e vassalagem: aceitá-lo e aos bens do mundo e rejeitar a Deus.
         Jesus repele a insinuação de infidelidade ao plano salvífico de Deus repetindo ao diabo duas passagens dos discursos de Moisés ao povo de Deus no deserto: “Você adorará ao Senhor seu Deus e somente a ele servirá” (Mt 4,10b; Dt 5,1.9); e: “É a Javé seu Deus que você temerá; sirva a ele e jure pelo seu nome” (Dt 6,13).
         O povo de Deus no deserto foi infiel à libertação que Deus propunha: aderiu aos ídolos e serviu-os (Ex 32) esquecendo Javé; desviou-se, o povo, do plano de Deus.
         Jesus, o novo Libertador, não se deixou seduzir pelo diabo, pela tentação da idolatria. Foi fiel a Deus e ao plano da salvação.
Em resumo: nas três tentações relatadas por Mateus fica claro o paralelismo que ele faz entre Jesus e Moisés, entre o povo da antiga Aliança e o povo da Nova Aliança. Se Moisés e o povo da antiga Aliança foram infiéis a Deus e sucumbiram às tentações no deserto, Jesus, o novo Moisés e instaurador do novo povo, foi fiel a Deus e venceu todas as insinuações do tentador. É por isso que as citações bíblicas que ele põe nos lábios de Jesus, em resposta ao tentador, são as do Deuteronômio quando relata as tentações do povo de Deus no deserto.
         Nas três tentações que vence, Jesus mostra em que consiste sua missão nesse mundo: é cumprir fielmente a vontade do Pai. A fidelidade dele a esse plano do Pai não admite, pois, interesse pessoal nem desconfiança nem comodismo (= primeira tentação); nem auto- suficiência e ambição (= segunda tentação) nem domínio econômico, político-messiânico (= terceira tentação).[70]
         O versículo final no relato das tentações e que diz: “Então o diabo o deixou. E os anjos de Deus se aproximaram e serviram a Jesus” (Mt 4,11) é complemento teológico: o Messias prometido no paraíso terrestre (Gn 3,15) venceu Satanás e deu início assim aos novos tempos; o paraíso foi recuperado. O evangelista Marcos completa esse quadro dizendo que “Jesus vive entre os animais selvagens, e os anjos o serviam” (Mc 1,13b). É típica alusão à paz messiânica universal trazida por Jesus, o Messias, e predita pelo profeta Isaías:
“O lobo será hóspede do cordeiro, a pantera se deitará ao lado do cabrito; o bezerro e o leãozinho pastarão juntos, e um menino os guiará; pastarão juntos o urso e a vaca, e suas crias ficarão deitadas lado a lado, e o leão comerá capim como o boi. O bebê brincará no buraco da cobra venenosa, a criancinha enfiará a mão no esconderijo da serpente. Ninguém agirá mal ou provocará destruição em meu monte santo, pois a terra estará cheia do conhecimento de Javé, como as águas enchem o mar” (Is 11,6-9).
         Segundo a tradição judaica, animais selvagens no deserto eram simbolo do demônio, da tentação e a presença de anjos era símbolo da providência de Deus.
         Concluindo: Jesus, por ser plenamente homem, passou pelo dilema da tentação. Ele sentiu-se tentado a fazer prevalecer a sua divindade sobre a sua humanidade, desviando-se do projeto original do Pai que o destinara a salvar o homem pelo sofrimento e pela cruz. Mas ele venceu a tentação e sua vitória foi a nossa salvação.


         As bem-aventuranças têm duas redações: uma em Mateus (5,1- 12) e outra em Lucas (6,20-23). Para Mateus, as bem-aventuranças são nove e constituem a nova lei promulgada por Jesus, o novo Moisés; foi promulgada também sobre um monte, como o fora a antiga Lei.
         Em Lucas o enfoque é diferente; as bem-aventuranças são apenas quatro e são seguidas por quatro maldições; são proclamadas não sobre um monte, mas numa planície (6,17) e constituem importante discurso de Jesus  a caminho de Jerusalém.
         As duas redações mostram que Mateus reelaborou, sem dúvida, os grandes ensinamentos de Jesus, resumiu-os e juntou-os todos em grande e solene discurso logo no início de seu ministério. Para Lucas, as bem-aventuranças e as maldições pertencem a um discurso de Jesus durante o seu ministério.
         As bem-aventuranças, na verdade, constituem uma coleção mais ou menos orgânica de ditos e ensinamentos de Jesus de várias épocas e pronunciadas em lugares diferentes. Na forma como as temos hoje elas são uma elaboração catequética da Igreja primitiva.
         Ponto central das bem-aventuranças é a justiça superior que deve
presidir todo o agir cristão; o critério para medir tal justiça é o próprio Pai celeste: “Portanto, sejam perfeitos como é perfeito o Pai de vocês que está no céu” (Mt 5,48).
         O sermão da montanha não se restringe somente às bem-aventuranças, como se diz às vezes. Ele é mais amplo e pode ser assim dividido no evangelho de Mateus:
— Introdução (5,1-2)
— As bem-aventuranças propriamente ditas (5,3-12)
— Apêndice: os discípulos devem ser sal e luz do mundo (5,13-
— Tema central do sermão: a nova justiça, superior à Lei antiga
— A nova prática do agir cristão (6,1-18)
— Conselhos e comparações (6,19-7,23)
— Conclusão do Sermão: a casa sobre a rocha: quem pratica a nova justiça permanece firme no Senhor para sempre (7,24-27).[71]
         As bemaventuranças proclamam uma felicidade paradoxal: são felizes os pobres, os mansos, os aflitos, os perseguidos. Estabelecem nova ordem de valores e de ideais que não coincidem com os do mundo que, ao contrário, proclama felizes os ricos, os bem posicionados, os espertos, os violentos, os saciados!
         As bern-aventuranças têm dinamismo revolucionário e libertador: querem derrubar as estruturas da sociedade corrompida pelo egoísmo e estabelecer uma sociedade nova, fraterna e justa. Nesse sentido as bem-aventuranças são escatológicas, isto é, elas dão o sentido da vida futura, que é vida nova, nova criação.
            As bem-aventuranças são nove em Mateus, como foi dito. As quatro primeiras apresentam o ser do pobre: o pobre é a pessoa necessitada que procura, espera, acolhe. A bem-aventurança fundamental é a da pobreza; as demais a explicitam e completam.
         As três bem-aventuranças seguintes mostram que o pobre, realmente pobre, é como Jesus: misericordioso, verdadeiro e pacífico.
         As duas últimas anunciam a perseguição contra os que querem construir a nova sociedade nos padrões da justiça e do amor.

*

         Breve consideração sobre cada uma das bem-aventuranças
         1.º grupo:  são quatro bem-aventuranças
         lª: “Felizes os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos Céu” (Mt 5,3).
         Pobre designa aqui a pessoa carente, necessitada. Mateus acrescenta: “em espírito”. Essa locução é muito discutida e é interpretada de várias maneiras. De modo geral admite-se que “pobre em espírito” designa a pessoa inteiramente necessitada, carente ao extremo, tanto material como espiritualmente. Espiritualmente significa aqui: a aceitação convicta da própria necessidade, da própria carência. As pessoas totalmente pobres, inteiramente pobres e que aceitam as suas limitações, são mais abertas à mensagem do Evangelho. Sentem que precisam da ajuda de Deus. A pobreza verdadeira é despreocupada porque não tem nada a perder, só a ganhar.
         Essa bem-aventurança é exigência para todo discípulo de Jesus:
ser radicalmente pobre, efetivamente pobre para poder receber e viver integralmente o Evangelho. Segundo esse princípio evangélico não é possível alguém ser rico de bens e pobre “em espírito”, no sentido de desapegado (Mt 6,19s; 4,18; Lc 12,33ss; 5,ls; 9,9; 19,1 etc.).  Isso não existe.
         Uma pessoa pobre, carente, humilde, que pede e aceita a ajuda de Deus, conquistará certamente o Reino dos céus, impossível de conquistar com a riqueza.
         Essa bem-aventurança é explosiva e revolucionária e abre muitas discussões: só os pobres conquistarão os céus? Os ricos podem ser desapegados de suas riquezas e salvar-se? Essa bem-aventurança inverte também os conceitos: a pobreza deixa de ser maldição como antigamente e passa a ser bênção, bem-aventurança mesmo, é salvação.
         “Pobre em espírito”, não designa, pois, pessoa ignorante, tola, sem personalidade, ou pessoa com distúrbio mental, como se diz habitualmente. E coisa bem diferente!
         2ª: “Felizes os aflitos porque serão consolados” (v. 4) Aflito designa a pessoa insegura porque limitada, carente, marginalizada. Algumas Bíblias (como a Bíblia da TEB, Edições Loyola), em vez de “aflitos” trazem a locução “os que choram”. Isso porque no grego a palavra original tem esses dois sentidos. Aflito é ainda a pessoa que não vê possibilidade de melhoria de vida. É o que hoje comumente se chama de “ralado”,  “lascado ” nas Comunidades de base. Afligir-se é conseqüência da mansidão ou da humildade. “Ser consolado” não designa atitude moral de compaixão, e sim esforço pela própria libertação. O pobre, manso, humilde, aflito, em determinado momento, com base em sua abertura para o Evangelho, baseado na conscientização, passa a lutar pela libertação de sua indigência e marginalização. Esse é o consolo, a esperança; é o caminho de libertação, para herdar também o Reino do céu que começa de fato aqui na terra.

         3ª: “Felizes os mansos, porque possuirão a terra”
          Essa bem-aventurança, em algumas bíblias, (por exemplo, a Bíblia Mensagem de Deus, (Loyola) é colocada   no vers. 5. Em outras, (como a Bíblia Sagrada, edição Pastoral  e a Bíblia de Jerusalém (Paulus) ) vem no v. 4. É considerada uma explicação da primeira bemaventurança e até poderia ser omitida. 
         Manso correponde ao termo hebraico anaw e ao grego praus que designam estado de espírito paciente, humilde, despojado. É qualificação da primeira bem-aventurança: o pobre é sempre humilde. O homem manso, humilde, está mais aberto ao Reino.
         “Herdarão a terra” é locução que tem dois sentidos: herdar a terra prometida e herdar o Reino do céu. Habitualmente é interpretada no segundo sentido.
         Essa bem-aventurança é complemento da primeira.

         4ª: “Felizes os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados” (v. 6)
         As palavras originais, tanto no grego como no correspondente hebraico, designam a pessoa que tem fome e sede e não tem com que se satisfazer. E absolutamente necessitada. Essas palavras designam nesse texto toda pessoa que anseia veementemente pela implantação da justiça porque ela não existe entre os homens. Os homens estão carentes de justiça. Justiça designa, aqui, o conjunto dos bens que Deus projetou para todos os homens. Fome e sede de justiça é a luta do homem para conseguir implantar o “estado de justiça”, no mundo, ou seja, a igualdade de condições para se viver bem.
         Todo aquele que lutar corajosamente pela justiça, “será saciado”, isto é, sentirá a alegria de estar construindo um mundo melhor e libertando o homem.
         Conclusão do 1° grupo.
         Como se vê, o fundamental dessas quatro primeiras bemaventuranças é o ser do pobre. O pobre é a pessoa realmente carente, necessitada, convicta de sua indigência, humilde, que não vê possibilidade imediata de melhoria e que por isso se dispõe a lutar tentando modificar esse estado de coisas. Essa luta é luta pelo Reino, pela posse da terra, pela segurança, pela partilha, pela saúde, pela  libertação.
         2.º grupo:  são três bem-aventuranças
         5ª: “Felizes os que são  misericordiosos, porque encontrarão misericórdia”
         6ª: “Felizes os puros de coração, porque verão a Deus”
         7ª: “Felizes os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus” (vv. 7-9).
         Essas três bem-aventuranças mostram a conseqüência social das atitudes do pobre que se abre para Deus e para o próximo.
         O pobre é misericordioso. Misericórdia não significa ter dó. Significa empatia, isto é, sofrer junto, sentir junto, ser solidário com o próximo. Biblicamente a misericórdia é chamada “comoção interior” (em hebraico: hesed rahamîm) e designa o envolvimento da pessoa toda em favor do próximo. O pobre se compadece e sofre com os que sofrem; é solidário com eles e reparte com eles o que tem. Isso é ser misericordioso evangelicamente. Os pobres são os que mais ajudam os outros pobres; são mais sensíveis, são mais abertos.
         O pobre verdadeiramente pobre, evangelicamente pobre, é também verdadeiro. A expressão semita para designar uma consciência leal, sincera, aberta para Deus é “puro de coração”. Quem é “puro de coração”, ou seja, leal e sincero em suas relações com Deus e com o próximo, acolhe e põe em prática o Evangelho. O homem “puro de coração” não pratica a iniqüidade (Mt 15,19) e por isso mesmo sente a alegria constante de estar na amizade de Deus (Sl 24,3), isto é, ele vê a Deus. Para Deus não interessa o exterior do homem; Deus vê o coração. O pobre verdadeiramente pobre não mente, não engana, não faz trapaça.  A expressão “puro de coração” não tem, pois,  conotação nenhuma com a sexualidade, como alguns pensam.
         O pobre é finalmente, pacífico. A paz (em hebraico: shalôm) é biblicamente o conjunto de todas as condições justas e necessárias para que o homem possa viver bem com Deus, com os outros homens e com o mundo. Ela tem base na justiça e no direito. O pobre está muito mais aberto à construção da paz, porque ele é necessitado, humilde, marginalizado. Reter, segurar, acumular, ter ambição, poder, avidez, são atitudes que constroem a desigualdade, a luta, a guerra, nunca a paz.
         Conclusão do 2° grupo.
Quem pratica a misericórdia, quem é verdadeiro no seu relacionamento com os outros, quem é pacífico, esse “alcançará misericórdia”, isto é, terá a solidariedade dos homens e o perdão de Deus; esse “verá a Deus”, isto é, gozará a alegria de uma consciência honesta e estará aberto à palavra de Deus; será chamado “filho de Deus”, ou seja, colaborador de Deus na construção da paz.
         Finalmente as duas últimas bem-aventuranças:
         8ª: “Felizes os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino do Céu.”
9.ª “ Felizes vocês se forem insultados e perseguidos, e se disserem todo tipo de calúnia contra vocês, por causa de mim. Fiquem alegres e contentes, porque será grande para vocês a recompensa no céu. Do mesmo modo persegiram os profetas que vieram antes de vocês” (vv. 10-12).
         Essas duas últimas bem-aventuranças anunciam a perseguição para os que procuram construir a justiça no mundo. A perseguição é o resultado do confronto entre os valores do mundo e os valores do Evangelho. O próprio Jesus será perseguido, assim como o foram também os profetas.
         A perseguição por motivos religiosos é experiência muito antiga e muito conhecida pela Bíblia. Os salmos lembram esse tema constantemente (por exemplo: Sl 7,2; 22; 35; 57 etc.), como também tantos escritos bíblicos (Jr 15,15; 26,7-24; Os 9,8; Am 7,l0-13; Eclo 2,1 etc.).
         Segundo o espírito veterotestamentário a toda violência dever-se-ia responder com igual violência. Era a lei do talião: “olho por olho, dente por dente” (Ex 21,24; Dt 19,21; Lv 24,19-20).
         A vingança divina era também invocada contra os perseguidores.
         Nessas duas últimas bem-aventuranças Jesus muda completamente essa ótica; dá resposta nova à violência e faz da perseguição a condição feliz para a conquista do Reino, O ensinamento e o agir de Jesus são exemplos dessa nova prática evangélica diante da perseguição (Mt 5,44; 10,22; Lc 9,22; 18,32-34; 21,12).
         Conclusão desse último grupo.
         Não se vence a violência com violência, mas com amor. O discípulo de Jesus que procura viver a novidade do Evangelho não pode esperar tratamento diferente do que foi dispensado aos profetas, desde os antigos até o mais recente, João Batista (Mt 14,3ss): a perseguição e a morte. Quem neste mundo viver a lei do amor, até nas perseguições, terá a alegria não só de compartilhar da sorte de Jesus e dos verdadeiros profetas, mas principalmente de conquistar o Reino dos céus (Lc 21,19; Mt 10,17-33).
         Para finalizar: a expressão “porque deles é o Reino dos Céu” é inclusão temática nas bem-aventuranças, isto é, é idéia presente no começo e no fim do discurso de Jesus. Envolve todo o discurso (vv. 3-10). A inclusão temática é recurso literário semita para sublinhar a unidade de um texto. No sermão da montanha o tema fundamental é o “Reino dos céus” e as bem-aventuranças são o caminho para se chegar a ele.


         Falar sobre os milagres de Jesus nos Evangelhos é pisar em terreno escorregadio e perigoso. As opiniões dos autores vão desde o extremo de aceitar tudo o que é narrado como verdadeiros milagres operados por Jesus, até o outro extremo de negar tudo. Os milagres seriam fenômenos explicáveis hoje à luz das modernas ciências.
         A teologia diz que o milagre é “um fenômeno da natureza que transcende as causas naturais a ponto de ser atribuído à intervenção direta de Deus”. [72]
         Se considerarmos como milagres todas as intervenções de caráter prodigioso feitas por Jesus, deveríamos dizer, segundo a definição teológica acima, que Jesus interfere tanto nas leis da natureza a ponto de tornar sobrenatural o natural! O milagre é intervenção excepcional de Deus nas constantes leis da natureza e não intervenção corriqueira e habitual.
         Partindo desse enfoque, podemos antecipar que nem tudo o que é narrado como milagre nos Evangelhos é de fato milagre; como também não podemos negar a possibilidade e a existência do milagre nos evangelhos.
         Os milagres de Jesus são relatados pelos quatro evangelistas. Cada um deles, porém,  fala dos milagres dentro de sua ótica teológica própria, ou seu ponto de vista teológico,  ao escrever o seu Evangelho — como já foi dito.
         Ao relatar os fatos miraculosos de Jesus, todos os evangelistas têm, porém, uma e mesma intenção teológica: mostrar que o Reino de Deus está presente na pessoa de Jesus: “Convertam-se, porque o Reino do Céu está próximo” (Mt 4,17); “O tempo já se cumpriu e o Reino de Deus está próximo.” (Mc 1,15). Querem ainda os evangelistas mostrar que esse Reino confronta-se com o reino do mal: “ Que é que há entre nós, Filho de Deus? Vieste aqui para nos atormentar antes do tempo?” (Mt 8,29); “Os setenta e dois voltaram muito alegres, dizendo: ‘Senhor, até os demônios obedecem a nós por causa do teu nome’” (Lc 10,17). E finalmente querem sublinhar os evangelistas que ninguém poderá ficar indiferente diante desse confronto; deverá tomar partido: “Quem não está comigo, está contra mim. E quem não recolhe comigo, espalha” (Mt 12,30; Mc 9,40). O Reino de Deus, porém,  vencerá o reino do mal. É este, por exemplo, o sentido das inúmeras expulsões de demônios.
         Se o sinal do Reino de Deus no mundo é Jesus, o Filho de Deus, Salvador, o sinal do reino do mal, de satanás, são todas as forças negativas que operam também no mundo.
         Ao relatar tantos milagres em seu evangelho, Mateus quer mostrar que Jesus tem força, domínio e poder sobre todas as forças do mal. Os milagres são para Mateus o veículo e o instrumento que manifestam a ação poderosa de Jesus. São o sinal e confirmação da presença do Reino de Deus no mundo; o sinal da força positiva que é Jesus, o Senhor.
         Mateus trabalha didaticamente com a narração dos milagres. Ele reune nove milagres fundamentais, divididos em grupos de três. Há três milagres feitos por Jesus durante sua caminhada desde o monte das bem-aventuranças até Cafarnaum (8,1-15) e que são estes:  a cura do leproso, a cura do empregado do centurião e a cura da sogra de Pedro.
         Ao concluir esse primeiro grupo, Mateus faz uma observação literária: “À tarde, levaram a Jesus muitas pessoas que estavam possuídas pelo demônio. Jesus, com a sua palavra, expulsou os espíritos e curou todos os doentes” (8,16).
         Depois de um intervalo onde ocorrem duas perguntas feitas a Jesus (8,18-22), Mateus insere outro grupo de três milagres (8,23-24; 9,1-8): a tempestade acalmada, a expulsão de dois demônios e a cura de um paralítico.
         O núcleo desse grupo é a expulsão dos demônios, isto é, o reino de satanás é derrotado: os demônios são expulsos.
         Ao concluir esse segundo grupo, Mateus faz outra observação literária: “Vendo isso, a multidão ficou com medo e louvou a Deus, por ter dado  tal poder aos homens” (9,8).
         Em seguida vem a terceira série com três outros milagres (9,18- 34): a ressurreição da filha de Jairo, a cura de dois cegos e a cura de possesso mudo.
         Mateus encerra a narração fazendo outra observação: “Jesus percorria todas as cidades e povoados, ensinando em suas sinagogas, pregando a Boa Notícia do Reino, e curando todo tipo de doença e enfermidade” (Mt 9,35).[73]
         A enumeração de tantos milagres e as observações literárias que Mateus faz têm uma única direção: apontar para a pessoa de Jesus. Ele é o Senhor da natureza, do cosmo, dos homens e de todas as criaturas. As observações literárias que Mateus faz são uma espécie de sumário dos milagres realizados. A insistência dele nos milagres de Jesus tem finalidade: fazer o crente aproximar-se mais da pessoa de Jesus. O único milagre verdadeiro, real, para Mateus, é Jesus, como presença do Reino do Pai entre os homens. “Para Mateus, a figura de Jesus é a presença e o resplendor de Deus sobre a terra; suas palavras são anúncio do seu reino; seus prodígios mostram que a força salvadora penetrou entre os homens”.[74]
         Os milagres até agora narrados foram de vários tipos: curas de doentes e paralítico, expulsão de demônios, poder sobre elementos (tempestade acalmada) e ressurreição de morto.
         Mateus narrará ainda episodicamente outros milagres semelhantes, como curas de doentes (12,9-13; 14,34-36; 15,21-31; 17,14-18; 20,29-34), expulsão de demônio (15,21-31) e de poder sobre elementos (14,22-35; 2 1,18-19).
         Há ainda dois outros tipos de milagres de Jesus narrados em Mateus: o da multiplicação dos pães (14,13-21; 15,32-38) e o da transfiguração (17,1-9). São dois milagres que devem ser vistos como geniais elaborações teológicas de Mateus para traduzir verdades fundamentais da pregação e da vida de Jesus: ele é o alimento de todo homem que crê; e quando o homem aceita Jesus, ele se transfigura, mostra a sua face divina e fascina.
         No Novo Testamento os milagres de Jesus são designados por diferentes nomes: atos que chamam a atenção e provocam admiração, são chamados thaumásia (= coisas maravilhosas) como, por exemplo, o milagre da tempestade acalmada (8,27); forças que mostram o seu poder, são chamadas dynámeis (= poderes) ( essa é a designação mais comum dos milagres) e finalmente sinais, que são chamados sémeion. O sinal esconde uma realidade.
         O termo mais usado é dynámeis (= poderes).
         Os diferentes nomes certamente traduzem diferentes realidades, ou pontos de vista. Nem tudo o que é relatado como milagre, de fato o é. Os prodígios realizados por Jesus e pelos apóstolos são obras do poder de Deus.
         Cumpre notar que os milagres constituem parte substancial dos evangelhos e estão ligados com os ensinamentos de Jesus.
         Os milagres parecem coisas impossíveis para quem não crê. Por isso já foram chamados lendas, mitos, modos de falar dos evangelistas. O teólogo protestante alemão, R. Bultmann, por exemplo,  dizia que o sobrenatural é incompatível com o pensamento moderno: e por isso as idéias de milagre, de encarnação, de ressurreição são anticientíficas. São mitos. [75]
         Hoje, embora haja muita discussão a respeito da intenção dos evangelistas nesses relatos, todavia a exegese e os críticos admitem
que Jesus era realmente taumaturgo e que realizou inúmeras curas, expulsões de demônios e que teve poder sobre a natureza, pois era o Filho de Deus. Há quem diga, por outro lado, que as curas foram feitas por sugestão dos próprios doentes ou até pela fé deles no poder de Jesus. A História das formas[76] diz que a narração de milagres procede da
comunidade primitiva e é criação daquela comunidade para mostrar
a importância de Jesus e os seus extraordinários poderes, do mesmo modo como eram importantes os relatos sobre os feitos dos taumaturgos gregos e romanos.
         Geralmente, a negação da possibilidade do milagre procede do preconceito filosófico de que o milagre é impossível.
         Os milagres de Jesus narrados nos evangelhos são garantidos por testemunhas oculares e fidedignas. Realmente aconteceram fatos considerados milagrosos pelos discípulos ou pelo próprio evangelista, mas que de fato não o eram. Tinham outras explicações, como auto-sugestão, capacidade das forças físicas da mente etc. Alguns outros fatos, considerados também miraculosos, são elaborações teológicas dos evangelistas. Mas há curas de órgãos físicos como os olhos, a cura da febre, de lepra etc. e que fugiriam à sugestão pessoal. Há ainda curas feitas à distância (Mt 8,13), o que exclui toda possibilidade de sugestão.
         Cumpre notar ainda que Jesus antes de realizar o milagre sempre exige a fé, não só no poder, mas na sua missão, na sua pessoa e em Deus (Mc 2,20; 5,19); às vezes exige a fé em realidades invisíveis como, por exemplo, no perdão dos pecados (Mc 2,l0ss; Lc 7,47s). Sem a fé, Jesus não curava (Mc 6,5); era a fé condição indispensável para o milagre.
A expulsão dos demônios não pode ser considerada como cura de neurose, como dizia a exegese racionalista. Alguns possessos que aparecem nos relatos dos evangelhos podem mostrar de fato sinais de doença neurótica ou mental, mas não todos. Há relatos de expulsão de demônios que resistem a toda caracterização de histeria, epilepsia ou neurose, como, por exemplo, Mc 9,14-29 e paralelos.
         A expulsão de demônios representa grande papel na vida de Jesus. O poder de Jesus sobre o espírito do mal, sobre os demônios, mostra que o reino de satanás está destruído e que o Reino de Deus está chegando (Mc 3,23ss).
         Os evangelistas fazem ainda distinção entre doenças e possessão diabólica. Pelo menos dentro da capacidade deles (Mc 1,32; 3,10ss; Mt 4,24; 8,16; Lc 4,40; 6,18s; 7,21). Além do que, Jesus – segundo os evangelistas - se dirige ao demônio como a um ser “pessoal”. Mais: os milagres são considerados pelos evangelistas como provas da missão divina de Jesus (Mt 14,33; 15,31; Mc 15,39; Jo 6,14; 7,31; 9,16.32s) e o próprio Jesus os realiza nesse sentido (Mc 2,3ss; Mt 11,2 e paralelos; J0 5,36; 10,25; 11,41s; 14,12; 15,24).
         Jesus rechaçou a idéia de fazer milagres para causar admiração (Mt 4,3-4; 12,3 8-39). Negou-se a fazê-los para quem os pedia sem fé, apenas como prova de sua missão ou de sua divindade (Mc 8,11-13; Lc 11,29; Mt 16,4).
         Negar os milagres de Jesus em bloco é negar os evangelhos. Os milagres são parte integrante de sua missão; são inseparáveis da história de Jesus. A atividade de Jesus, sua doutrina e controvérsias com os judeus sempre tinham como motivo seus milagres, ou neles se apoiavam. Os evangelistas estão próximos aos fatos narrados; João diz numa de suas cartas que ele anunciava o que eles tinham visto, ouvido, tocado e contemplado  (1Jo 1,1-3). Lucas garante que consultou as fontes mais seguras para transmitir fielmente o que Jesus falara e fizera (Lc 1,1-3). Tudo isso é garantia de autenticidade, integridade e veracidade dos relatos evangélicos.
         Os milagres de Jesus são classificados em vários tipos, como se disse: milagres sobre a natureza, expulsões de demônios, curas miraculosas, ressurreições de mortos. Cada milagre, porém, deve ser estudado e discutido no seu texto, no seu contexto próximo e de toda a Escritura, levando-se em conta a história, o estilo literário, a finalidade teológica do evangelista etc. Milagres significativos, como a multiplicação dos pães, a transfiguração, a ressurreição do Senhor, têm todo um fundo histórico-1iterário-teológico que deve ser levado em conta em cada um deles. À base de todos, porém, está o poder de Jesus sobre as pessoas, os seres e as coisas. [77]
         Atualmente, já foi dito, discute-se muito sobre os milagres de Jesus. Houve apenas o deslocamento de enfoque: do apologético para o teológico. E há muito interesse em aprofundar tal estudo. Revistas de atualização teológico-bíblica sempre trazem artigos que tratam dos milagres de Jesus nos evangelhos e em Mateus de modo especial. Como também  há livros especializados que discutem os milagres  sob todos os  aspectos.[78]
         Conclusão: Os milagres são antecipação da salvação escatológica:
o homem deve escolher, posto diante do poder de Deus. São sinais que nos revelam o poder de Deus. Mostram aqui na terra que a realidade futura será toda bela, sem mancha nem desvios que precisem de correção.


         Antigamente, essa questão era muito polêmica. O texto bíblico era usado como argumento apologético para se afirmar ou negar a primazia da Igreja de Roma e do papa sobre as demais igrejas e bispos. Hoje, embora o papa nem sempre seja reconhecido como o chefe da Igreja de Cristo e nem a Igreja católica como a única Igreja de Cristo, essa questão não é mais discutida em termos apologéticos, e sim teológicos. Procura-se entender, hoje, no seu contexto, o que significa essa expressão de Jesus.
         À parte toda polêmica, damos aqui algumas explicações desse texto.[79]
         Os livros do Antigo Testamento designam  Deus como a rocha de Israel, o alicerce de Israel. Diz, por exemplo, o Deuteronômio:

“Jacó comeu e ficou satisfeito, Jesurun engordou e deu coices... rejeitou o Deus que o fizera, desprezou sua Rocha salvadora” (Dt 32,15).                    
Os Salmos dizem:
         “Javé, meu rochedo, minha fortaleza, meu libertador; meu Deus, minha rocha, meu refúgio, meu escudo, força que me salva, meu baluarte! (Sl 18,3);
“...pois o meu rochedo e muralha és tu...” (Sl 31,4).
A mesma designação dada a Deus, como Rocha e alicerce de Israel,
é passada depois a um homem: Abraão. Diz o profeta Isaías: “Escutem-me, vocês que andam á procura da justiça e que buscam a Javé. Olhem bem para a pedreira (no hebraico: rocha) de onde vocês foram tirados, reparem bem o talho de onde vocês foram cortados: olhem para Abraão, o pai de vocês; reparem e Sara, que os deu à luz. Quando eu o chamei, ele era um só; mas eu o abençoei e multipliquei” (Is 51,1-2).

         No  Novo Testamento se dá o mesmo processo: os livros do NT
designam Jesus como a rocha. “De fato, a última rocha da Igreja é
evidentemente Jesus, do mesmo modo como o AT chama a Deus de
‘Rocha de Israel’” [80]
         Jesus é chamado nos escritos do NT de “pedra angular” (Mt 21,42; Mc 12,10; Lc 20,17; At 4,11; 1Pd 2,4-8; Rm 9,32-33; Ef 2,20; 1Cor 10,3-4). Ele é a base, a pedra viva, eleita, preciosa aos olhos de Deus; ele é o fundamento da comunidade, da Igreja de Deus.
         O Evangelho de Mateus, que é evangelho eclesial, passa tal designação a Pedro, do mesmo modo como o profeta Isaías (Is 51,1- 2) designa Abraão como a rocha de Israel. Temos então certa correspondência, ou paralelismo, entre o profeta e o evangelista:
         No AT:   rocha  é → Deus  → rocha é Abraão
         No NT:   rocha  é → Cristo → rocha é Pedro

Aqui, no texto de Mt 16,18, há jogo de palavras: Pedro/pedra. Segundo os evangelistas Marcos e João, Jesus deu a Simão o sobrenome de Pedro (Mc 3,16; Jo 1,42). Em Mt, Simão é chamado Pedro logo na primeira vez que é mencionado (Mt 4,18). Por isso, nessa passagem de Mt 16,18, o nome parece que não é conferido, mas apenas interpretado por Jesus. Por outros textos do NT, sabemos que o nome aramaico kefas (= rocha, pedra) é traduzido por Pedro (1 Cor 1,12; 3,22; Jo 1,42).
         Todos os evangelistas narram a confissão de fé messiânica de Pedro/pedra. Por isso mesmo alguns exegetas negaram a autenticidade desse dito de Mateus, atribuindo-o à interpolação da Igreja primitiva com finalidade apologética, isto é, para provar que a Igreja de Roma tinha a primazia sobre as demais. Em 1952 o teólogo e exegeta protestante Oscar Cullmann mostrou que o texto de Mateus é autêntico, e que de fato designa a pessoa de Pedro como o fundamento da Igreja.[81]
         Qual seria então o sentido desse dito de Jesus?
         Como se notou acima, as palavras de Jesus a Pedro foram usadas apologeticamente a partir do século III pelos papas para legitimarem a primazia do papado na Igreja. Mas não é bem isso que o texto quer dizer. Jesus não pensava certamente em aristocracia hierárquica quando disse tais palavras a Pedro.
         No texto de Mateus 16,18 Jesus não fala do fundamento da Igreja, e sim da construção da sua Igreja. Essa Igreja será construída sobre Pedro. Ele será, não o fundador, mas a base sobre a qual o Fundador, Jesus, edificará a sua comunidade.
         Paulo reconhece Pedro como o apóstolo e como intérprete do poder apostólico (Gl 2,8). Em Gl 2,14 mostra que a verdade está acima dos apóstolos. E sobre essa verdade que está apoiado o poder apostólico de Pedro, que por sua vez se fundamenta em Jesus, o único e verdadeiro fundamento da Igreja.
         Tanto os católicos como os protestantes não vêem nessa passagem uma afirmação de que a Igreja está fundamentada sobre a
pessoa de Pedro, mas sim que o fundamento da Igreja é Jesus, a
eterna e imutável Verdade, expressa na confissão de Pedro.[82]
         O texto mostra que Pedro é a rocha sobre a qual Jesus edificará a sua Igreja, mas não é o fundamento da Igreja.
         A razão pela qual Pedro é chamado rocha, pedra, é a sua confissão de fé em Jesus-Messias não só agora, mas principalmente por seu testemunho de fé na ressurreição de Jesus, depois da Páscoa.[83]
         Esse texto de Mateus, embora discutido ainda hoje sob o aspecto teológico, é bastante antigo e não é fruto de interpolação posterior para legitimar o poder de Pedro. A figura de Pedro emerge dc modo especial desde as primeiras páginas dos evangelhos. Ele é o primeiro na lista dos Doze, e é designado como o primeiro e não corno “um dos apóstolos” (Mt 10,2); é ele quem está sempre mais perto de Jesus: como testemunha na transfiguração (17,1), na paixão (26,38); sua casa é também a residência de Jesus em Cafarnaum (4,13); é ele  o porta-voz dos discípulos nos momentos mais importantes, como em Cesaréia de Filipe (16,16), em Cafarnaum (Jo 6,68); a ele é que deve ser dado o primeiro anúncio da ressurreição de Jesus (Mc 16,7; Jo 20,3-7); a ele por primeiro é que Jesus aparece depois da ressurreição (Lc 24,34; 1Cor 15,5).
         Esse dito de Jesus não é referência ao papa como chefe da Igreja de Cristo, mas referência à construção dessa Igreja: ela está construída sobre Pedro. Ele é a rocha, a pedra pela sua fé, como também por ser a primeira testemunha de Jesus ressuscitado. Ele é rocha, pedra, porque ele é a autoridade doutrinal da Igreja. Sobre ele, isto é, sobre sua fé, sobre o seu testemunho está construída a Igreja. “Ele é o representante e o fiador da doutrina de Jesus e de sua interpretação”.[84] 
         A exegese desse texto é difícil. As correntes de interpretação são muitas, tanto do lado católico como do protestante.
         O que dissemos aqui foi colhido da exegese católica, hoje.


         A transfiguração de Jesus sobre o monte Tabor é descrita pelos três evangelistas sinóticos: Mt 17,1-8; Mc 9,2-8 e Lc 9,28-36. Há pequenas diferenças entre as narrações; Mateus, por exemplo, fala do resplendor do rosto de Jesus; Marcos fala da brancura das suas vestes; Mateus não fala, como Marcos, da ignorância de Pedro nem do medo dos discípulos. São pormenores irrelevantes.
         Transfiguração quer dizer transformação, mudança da pessoa. Nos evangelhos significa o estado glorioso, sobrenatural, com que Jesus se apresentou aos apóstolos no monte Tabor.
         A transfiguração como tal é relato teofânico. Relato teofânico é o modo literário com que os autores sagrados narram as manifestações de Deus. Há muitas narrações teofânicas tanto no Antigo com no Novo Testamento (cf. Gn 3,8-24;6,13;18;32,25-31; Ex 13,21; 14,19.224; 19; Nm 19; Dt 1,33; Mt 3,16-17; 17,1-8; Mc 9,2-8; Lc 9,28-36 etc.)
Narrando a transfiguração os evangelistas  usam aqui desse recurso literário, pintam a divindade de Jesus e sua manifestação aos apóstolos, O núcleo da narração é esse: Jesus é o Filho deDeus, manifesta sua divindade e como tal é reconhecido pelos apóstolos.
         Um relato teofânico paralelo a esse é o relato sobre o batismo de Jesus.
         Muitos autores dizem que o relato da transfiguração é pós- pascal, isto é, que foi feito depois da ressurreição de Jesus, quando então os discípulos perceberam, de fato, quem era o Ressuscitado. Depois disso projetaram na vida do Jesus histórico essa experiência que tiveram só depois da ressurreição.
         A maioria dos biblistas, porém, não é dessa opinião, pois literária e teologicamente o relato da transfiguração se assemelha muito mais às narrações do êxodo sobre a manifestação do Senhor a Moisés no meio das nuvens (Ex 24,15-18) do que às narrações sobre a ressurreição. Ainda mais: o caráter fortemente simbólico que transparece no relato, deixa claro que se trata aqui de narração mais simbólica e teológica do que histórica.[85]
         Essa posição não diminui absolutamente a fé e a credibilidade nos evangelhos. Deve-se levar em conta sempre o gênero literário e a perspectiva teológica de cada evangelista ao escreverem eles os seus evangelhos.
         O ponto central, ou o núcleo da narração que fazem, é histórico, real, verdadeiro: é a experiência sensível, real dos discípulos de que Jesus é Deus, o Filho de Deus. Para transmitirem tal verdade, os evangelistas se valeram da linguagem teofânica, da simbologia e de acordo com a própria intenção teológica.
         No relato de Mateus está claro o paralelismo que ele faz com elementos e pessoas do Antigo Testamento. O Evangelho dele quer ser novo Pentateuco, como se disse: Moisés = Jesus; Lei antiga = nova Lei; povo antigo = novo povo de Deus, a Igreja; terra antiga = reino definitivo. Por isso, nesse relato (17,2-8) ele usa os mesmos elementos históricos das narrações do êxodo, agora entendidos dentro de nova ótica: o Sinai é agora o Tabor; o Antigo Testamento, simbolizado por Moisés (= Lei) e Elias (= Profetas) dá agora testemunho da divindade e messianidade de Jesus. Mateus mostra que a Lei e os Profetas completam-se agora em Jesus.
         Essa tomada de consciência dos discípulos sobre a divindade de Jesus pode também ser inserida no tempo pós-pascal, mas como final de um processo de conhecimento dos discípulos sobre a messianidade de Jesus que se ia revelando. Apesar de sua paixão e morte, Jesus era de fato o Messias prometido e enviado. A ressurreição de Jesus completou esse processo de conhecimento; não foi, porém, causa da fé dos discípulos na sua pessoa.
         A transfiguração é também para os evangelistas uma revelação da glória de Jesus aqui.  É uma antecipação da revelação definitiva de Jesus que se dará na parusia, isto é, no final dos tempos (Mt 24,30; Mc 13,24-27; Lc 21,25-27).
         Os elementos típicos de uma narração teofânica podem ser observados aqui: a nuvem, como sinal da presença de Deus (Ex 24,16
= Mt 4,16 e 17,5); o alto monte (Ex 19,2-4 = Mt 17,1); a voz que veio
do céu
(Ex 19,3 = Mt 17,5); o medo do povo ou dos discípulos diante
do maravilhoso (Ex 20,18 = Mt 17,6). Todos esses elementos formam
a moldura para a manifestação de Deus, a teofania.
         Por isso podemos concluir, dizendo que a transfiguração de Jesus não aconteceu da maneira como às vezes se a imagina: Jesus no alto do monte Tabor, de braços abertos, tornando-se lentamente transparente, brilhante, cercado de luzes e de nuvens. Essa imagem é mais cinematográfica do que real.
         A transfiguração, porém, aconteceu como realidade teológica, isto é, como manifestação da divindade de Jesus, publicamente, aos seus apóstolos. Isso se deu num processo lento. Primeiramente os apóstolos se mostravam descrentes, duvidavam de Jesus. Os evangelhos chamam esse estágio de cegueira. Lentamente Jesus vai doutrinando-os, ensinando-lhes a Verdade que liberta, vai-lhes abrindo os olhos. Os evangelistas chamam isso de cura de cegos. De repente os apóstolos intuem, percebem à luz da fé quem era Jesus; então os seus olhos se abrem ao Senhor; eles o percebem como O Messias, O Senhor. Maravilham-se com a descoberta e querem ficar com ele para sempre. Os evangelistas chamam essa mudança de transfiguração. Jesus mudou, transfigurou-se para eles, é outro. É realmente o Filho de Deus.


         Essa pergunta já deu motivo e matérial para muitos artigos e livros. Apresento aqui aprenas um resumo sobre a interpretação desse importante discurso de Jesus, que de fato abrange dois capítulos em Mateus (Mt 24-25).
         Esses dois capítulos constituem o discurso de Jesus sobre os últimos acontecimentos. É chamado discurso escatológico.[86]
         Esse discurso é, na estrutura de Mateus, o último dos cinco discursos de Jesus.
         Realmente o Evangelho de Mateus está estruturado sobre cinco grandes discursos de Jesus:
1. Discurso programático: o que é o Reino dos Céus (5-7).
2. Discurso missionário: características do missionário que vai anunciar esse Reino (10).
3.Discurso central: sobre o mistério do Reino; parábolas (13).
4. Discurso eclesial: a realização do Reino na comunidade (18).
5. Discurso escatológico: os acontecimentos finais, a plenificação do Reino (24-25).
         Voltando ao discurso escatológico: esse discurso tem a mesma base teológica de Mc 13. Mateus introduz, nesse último discurso, todos os ensinamentos de Jesus e da Igreja apostólica sobre a escatologia, isto é, sobre os últimos acontecimentos, ou fim do mundo.
         O modo de narrar é o mesmo dos relatos escatológicos do tempo de Jesus. Mateus usa esse discurso para fazer uma grande catequese. Por isso a parte chamada parenética, isto é, a parte exortativa, instrutiva do discurso, é bastante desenvolvida
         Geralmente esse discurso é dividido pelos autores em duas partes: uma, que abrange o discurso sobre o fim do mundo, ou o discurso escatológico propriamente dito (24,1-36); essa parte é também narrada pelos outros dois sinóticos, Lucas (21,5-36) e Marcos (13); outra, que é própria de Mateus, acentua a vigilância e fala da escatologia individual (24,37-25,46).

         Primeira parte: o discurso escatológico.
         Podemos subdividi-la assim:
         a) Palavras de Jesus sobre a destruição do Templo (24,1-2).
          b) Pergunta sobre a destruição do Templo e sobre o sinal que a precederá (24,3).
         c) Aparecimento de falsos messias (24,4-14; 24,13-28).
         d) O sinal decisivo do “fim do mundo” (24,15-22).
         e) A parusia (ou vinda do Senhor) (24,29-31).
         f) O tempo em que se darão tais acontecimentos (24,32-36).

         Segunda parte: a escatologia individual, ou o fim de cada um.
         a) Preparar-se para a vinda do Senhor, a parusia (24,37-25,30).
         b) O juízo final (25,31-46).
         Sem fazer grandes comentários sobre esses dois importantes capítulos de Mateus, tarefa que, além dos meus limites, fugiria do âmbito desse trabalho, tento apresentar uma síntese teológico-bíblica desse relato de Mateus. Sigo na explanação a divisão e a subdivisão propostas acima.

         Primeira parte
a) Palavras de Jesus sobre a destruição do Templo (24,1-2).
“Jesus saiu do Templo, e ia embora,  quando os discípulos se aproximaram dele para lhe mostrar as construções do Templo. Jesus respondeu: ‘Vocês estão vendo tudo isso? Eu garanto a vocês: aqui não ficará pedra sobre pedra;  tudo será destruído”.

         Jesus responde à pergunta dos discípulos. Eles se referem à reforma que fora feita no Templo por Herodes, no ano 19 a.C. A reforma do Templo já tinha terminado no tempo do ministério de Jesus; a decoração e o embelezamento, porém, duraram mais alguns anos, até o ano 66 dC, pouco antes de o Templo ser destruído definitivamente.
         A admiração dos discípulos é compreensível, pois de fato as pedras usadas na restauração do Templo eram colossais. Ainda hoje podem ser vistos exemplares dessas pedras na Palestina.
         A resposta de Jesus não é a de esperada admiração, mas é predição muito sombria: “...Eu garanto a vocês: aqui não ficará pedra sobre pedra;  tudo será destruído” (v. 2).
         Alguns autores pensam que Jesus esperava um cataclismo iminente que, destruindo o Templo, vingaria a sua rejeição. Isso não é exato, porém. Outros dizem que Jesus usava imagem apocalíptica tirada dos profetas, prevendo ele o fim de Jerusalém.[87]
         A verdade é que Jesus está mesmo reevocando um dado conhecido e tradicional da história religiosa de Israel: o povo de Israel era povo que, apesar de não viver aquilo em que dizia crer, afirmava e estava convicto de que Deus estava com ele, e o Templo era o sinal indestrutível dessa presença de Deus no meio deles. Jesus relembra então as antigas ameaças proféticas segundo as quais o Templo e a cidade seriam destruídos por causa da fé descomprometida e mágica do povo, bem como por causa dos pecados da nação. Realmente diziam os profetas:
         “Por isso, por culpa de vocês, Sião será arada como um campo, Jerusalém se tornará um montão de ruínas, e o monte do Templo será uma colina cheia de mato!” (Mq 3,12); e outro profeta:
         “Ai! Como o ouro puro perdeu o brilho! Esparramaram-se as pedras sagradas pelas esquinas das ruas” (Lm 4,1).
         O sentido das palavras de Jesus é claro: no Templo não ficaria pedra sobre pedra, isto é, o Templo, como já tinham predito os profetas  e como as coisas caminhavam, seria destruído, arrasado!

         b) Pergunta sobre a destruição do Templo e sobre o sinal que a precederá

“Jesus estava sentado no Monte das Oliveiras. Seus discípulos se aproximaram dele em particular e disseram: ‘Dize-nos quando vai acontecer isso, e qual será o sinal da tua vinda e do fim do mundo’” (24,3).
        
         A pergunta tem a intenção de satisfazer curiosidades: quando será o fim do mundo, qual será o sinal que o precederá e quando se dará a segunda vinda do Senhor.
         A expressão “vinda do Senhor” é usada só por Mateus entre os evangelistas e só aqui nesses dois capítulos. O termo empregado é parusia. No Novo Testamento essa palavra é usada como termo técnico para indicar a segunda vinda do Senhor. Paulo a usa 14 vezes.
         Com base na pergunta feita, Mateus compõe todo o discurso escatológico de Jesus — que procuro agora a explicar.

         c) O aparecimento de falsos messias

         “Jesus respondeu: ‘Cuidado para que ninguém engane vocês. Porque muitos virão em meu nome, dizendo: ‘Eu sou o Messias’. E enganarão muita gente. Vocês vão ouvir falar em guerras e rumores de guerras. Prestem atenção, e não fiquem assustados, pois estas coisas devem acontecer, mas ainda não é o fim. De fato, uma nação lutará contra a outra, e um reino contra outro reino. Haverá fome e terremotos em vários lugares. Mas tudo isso  é o  começo das dores.
         Então os homens vão entregar vocês à tribulação e matá-los. Vocês serão odiados por todas as nações por causa do meu nome. Muitos ficarão escandalizados, trairão e odiarão uns aos outros. Vão surgir muitos falsos profetas, que enganarão muita gente. A maldade se espalhará tanto, que o amor de muitos se resfriará. Mas quem perseverar até o fim, será salvo. E esta Boa Notícia sobre o Reino será anunciada pelo mundo inteiro, como um testemunho para todas as nações. Então chegará o fim” (24,4-14).
         “Se alguém disser a vocês: ‘Aqui está o Messias’, ou ‘Ele está ali’, não acreditem. Porque vão aparecer falsos messias e falsos profetas, que farão grandes sinais e prodígios, a ponto de enganar até mesmo os eleitos, se fosse possível. Vejam que eu estou falando isso para vocês, antes que aconteça. Se diserem a vocês: ‘O Messias está no deserto’, não saiam; ‘Ele está aqui no esconderijo’, não acreditem. Porque a vinda do Filho do Homem será como o relâmpago que sai do oriente e brilha até o ocidente. Onde estiver o cadáver, aí se reunirão os urubus” (24,23-28).

            O fim dos tempos será precedido pelo aparecimento de falsos profetas e de falsos messias. A resposta de Jesus mostra, porém, que falsos profetas e falsos messias sempre apareceram e aparecerão. Portanto, é necessário discernimento. Na resposta de Jesus há referência histórica aos “libertadores messiânicos” de seu tempo, como Teudas, Judas Galileu e outros patriotas exaltados (At 5,3 6-37) que desorganizadamente se revoltaram contra a dominação romana e foram massacrados.
         Assim como historicamente sempre apareceram libertadores na vida dos povos, assim também antes do fim do mundo aparecerão falsos profetas e falsos messias, diz Jesus. E mais: estourarão guerras e conflitos.
         As palavras de Jesus não têm nada de específico aqui; são apenas “lugar comum” da literatura apocalíptica, que fala em guerras, terremotos, fome, destruição como sinais do fim do mundo. Jesus diz, aqui, que antes do fim do mundo aparecerão também esses sinais, bem como aparecerão os falsos messias, dizendo que são o Cristo. A volta do Messias, a parusia, verificar-se-á após longo processo histórico. Jesus não especifica, pois, o tempo em que tais coisas sucederão.
         O conjunto de suas palavras sobre o aparecimento dos falsos profetas, sobre as guerras, fome, peste, terremoto etc. é próprio, como se disse, de um modo de falar e de escrever de seu tempo, chamado “estilo apocalíptico”, porque fala dos últimos acontecimentos da História. Os autores desses “apocalipses” empregam muito o gênero de “visões” para falar dos últimos acontecimentos. Eles “conheceriam” os últimos acontecimentos por revelação de Deus!
         Todos os sinais anunciados por Jesus são chamados “dores”:
“Mas tudo isso é o começo das dores” (v.8).
         Dores têm dois sentidos aqui. Além do sentido negativo de sofrimento, angústia, tem o sentido positivo de alegria, de felicidade: “dores de parto”. Das dores do parto surge nova vida (Is 66,8; Jo 16,20-22).
         Os falsos profetas que aparecerão antes do final dos tempos, serão os responsáveis pela diminuição do amor, da caridade, e consequentemente responsáveis também pelo aumento da injustiça. A perseguição dos justos é também tema da apocalíptica, tanto do Antigo quanto do Novo Testamento (Ap 2,10).
         E Jesus acrescenta que o “fim” acontecerá quando o Evangelho tiver sido pregado a todos os povos (v. 14).
         A julgar pelo sentido literal das palavras de Jesus, o fim do mundo está ainda muito longe! Depois de mais de dois mil anos de evangelização ou pregação, apenas um quinto da humanidade conhece o Evangelho! Por isso o versículo não pode ser tomado no sentido literal. E um modo hiperbólico de falar, pois a expressão “em todo o mundo” é referência ao mundo greco-romano. O Evangelho deveria ser pregado ao mundo conhecido, e daí a todos os demais povos.
         O “fim” a que alude o versículo não é, pois, o fim do mundo, segundo alguns autores,[88] mas o fim do judaísmo como nação e como povo eleito. Quando o Evangelho tiver sido pregado ao mundo greco- romano, a nação judaica deixará de ser a única nação eleita; a salvação, rejeitada pelos judeus, será oferecida a todos os povos. [O vers. 28 é frase solta, de outro contexto; nada a ver com o que Jesus diz aqui]

         d) O sinal decisivo do “fim do mundo”

         “Quando vocês virem a abominação da desolação,da qual falou o profeta Daniel, estabelecida no lugar aonde não deveria estar – que o leitor entenda! – então, os que estiverem na judéia fujam para as montanhas. Quem estiver no terraço, não desça para apanhar os bens de sua casa. Quem estiver no campo, não volte para pegar o manto. Infelizes as mulheres grávidas e aquelas que estiverem amamentando nesses dias! Rezem para que a fuga de vocês não aconteça no inverno, nem num dia de sábado. Pois, nesta hora haverá uma grande tribulação, como munca houve outra igual. Se esses dias não fossem abreviados, ninguém conseguiria salvar-se. Mas esses dias serão abreviados por causa dos eleitos” (24,15-22).

         As Bíblias de Jerusalém e a  Pastoral  (Paulus), as Bíblias das Vozes e da Ave Maria colocam nas suas traduções de 24,15 como sinal decisivo do fim do mundo, o aparecimento da famosa “abominação da desolação” predita pelo profeta Daniel (Dn 9,27). A Bíblia, Mensagem de Deus (Loyola) traduz por “abominável devastador”.
         A citação que Jesus faz de Daniel não é referência a sinal decisivo que aparecerá antes do “fim do mundo”. Jesus fala da destruição de seu país. Acontecimento previsível dentro daquelas circunstâncias históricas. Eo fim da nação judaica servia também de imagem para ele falar do fim do mundo. E foi o que fez. O texto não é propriamente profecia sobre o fim do mundo.
         A “abominação da desolação” (ou  o “abominável devastador”) a que se refere o texto de Mateus é historicamente a estátua de Zeus Olímpico, o deus grego, que foi colocada no Templo de Jerusalém no ano 167 a.C. por Antíoco IV (1 Mc 1,54). Isso foi abominação, sacrilégio e sinal claro de que Deus abandonara seu povo, pois entregara aos pagãos, o Templo, lugar santíssimo de sua morada.
         Jesus toma esse acontecimento histórico, conhecido por todos, para dizer que quando a nova abominação, a secularização do Templo, acontecer, será sinal claro do fim da nação judaica.
         Sabe-se pela História que o Templo foi de fato profanado. Foi transformado em fortaleza militar durante a guerra judaica feita pelos zelotas no ano 68 d.C. Fatos graves aconteceram no Templo, como morte de inocentes, profanações etc. Era a repetição da “abominação da desolação” de que falara Daniel. Lucas, ao falar desse mesmo discurso de Jesus, não usa essa expressão nem imagens da apocalíptica judaica. Ele escreve para os gregos os quais não entenderiam esse modo de escrever. Insere no discurso de Jesus expressões como “exércitos”, “cercar a cidade”. São expressões bíblicas, mas também perfeitamente compreensíveis por seus leitores gregos (Lc 21,20).
         Mateus, ao relatar as palavras de Jesus, tem como finalidade alertar a sua comunidade sobre a iminência do fim da nação judaica:
quando o Templo for profanado e quando os exércitos invadirem Jerusalém é preciso fugir. O fim está próximo.
         Esse relato de Mateus mostra bem que tais acontecimentos serão locais: “na Judéia”, diz o v. 16; os vv. 17-19 completam essa idéia.
         Os cristãos palestinenses, segundo relata Eusébio (HistóriaEclesiástica 5,6), seguiram as prescrições de Jesus à risca e fugiram para a Transjordânia, para a cidade de Pella, quando as legiões romanas começaram a chegar a Jerusalém.
         No texto de Mateus, Jesus assinala que é preciso fugir com pressa e faz votos que isso não aconteça em sábado, dia do repouso semanal, quando era proibido caminhar mais de dois mil passos, segundo os rabinos. Isso equivaleria a entregar-se nas mãos dos dominadores.
         Essas prescrições pormenorizadas têm sentido no Evangelho de Mateus, pois ele escrevia para comunidades judaico-cristãs, ainda muito arraigadas na observância das tradições, principalmente do repouso no sábado. Lucas omite essas particularidades, pois não interessavam aos seus leitores gregos.
         A catástrofe de Jerusalém é considerada como a maior tribulação. E de fato o foi, pois a nação foi destruída — coisa impensável para os judeus de então.
         A conclusão dessa seção diz que os dias foram abreviados por causa dos eleitos (v. 22), isto é, no meio de um povo infiel, muitos se conservaram fiéis, porém. É o “Resto de Israel” de que falavam os profetas (Jr 30,20; Ez 11,13; Is 1,9). Se a destruição do país não fosse abreviada, isto é, não tivesse limite, até os justos desapareceriam! Mas a destruição da cidade é castigo temporal, parcial; muitos se salvarão fugindo e reconstruirão o novo Israel.
         Essa seção não relata, pois, o fim do mundo, mas o fim da nação judaica. Jesus usa a linguagem apocalíptica para falar sobre o fim de seu povo. O modo de falar de Jesus elabora-o cada evangelista de acordo com os leitores para quem escrevia.
         Na linguagem apocalíptica de Jesus usam-se termos e acontecimentos históricos de seu povo como imagem do fim do mundo. Desse modo, Jesus refere-se ao profeta Daniel, quando cita a “abominação da desolação” (Dn 9,27; 11,31, 12,12); refere-se ao livro dos  Macabeus quando aconselha fugir para escapar dos invasores (1 Mc
2,28; 2Mc 5,27); lembra oráculos proféticos sobre o fim da nação (Ez
7,15-16; Mq 1,2; Jr 4,23-26; Is 13-14), e finalmente cita textos de
Daniel como consolação e esperança (Dn 12,1). Todos esses elementos devem, pois, ser levados em conta na análise dessa parte do discurso de Jesus em Mateus. Para finalizar essa seção: “Dizendo que esse é o fim, Mateus mescla história e apocalíptica. Para entender seu ponto de vista temos que lembrar que para a comunidade judaico-cristã palestinense, da qual Mateus é aqui o porta-voz, o colapso total que aparentemente se processava no judaísmo da Palestina significava verdadeiramente o fim do seu mundo. Um mundo em que Javé não recebia o culto de seu povo no seu país e no seu Templo — não era o mundo da história. No Antigo Testamento não se relatava nenhum ato de julgamento semelhante, pois não havia mais esperança messiânica de sobreviver a tal ruína: o Messias já viera e seu reino começara. Essa comunidade tinha consciência possivelmente mais clara do que os gentio-cristãos, da dimensão da crise histórico-teológica que estava à base da queda do judaísmo palestinense. Com o desastre, iniciava-se, porém, nova fase do reino”.[89]

         e) A parusia, ou o aparecimento, a vinda do Senhor
        
“Logo depois da tribulação daqueles dias, o sol vai ficar escuro, a luz não brilhará mais, as estrelas cairão do céu, e os poderes do espaço ficarão abalados. Então aparecerá  o sinal do Filho do Homem no céu; todas as tribos da terra baterão no peito e verão o Filho do Homem vindo  sobre as nuvens do céu com poder e grande glória. Ele enviará os seus anjos que tocarão bem alto a trombeta, e que reunirão os eleitos dele, desde os quatro cantos da terra, de um extermo do céu até o outro” (24, 29-31).

         Como foi dito pouco acima, esse termo “parusia” significa “vinda do Senhor”, e é usado só por Mateus e somente nesses dois capítulos. Mateus descreve aqui a segunda vinda do Senhor usando imagens e termos apocalípticos tomados do Antigo Testamento. Podem-se ver, por exemplo, descrições semelhantes em Is 13,10; 27,13; 34,4; Zc 2,10; 12,11-14. E há no texto de Mateus nítida influência de Dn 7,13-14. As convulsões cósmicas pertencem às narrações bíblicas sobre a manifestação de Deus ou do julgamento de Deus. Também no Novo Testamento aparece tal ideia. Além do Apocalipse de João, também Pedro usa dessas mesmas imagens quando descreve o evento de Pentecostes (At 2,14-21).
         Mateus diz que um dia o Senhor voltará. O “sinal do Filho do homem” que aparecerá no céu, é um modo de falar que designa o próprio Jesus. É ele que um dia voltará! O evangelista retoma aqui Dn 7,13-14 onde o profeta fala de misterioso personagem que virá do alto dos céus: “... entre as nuvens do céu vinha alguém como um filho de homem...” O próprio Jesus vai referir-se a essa expressão mais tarde, quando estiver diante do Sinédrio (Mt 26,64).
         O cortejo dos anjos é próprio também dos relatos apocalípticos e teofânicos. O Messias seria acompanhado também pelo seu cortejo (Mt 25,31; Zc 14,5). Eles, os anjos, reunirão todos os povos dispersos, com o “toque da trombeta” (elemento também apocalíptico: lTs 4,15; Ap 8,6), para a manifestação do Filho do homem.
         A linguagem simbólica quer dizer que no final dos tempos estarão reunidos todos os povos para a solene manifestação do Senhor.

         f) O tempo da parusia, ou o tempo em que se verificarão tais sinais

“Aprendam, protanto, a parábola da figueira: quando seus ramos ficam verdes e as folhas começam a brotar, vocês sabem que o verão está perto. Vocês também, quando virem todas estas coisas, fiquem sabendo que ele está perto, já está às portas. Eu garanto a vocês: tudo isso vai acontecer antes que morra esta geração que agora vive. O céu e a terra desaparecerão, mas as minhas palavras não desaparecerão. Quanto a esse dia e essa hora, ninguém sabe nada, nem os anjos do céu, nem o Filho. Somente o Pai é quem sabe” (24, 32-36).

         Nessa parte do discurso, Jesus responde à pergunta dos discípulos sobre o “tempo em que acontecerão tais coisas”. Responde não com fórmulas exatas ou matemáticas, mas com imagens e símbolos, pois o Reino de Deus não é do tempo e do espaço, mas está no tempo e no espaço.
         De modo geral, Jesus diz que o tempo está próximo, mas a data
é incerta. Ele o diz usando parábolas. O tempo é passageiro, corre
veloz; o que são mil anos para o Senhor? (2Pd 3,8). A data da parusia,
da manifestação, não é determinada, mas acontecerá. O importante
é aguardar com atenção e vigilância. Por isso a segunda parte do
discurso é essencialmente parenética, isto é,  exortativa, como já disse.
         A primeira imagem que Jesus usa para falar do “tempo” é a da figueira. Quando ela está com ramos novos e brotos, é sinal de que em seguida começará o verão. Desse modo, diz Jesus, Vocês também, quando virem todas estas coisas, fiquem sabendo que ele está perto, já está às portas” (v. 33). Não se sabe o que Mateus quer dizer com a expressão “todas estas coisas”. Um sinal já foi dado anteriormente:
o “sinal do Filho do homem” (v. 30). Os autores dizem que essa expressão é resposta evasiva de Mateus à sua comunidade que perguntava pelo tempo exato da parusia. Responde ele que ela virá, sem dizer quando! Ele oferece dois dados que praticamente se opõem: de um lado, diz: “tudo isso vai acontecer antes que morra esta geração que agora vive”, de outro lado, diz: Quanto a esse dia e essa hora, ninguém sabe nada, nem os anjos do céu, nem o Filho. Somente o pai é quem sabe” (v. 36).
         Certamente, se essas palavras não são extamente as palavras de Jesus, são pelo menos palavras que traduzem o que Jesus falou. Mas são palavras de difícil interpretação. Santo Agostinho, por exemplo, diz que Jesus não sabia o tempo da parusia para ensiná-lo! E há outras interpretações sobre esse texto. O certo é que o texto está dentro de contexto apocalíptico e é de difícil interpretação. O que é claro é que o tempo da parusia é incerto quanto à hora, mas é certo como acontecimento. Como Marcos (13,33-37) e Lucas (21,34-36) também Mateus sublinha com tais palavras a necessária vigilância. E sobre a vigilância, que constitui o núcleo desse texto, Mateus fala mais amplamente a seguir.

         Segunda parte
         a) Preparar-se para a parusia, a vinda do Senhor
         O texto sobre a vigilancia é bastante longo. É inserido aqui, porém para facilitar o nosso estudo
.        “A vinda do Filho do Homem será como no tempo de Noé. Porque, nos dias antes do dilúvio todos comiam e bebiam, casavam-se e davam-se em casamento, até o dia em que Noé entrou na arca. E eles nada perceberam, até que veio o dilúvio, e arrastou a todos. Assim acontecerá também na vinda do Filho do Homem. Dois homens estarão trabalhando no campo: um será levado e o outro será deixado. Duas mulheres estarão moendo no moinho:  uma será levada,  a outra será deixada. Portanto, fiquem vigiando! Porque vocês não sabem em que dia vira o Senhor de vocês.
Compreendam bem isto: se o dono da casa soubesse a que horas viria o ladrão, certamente ficaria vigiando, e não deixaria que a sua casa fosse arrombada. Por isso, também vocês estejam preparados. Porque o Filho do Homem virá na hora em que vocês menos esperam.
Qual é o empregado fiel e prudende? É aquele que o Senhor colocou como responsável pelos outros empregados, para dar comida a eles na hora certa. Feliz o empregado cujo senhor o encontrar assim quando voltar. Eu garanto a vocês; ele colocará esse empregado á frente de todos os seus bens. Mas, se for mau empregado, pensará: ‘Meu senhor está demorando’. Então começar a bater nos companheiros, a comer e a beber com os bêbados. O senhor desse empregado virá num dia em que ele não espera, e numa hora que ele não conhece. Então o senhor o cortará em pedaços e o fará participar da mesma sorte dos hipócritas. Aí haverá choro e ranger de dentes”.
         Naquele dia, o Reino do Céu será como dez virgens que pegaram suas lâmpadas de óleo e saíram ao encontro do noivo. Cinco delas não tinham juízo. E as outras cinco eram prudentes. Aquelas sem juízo pegaram suas lâmpadas, mas não levaram óleo consigo. As prudentes, porém,  levaram vasilhas com óleo, junto com as lâmpadas. O noivo estava demorando, e todas elas acabaram cochilando e dormiram. No meio da noite, ouviu-se um grito: ‘O noivo está chegando. Saiam ao seu encontro’. Então as dez virgens se levantaram e prepararam suas lâmpadas. Aquelas que eram sem juízo disseram ás prudentes: ‘Dêem um pouco de óleo para nós, porque nossas lâmpadas estão se apagando’. As prudentes responderam: ‘De modo nenhum, porque o óleo pode faltar para nós e para vocês. É melhor vocês irem aos vendedores e comprar’. Enquanto elas foram comprar óleo, o noivo chegou, e as que estavam preparadas entraram com ele para a festa de casamento.  E a porta de fechou. Por fim, chegaram também as outras virgens e disseram: ‘Senhor, Senhor, abre a porta para nós’. Ele, porém, respondeu: ‘Eu garanto a vocês que não as conheço’. Portanto, fiquem vigiando, pois vocês não sabem qual será o dia, nem a hora. 
         Acontecerá como com um homem que ia viajar para o estrangeiro. Chamando seus empregados, entregou seus bens a eles. A um deu cinco talentos, a outro dois, e um ao terceiro: a cada qual de acordo com a própria capacidade. Em seguida, viajou para o estrangeiro. O empregado que havia recebido cinco talentos saiu logo, trabalhou com eles, e lucrou outros cinco. Do mesmo modo o que havia recebido dois lucrou outros dois. Mas aquele que havia recebido um só, saiu, cavou um buraco na terra e escondeu o dinheiro do seu patrão. Depois de muito tempo, o patrão voltou e foi ajustar contas com os empregados. O empregado que havia recebido cinco talentos entregou-lhe mais cinco, dizendo: ‘Senhor, tu me entregaste cinco talentos. Aqui estão mais cinco que lucrei’. O patrão disse: ‘Muito bem, empregado bom e fiel! Como você foi fiel na administração de tão pouco, eu lhe confiarei muito mais. Venha participar da minha alegria’. Chegou também o que havia recebido dois talentos, e disse: ‘Senhor, tu me entregaste dois talentos. Aqui estão mais dois que lucrei’. O patrão disse: ‘Muito bem, empregado bom e fiel! Como você foi fiel na administração de tão pouco, eu lhe confiarei muito mais. Venha participar da minha alegria’. Por fim, chegou aquele que havia recebido um talento, e disse: ‘Senhor, eu sei que tu és um homem severo pois colhes onde não plantaste e recolhes onde não semeaste. Por isso, fiquei com medo e escondi o teu talento no chão. Aqui tens o que te pertence’. O patrão lhe respondeu: ‘ Empregado mau e preguiçoso! Você sabia que eu colho onde não plantei e que recolho onde não semeei. Então você devia ter depositado o meu dinheiro no banco, para que, na volta, eu recebesse com juros o que me pertence’. Em seguida o patrão ordenou: ‘ Tirem dele o talento, e dêem ao que tem dez. Porque, a todo aquele que tem, será dado mais, e terá em abundância. Mas daquele que não tem, até o que tem lhe será tirado. Quando a esse empregado inútil, joguem-no lá fora, na escuridão. Aí havera choro e ranger de dentes’” (24,37—25,1-30).

         Se o Senhor deve voltar para julgar o mundo e o homem, é necessário esperá-lo vigiando. Mateus insere então nesse trecho as admoestações de Jesus sobre a vigilância. A lembrança do dilúvio é uma delas (vv. 37-39). O dilúvio aconteceu quando menos se esperava. Assim será a parusia. A comunidade deve estar sempre atenta aos sinais de Deus; deve discernir a vontade de Deus e viver de acordo com ela. Deus se manifesta no mundo, nas coisas e nas pessoas, O fato do dilúvio lembra que o homem deve ficar sempre de prontidão para receber o Senhor. A prontidão é a vida: ela é que prepara o homem, a comunidade, para o encontro com o Senhor. Do estado de vigilância e de prontidão é que dependerá a salvação de cada um: quando o Senhor se manifestar, uns serão salvos, outros não (vv. 40- 41), de acordo com o que tiverem feito, o bem ou o mal (cf. Jo 5,29).
         Outra imagem da vigilância é a do ladrão. O agir do ladrão é inesperado. Ele vem quando menos se espera, em hora incerta. Essa imagem é usada várias vezes nos escritos do Novo Testamento (1 Ts 5,24; 2Pd 2,10; Ap 16,15). A comunidade deve estar sempre atenta para não ser surpreendida.
         A terceira imagem é a do empregado fiel, aquele que cumpre todos os seus deveres sempre, pois não sabe a que horas o patrão chegará e pedir-lhe-á contas dos trabalhos a ele confiados. Com essa parábola e mais as duas seguintes (sobre as dez virgens e os talentos), Mateus trata da escatologia individual isto é, do encontro pessoal do homem com o Senhor. Até aqui expusera ele a necessidade da preparação e vigilância da comunidade. Agora o interesse do evangelista é a pessoa do cristão. Ele deve estar também preparado para a vinda do Senhor, a qual se dará no fim da vida de cada um. A vida pessoal será, pois, o critério de avaliação para a salvação ou a condenação do homem (Jo 5,29).
         Significativas são, pois, as parábolas aqui inseridas, A parábola do empregado fiel e do infiel é imagem do juízo de aprovação ou de condenação de Deus no tocante ao modo de agir do homem. As duas parábolas seguintes, a das dez virgens e a dos talentos concluem o discurso escatológico (25,1-30), Ambas têm o mesmo sentido: o homem deve estar sempre preparado para receber o Senhor quando ele voltar (= parusia); e a preparação é feita mediante o bom uso dos talentos que Deus confiou a cada um.

         A parábola das dez virgens.
         A parábola é construída sobre os costumes do casamento daqueles tempos: o noivo ia, à noite, com os seus amigos, buscar a noiva na casa dela. Essa parábola é narrada só por Mateus. Sugere claramente a vigilância na espera do noivo que deve vir buscar a noiva. O número 10 é simbólico, é chamado “número redondo”, formando  um todo acabado;  e pode  ser aqui alusão à totalidade, isto é, todos e cada um dos homens são chamados, convocados para a “festa do noivo”, a festa total.  É preciso estar atento, vigilante, para a hora da chegada do noivo. A parábola insiste num aspecto particular: prudência e imprudência, atitudes opostas. A vigilância e a prudência são exigências para que a comunidade e o indivíduo conquistem o Reino: “entraram com ele para a festa do casamento” (v. 10); a imprudência e o relaxamento, porém, afastam a comunidade e o indivíduo do Reino: “Eu garanto a vocês que não as conheço” (v. 12).

         Os talentos.
         O sentido da parábola é este: Jesus exigirá prestação de contas de cada um quando ele voltar. Não é referência somente ao retorno do Senhor no final dos tempos, mas também ao encontro pessoal, de cada um, com o Senhor no fim da vida (escatologia individual).
         A ideia forte da parábola está na qualidade da moeda confiada pelo patrão ao empregado: o talento. O talento como unidade de peso correspondia a 26 quilos e como unidade monetária era de valor altíssimo: seu peso em ouro. A parábola quer expressar a fortuna que o senhor confiou a cada empregado.
         A cada pessoa são confiados por Deus muitos dons, muitos bens, de altíssimo valor, para serem trabalhados, utilizados. Como trabalho, a responsabilidade, a pessoa cresce, amadurece. Rejeitar a oferta, não trabalhar a própria personalidade, não aumentar o capital de Deus é ser irresponsável, indigno de partilhar do Reino. A parábola mostra que é mau administrador não só quem faz o mal, mas também quem deixa de fazer o bem — como o empregado infiel.
         A parábola ensina, finalmente, que o homem não pode fechar-se à comunicação com Deus, mas deixar-se plenificar por ele, aumentando em si a vida de Deus; por outro lado, o fruto da aplicação dos bens do Senhor deve ser destinado a favor do Reino, isto é, do próximo. Na parusia (pessoal e final) o Senhor pedirá contas do nosso amor para com ele e para com o próximo, sua imagem. O critério da avaliação do Senhor serão os talentos com os quais cada um trabalhou e a doação pessoal ao próximo. Com essa temática encerra Mateus o discurso escatológico em 25,3 1-46.

         b) O juízo final

         “Quando o Filho do homem vier na sua glória, acompanhado de todos os anjos, então se assentará em seu trono glorioso. Todos os povos da terra serão reunidos diante dele, e ele separará uns dos outros, assim como o pastor separa as ovelhas dos cabritos. E colocará as ovelhas à sua direita e os cabritos à esquerda. Então, o rei dirá aos que estiverem à sua direita: ‘Venham vocês, que são abençoados por meu Pai. Recebam como herança o Reino que meu Pai lhes preparou desde a criação do mundo. Pois eu estava com fome, e vocês me deram de comer; eu estava com sede, e me deram de beber; eu era estrangeiro, e me receberam em sua casa; eu estava sem roupa, e me vestiram; eu estava doente, e cuidaram de mim; eu estava na prisão, e vocês foram me visitar.’ Então os justos lhe perguntarão: ‘Senhor, quando foi que te vimos com fome e te demos de comer, com sede e te demos de beber? Quando foi que te vimos como estrangeiro e te recebemos em casa, e sem roupa e te vestimos? Quando foi que te vimos doente ou preso e fomos te visitar?’ Então o Rei lhes responderá: ‘Eu garanto a vocês: todas as vezes que vocês fizeram isso a um dos menores de meus irmãos, foi a mim que o fizeram’. Depois o Rei dirá aos que estiverem à sua esquerda: ‘Afastem-se de mim, malditos. Vão para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos. Porque eu estava com fome, e vocês não me deram de comer; eu estava com sede, e não me deram de beber; eu era estrangeiro, e vocês não me receberam em casa; eu estava sem roupa, e não me vestiram; eu estava doente e na prisão, e vocês não me foram visitar’. Também estes responderão: ‘Senhor, quando foi que te vimos com fome, ou com sede, como estrangeiro, ou sem roupa, doente ou preso, e não te servimos?’ então o rei responderá a esses: ‘Eu garanto a vocês: todas as vezes que vocês não fizeram isso a um desses pequeninos, foi a mim que não o fizeram’. Portanto, estes irão para o castigo eterno, enquano os justos irão para a vida eterna”  
(25,31-46).
        
         Esse trecho é, como se disse, a conclusão do discurso escatológico. Conclusão lógica. O caráter desse relato é essencialmente parenético, isto é, exortativo, doutrinário. A Comunidade e o cristão vigilantes, que esperam ansiosamente o Senhor, entram na posse do Reino para eles preparado, quando o Senhor vier.
         Essa volta do Senhor, ou esse juízo final tem a finalidade de fazer justiça, isto é, dar aos justos a recompensa e aos ímpios o castigo.
         A cena descrita por Mateus tem cores apocalípticas: vinda gloriosa do Senhor, acompanhamento de anjos, trono glorioso (cf. Zc 14,5; Dn 7,9-14). Também se atém aos costumes pastoris da Palestina, quando ao cair da tarde os pastores separavam as ovelhas dos cabritos (Ez 34,17-22).
         O critério do julgamento final para concessão do prêmio ou aplicação do castigo é o amor. Amor a Deus e amor ao próximo. Quem se abriu a Deus e ao irmão, será bendito; quem se fechou a Deus e ao irmão, será maldito.
         As expressões: “à sua direita” e “à sua esquerda”, são simbólicas. Sempre os homens usaram-nas para designar o bem ou o mal.
         O destino final e eterno de cada um é plasmado pela própria existência terrena, no relacionamento com Deus e com os irmãos.



         O Evangelho de Mateus, como já foi lembrado, é um evangelho planejado; foi escrito para mostrar aos seus leitores judeu-cristãos que Jesus era o Messias enviado, e que a partir de agora começava a salvação definitiva. Por isso Mateus usa muito o Antigo Testamento na composição de seu evangelho. Faz cumprir em Jesus tudo o que os profetas falaram sobre o Messias, o enviado de Deus. O núcleo do evangelho dele, como também já foi dito, é a pessoa de Jesus, como o Messias prometido e  enviado por Deus.

         Num trecho da narração da morte de Jesus (27,51-54), Mateus usa um modo de escrever de seu tempo e faz aí também elaboração ou releitura, como disse, de profecias do AT sobre o Messias. Diz o texto:
        
         “Imediatamente a cortina do santuário rasgou-se em duas partes, de alto a baixo; a terra tremeu e as pedras se partiram. Os túmulos se abriram e muitos santos falecidos ressuscitaram. Saindo dos túmulos depois da ressurreição de Jesus, apareceram na Cidade Santa e foram vistos por muitas pessoas. O oficial e os soldados que estavam com ele guardando Jesus, ao notarem o terremoto e tudo o que havia acontecido, ficaram com muito medo e disseram: ‘De fato, ele era mesmo Filho de Deus’” (27,51-54).

         a) A cortina do Santuário ou o véu do Templo
         Mateus mostra primeiramente aos seus leitores, judeu-cristãos, que a Antiga Aliança acabara. Deus celebrava agora a Aliança definitiva com os homens, mediante seu próprio Filho Jesus. Para dizê-lo, Mateus usa uma figura, um símbolo: a grande cortina do Santuário, ou o véu do Templo. Diz ele que “Imediatamente a cortina do santuário rasgou-se em duas partes, de alto a baixo...” (v. 51 a).
         A cortina do Santuário era uma peça ampla, como grande cortina,  que  separava  o Templo propriamente dito, do chamado “Santo dos santos” - local onde ficava a arca da aliança, no tempo de Salomão. O Templo tinha três divisões, lembradas no Novo Testamento: o átrio, o santo e o Santo dos santos (ou Santíssimo. O átrio era a entrada do Templo; chegava-se a ele por uma escada de 12 degraus. Não havia no átrio nenhum objeto ligado ao culto. Depois do átrio vinha o santo. Era espaço intermediário entre o átrio e o Santo dos santos. O santo continha no centro o altar dos perfumes, à esquerda a mesa dos pães da proposição e à direita o candelabro de sete braços, de ouro maciço (Ex 30,1-10; Nm 4,7; 1Cr 9,32; Ex 27,20; 2Cr 4,7-8). Uma cortina dupla separava o santo, do Santo dos santos. Era chamada santo dos santos (ou Santíssimo) uma sala de 12 metros de largura e vazia. No tempo de Salomão estava aí a arca da aliança (lRs 8,6-9). Nesse local só podia entrar o sumo sacerdote uma vez ao ano. O santo dos santos era considerado o lugar da shekiná, isto é, da presença e da glória de Deus (Ex 29,43-46; 40,34-3 8)
         Tanto no Tabernáculo no deserto como no Templo de Jerusalém havia dois tipos de cortina do Santuário. A primeira separava o Templo do átrio de entrada, assim como a cortina do Tabernáculo no deserto (Ex 26,31-36). A segunda cortina estava no interior do Templo e separava o santo do santo dos santos, como se disse. Um mesmo tipo de cortina separava antigamente a arca da aliança dentro da tenda (Ex 26,3 1-33).
         Alguns biblistas até discutiam qual dessas duas cortinas se rasgara ! Mas isso não é nada importante. Mateus certamente não se refere a uma cortina concreta, mas sim usando esse sinal sagrado, como símbolo:
o Antigo Testamento figurado no “Santo dos santos” rasgou-se, isto é, cumprida a sua missão cedeu lugar ao Novo Testamento. De agora em diante haverá novo povo, novo Templo, nova Aliança, porque o Messias prometido já viera. [A carta aos Hebreus (9,12 e 10,20) entenderá também esse episódio como simbólico: o culto antigo deixa de existir, cede seu lugar ao novo culto].

         b) O terremoto, a escuridão, a ressurreição de mortos
         Em seguida Mateus diz que a terra tremeu, as rochas racharam e houve ressurreição de alguns mortos, os quais, saindo dos seus túmulos, foram à cidade e apareceram a muitos (27,5 1-53).
         Pode-se até pensar na surpresa e no susto do povo ao encontrar na rua os ex-mortos! Mas nada disso aconteceu! Aqui está clara a linguagem figurada usada por Mateus. Ele lembra passagens do profeta Amós e Joel. Diz Amós:

         “Javé jura pelo orgulho de Jacó: não posso jamais me esquecer de tudo o que essa gente faz. Não é por isso que a terra treme e seus moradores todos se apavoram? Não é por isso que toda ela sobe para o rio Nilo e, como o rio do Egito, baixa novamente?” (Am 8,7-8). E Joel acrescenta: “Diante deles, a terra treme e os céu de abala; o sol e a lua se escurecem, e as estrelas perdem o brilho” (Jl 2,10).

         Os profetas falam do julgamento de Javé sobre o seu povo infiel. E Mateus alude aqui, no seu Evangelho, a esse mesmo tipo de julgamento. Pela morte de Jesus, o mundo é julgado por Deus. E quando Deus vem julgar o mundo, todo o cosmo se convulsiona, segundo o modo de narrar bíblico (Ex 19,16-19; Dt 4,10-12).
         Mateus fala também que se fez noite repentinamente, pouco antes da morte de Jesus: “Desde o meio-dia até às três da tarde houve escuridão sobre a terra” (27,45).
         O texto é a releitura teológica de textos proféticos sobre o julgamento de Deus. As trevas são na Bíblia símbolo do julgamento de Deus. (Am 5,18.20; Jr 13,16; Jl 2,2.3 1; Sf1,15; Mt 8,12; 22,13; 25,30). De modo especial, são símbolo do julgamento de satanás, símbolo de desgraças (Lm 3,2) e de castigo de Deus (Jl 2,10). As trevas são aqui, no texto de Mateus, sinal da desgraça e do castigo que se abaterão sobre a nação judaica  pela morte de Jesus. [90]
         E Mateus acrescenta ainda outro particular: a ressurreição dos santos e a aparição deles na cidade. Também aqui o evangelista concretiza em termos de Novo Testamento a esperança do profeta Ezequiel sobre a restauração definitiva de Israel. Diz o profeta:

“Em seguida, Javé me disse: ‘Criatura humana, esses ossos são toda a casa de Israel. Os Israelitas andavam dizendo: ‘Nossos ossos estão secos e nossa esperança se foi. Para nós, tudo acabou.’ Pois bem! Profetize e diga: Assim diz o Senhor Javé: Vou abrir seus túmulos, tirar vocês de seus túmulos, povo meu, e vou levá-los para a terra de Israel. Povo meu, vocês ficarão sabendo que eu sou Javé, quando eu abrir seus túmulos, e de seus túmulos eu tirar vocês” (Ez 37,11-13).

         Para Mateus a morte de Jesus concretiza a promessa e a esperança dos profetas: a morte é vencida, a partir de agora reinará a vida por meio de Jesus; ele é o Libertador dos justos, dos santos (Rm 2,12- 16; Hb 12,22-24; 1Cr 15; lPd 3,19). Por meio de Jesus o homem pode desde já alcançar a nova terra, a Jerusalém celeste.
         Tais conceitos teológicos, Mateus os ensina reelaborando os dados proféticos.
         Esse conjunto todo de sinais extraordinários usados por Mateus nesse trecho é próprio de um modo religioso de escrever dos antigos. É o chamado gênero apocalíptico, como já foi explicado. Não pode ser tomada ao pé da letra a narração de Mateus, pois seria algo impossível de se entender.
         Concluindo essa explicação, diria que Mateus não descreve, nesse trecho, um  terremoto acontecido de fato, quando Jesus morreu; nem afirma que houve escuridão física ou que a cortina do Santuário rasgou ou ainda que houve aparição de mortos que ressuscitaram. Tudo isso pertence a quadro teológico descrito com as cores da apocalíptica. A todos esses sinais corresponde a conversão dos gentios, descrita no v. 54. Mateus ensina aqui, com tal descrição apocalíptica, que com a morte de Jesus, o velho mundo (simbolizado pela cortina do Santuário) desapareceu; as trevas, terremoto e ressurreição de santos (elementos tirados dos profetas) indicam que a época final da História da Salvação (anunciada pelos profetas) começa agora, e que o primeiro sinal de que a nova História da Salvação está começando é a conversão dos gentios — sempre rejeitados no Antigo Testamento, mas importantes agora na nova economia.



         Esse episódio é relatado nos evangelhos sinóticos (Mc 5,1-20; Lc 8,26-39; Mt 8,28-34). Em Marcos a narração é mais elaborada, por isso uso a sua narração para a explicação  que segue.
         Há muitas explicações desse fato. Para boa parte dos exegetas esse relato “é um dos relatos de milagres mais difíceis de interpretar”.[91] Como se notou, esse milagre é descrito pelos três primeiros evangelistas. Há, porém, algumas diferenças de redação entre eles, mas substancialmente é o mesmo o episódio narrado. Isso leva a admitir a historicidade do acontecimento. Historicidade que não precisa e nem deve ser entendida literalmente, isto é, com todas as minúcias com as quais vem narrado o milagre operado por Jesus, acontecido na cidade de Gerasa e que teve como personagem um endemoninhado furioso. Explicar o modo como é narrado tal milagre é problema que desafia os exegetas.
         Muitas explicações foram dadas até agora. Algumas aceitáveis, outras não. Não é aceitável, por exemplo, a explicação segundo a qual o relato é uma história edificante a respeito da cegueira dos pagãos, que preferem seus animais impuros, os porcos, ao Salvador do mundo (Jesus). É um extremo. Como também não é aceitável a explicação que passa para o outro extremo admitindo a historicidade de todos os pormenores e dizendo que o relato deve ser aceito literalmente, na sua totalidade, como histórico. Uma e outra proporiam dificuldades exegéticas desnecessárias..
         O exegeta A. Richardson diz que “o relato ensina que o mal destroi-se a si mesmo; não pode existir por si mesmo, senão enquanto se apoia no bem”.[92] Outros dizem que o relato circulava já nas comunidades primitivas como uma explicação da grande fama que Jesus adquirira nos países estrangeiros. Tal relato teria sido depois elaborado pelos evangelistas.
          Biblistas contemporâneos consideram o relato de Marcos como midraxe[93] elaborado sobre uma base real,  e mais um texto de Isaías (Is 65,2-5,) e cuja finalidade era a de apresentar Jesus como o Salvador dos gentios. De fato, é Marcos quem desenvolve mais as relações de Jesus com os pagãos (7,24-37; 8,1-10); a narração, se comparada a outras narrações de Marcos, deixa perceber que neste relato o evangelista desenvolve com mais pormenores, episódios já anteriormente narrados. De modo que o fato aqui narrado não constitui um acontecimento especial, original, mas é parte de um todo nos relatos de milagres em Marcos.
         Essa explicação não nega, pois, a historicidade do evento, entendido como milagre de expulsão de demônio por Jesus, bem como não atribui historicidade a todos os pormenores do relato. Tais pormenores aqui incluídos seriam mais um comentário ampliado sobre o tema das expulsões de demônios por Jesus. Assim sendo, poderíamos então entender o sentido das expressões que ocorrem nesse relato, em Marcos.
         Na análise do relato, exegetas fazem notar que cidade onde ocorre o milagre é difícil de ser localizada geograficamente. Para Mateus, o fato se deu em Gadara (Mt 8,28), cidade situada a 12 quilômetros do lago de Genesaré, às margens do qual se dera o milagre segundo o texto. Para Marcos, o fato deu-se em Gerasa, cidade a 60 quilômetros de distância do lago (Mc 5,1). Parece que o local do milagre não é então elemento importante no relato.
         Marcos caracteriza bem o endemoninhado: ele saíu de entre as sepulturas, pois morava nas tumbas; ninguém conseguia detê-lo, pois arrebentava até correntes; percorria dia e noite o cemitério e os montes vizinhos urrando e machucando-se com pedras (vv. 2-5). A descrição é forte e até  macabra! O quadro é o de um  louco furioso em ação.
         Nesses pormenores o conteúdo da narração de Marcos se assemelha a uma descrição  descrição que Isaías faz do povo hebreu,  rebelde e ímpio:
        
         “A cada dia eu estendia a mão para um povo desobediente; eles andavam por um mau caminho, seguindo seus próprios caprichos; era um povo que me provocava sempre, bem na minha cara. Ficavam oferecendo sacrifícios em jardins, e queimavam incenso em cima de tijolos. Moravam em cemitérios, passavam a noite em esconderijos, em seus pratos comiam carne de porco e alimentos impuros. Diziam coisas assim: ‘Fique londe de mim! Não se aproxime de mim, que para você eu me tornei sagrado’. Isso fez a minha ira fumegar como fogo que arde o dia inteiro” (Is 65,2-5).

         Nas narrações de Marcos sobre expulsões de demônios, são acentuados o domínio e a força de Jesus sobre eles (Mc 1,23; 3,11; 9,20). Por isso os demônios se prostram diante de Jesus. É o modo de Marcos mostrar a submissão deles a Jesus, o Senhor.
         As palavras do endemoninhado pedindo que Jesus o deixe em paz afastando-se dele (vv. 6-7) podem ser também comparadas com o citado trecho de Isaías. Em Mc 5, o demônio diz: “Que há entre mim e ti, Jesus, Filho do Deus Altíssimo? Eu te peço por Deus, não me atormentes!” O demônio pede que Jesus se retire e não o atormente,  não o perturbe. O trecho de Isaias diz: “... Fique longe de mim. Não se aproxime de mim...” (65,5a). A correspondência literária ou paralelismo são muito afins. Fica a impressão de que esse texto do profeta tenha alguma coisa a ver no relato de Marcos.
         Outros pormenores: em Marcos os demônios proclamam que Jesus é o Filho do Deus Altíssimo (1,24; 3,11; 8,7). Essa expressão é a mesma que os gentios usam quando se referem ao Deus de Israel, segundo a Bíblia (Dn 4,21-22; Gn 14,18-20; Is 14,14; At 16,17).
         Pelo texto não se pode dizer que Jesus é reconhecido como Deus pelo demônio, visto que logo em seguida o demônio esconjura o nome de Jesus: “Que há entre mim e ti, Jesus, Filho do Deus Altíssimo? Eu te peço por Deus, não me atormentes!” (v. 7).
         O demônio diz ainda que se chama Legião, o que em termos numéricos indicava uma unidade militar composta por 6 mil soldados. Segundo J. Jeremias, o termo aqui usado por Marcos teria sido o aramaico legyôna, que significa soldado. O texto seria assim: “meu nome é ‘soldado’ porque nós (os demônios) somos muitos”. No entender dos gregos o termo soou “legião”, e por isso foram acrescentados os vv. 12-13 (sobre os porcos)  para completar o relato. Talvez na base do relato de Marcos esteja apenas a expulsão de um demônio.[94]
         A alusão aos porcos endemoninhados é uma confirmação de que o fato se deu em território pagão, já que o porco era considerado animal impuro pelos judeus (Lv 11,7; Dt 14,8; lMc 1,47; Mc 6,18-31; 2Mc 7).
         Cabe aqui uma última comparação desse texto de Marcos com o de Isaías:
         Diz Marcos:
         “Os espíritos impuros suplicaram: ‘Mande-nos para os porcos, para que entremos neles’. Jesus deixou. Os espíritos impuros saíram do homem e antraram nos porcos. E a manada – mais ou menos uns dois mil porcos – atirou-se monte abaixo para dentro do mar, onde se afogou.” (Mc 5,12-13).
Diz Isaías:
 “.. em seus pratos comiam carne de porco e alimentos impuros” (Is 65,4b).
         Ainda aqui aparece a força do paralelismo. O paralelismo é feito pela referência literária dos dois textos ao animal impuro: o porco. A simbologia é perfeita: os pagãos são os animais impuros que devem ser evitados.
         Esse relato é relato histórico no seu núcleo. Narra uma expulsão de demônio feita por Jesus; o texto que temos hoje é um midraxe feito pelos evangelistas sobre um texto de Isaías (65,2-5), associado à atuação miraculosa de Jesus em favor de pagãos. Os números: legião e dois mil porcos são relativos nesse texto. O afogamento dos porcos é fantasia do midraxe. O sentido do relato é mostrar o poder de Jesus sobre os espíritos maus (demônios), bem como a abertura da missão salvífica do Senhor em favor dos gentios.
         Discutir por que os porcos afogaram-se, discutir a possibilidade de tais animais ficarem endemoninhados, discutir o número de porcos, são particulares que não importam aos evangelistas. E próprio do tipo de história religiosa que narram. O núcleo desse relato é histórico, como se disse, e tem como base uma expulsão de demônio feita por Jesus em território pagão. O ponto alto da narração é este: Jesus fez milagres em terras pagãs também; revelou-se aos pagãos e deixou ali como missionário o próprio possesso libertado: “...Vá para casa, para junto dos seus, e anuncie para eles tudo o que o Senhor, em sua misericórdia fez para você. Então o homem foi embora e começou a pregrar pela Decápole tudo o que Jesus tinha feito por ele. E todos ficavam admirados” (Mc 5,19-20).
         O paralelismo entre esse trecho do evangelista e o texto de Isaías tem o seguinte sentido, dizem hoje intérpretes de Marcos: Isaías fala da rebeldia de seu povo; um povo que não só não queria seguir o Senhor, afogando-se em caprichos, desobediências e provocações, mas  que ainda praticava a iniqüidade de andar pelos cemitérios e comer carne de porco, coisas proibidas pela Lei. O texto dos sinóticos é feito sobre essas três idéias de Isaías: rebeldias, andar pelos cemitérios e comer carne de porco. Isso são coisas do demônio e precisam ser expulsas da vida do povo.
         Outros exegetas notam que o evangelho de Marcos é o primeiro dos evangelhos; ele escrevia para pagãos convertidos e não para judeus. Portanto, não teria muito sentido essa interpretação.
         A interpretação melhor do texto seria a já lembrada: o texto é um dos milagres de Jesus feitos em terras de pagãos (= rejeitados = porcos), com a finalidade de mostrar que a pessoa de Jesus (a Salvação) se revela também aos pagãos. Jesus não só fez milagres na terra deles, mas ainda fez dos pagãos, missionários do seu Evangelho. O resto tudo é enfeite literário e fantasia de midraxe. Ou como dizem alguns outros intérpretes: Marcos simplesmente quer dizer, com esse relato, que o demônio, onde chega, cria confusão e ruina para todo mundo. É preciso expulsá-lo sempre.
        
        

         Esse fato é narrado nos evangelhos de Mateus (15,21-28) e de Marcos (7,24-30). A mulher era estrangeira, era cananeia. Pediu, humildemente, que Jesus lhe curasse a filha endemoninhada. Depois de muita indiferença, ela é atendida porque amolava muito. E é atendida com palavras duras da parte de Jesus: “Eu fui mandado somente para as ovelhas perdidas do povo de Israel” (Mt 15,24); “Não está certo tirar o pão dos filhos e jogá-lo aos cachorrinhos” (Mt 15,26).
         De fato, para a nossa sensibilidade essas palavras são duras e até ofensivas.  Mas esse diálogo de Jesus deve ser inserido no seu contexto histórico-teológico.
         O contexto histórico mostra que o episódio acontece em país estrangeiro, Canaã, na região de Tiro e Sidônia, e o diálogo é feito por pessoas de raças e crenças diferentes: Jesus, os discípulos e a mulher cananeia. O texto mostra historicamente o primeiro encontro de Jesus com o mundo pagão.
         O contexto teológico é o da salvação enviada aos pagãos. Tema muito debatido pelos judeus, que se consideravam o único povo eleito; tema debatido, depois, também na comunidade cristã primitiva, formada por judeus e pagãos convertidos.
         O núcleo desse episódio é esse: Jesus, o Salvador, é enviado para todos os povos. Todo aquele que encontra Jesus e o proclama Salvador, tendo fé na sua pessoa, será salvo.
         Para proclamar essa verdade os evangelistas se valem de um  encontro histórico de Jesus e seus discípulos com mulher estrangeira que lhe pedia um milagre. Usam, no diálogo de Jesus com a mulher, palavras e expressões conhecidas pelo povo hebreu e até pelos povos vizinhos.
         Os judeus consideravam-se os herdeiros das promessas feitas a Abraão; consideravam-se o único povo eleito, os “filhos de Deus” (Ex 4,22; Dt 14,1; 22,6; Is 1,2; 43,6; Jr 31,9; Os 11,1; Rm 9,4).
         Os pagãos, por outro lado, eram considerados “cães”,  por eles. Até existia um ditado no tempo de Jesus que dizia: “Quem come com um pagão, come com um cão”. Jesus, o Salvador, nasceu no meio do povo hebreu; era o Messias prometido. Devia, sem dúvida, convencer por primeiro seu povo de sua messianidade e evangelizá-lo em primeiro lugar.
         Os profetas já tinham anunciado a vinda do Messias de Israel com a salvação que ele traria. E Jesus tinha consciência disso. Por isso, seguindo também a tradição, ele diz à mulher que deveria evangelizar primeiramente o seu povo. É o sentido da expressão: “Eu fui mandado somente para as ovelhas perdidas do povo de Israel” (Mt 15,24); ou seja: havia muito trabalho para fazer no meio de seu povo.
         Diante da insistência da mulher, ele diz que não ficava bem deixar de atender seu povo para atender estrangeiros. A expressão que ele usa era muito conhecida e habitual: “tirar pão dos filhos para dá-lo a cães”. Para nós essa linguagem parece ofensiva. Para o meio cultural de Jesus e da mulher cananeia, não. [O texto de Mateus traz dois termos  para designar o cachorro: kyôn = cachorro vira-lata, vadio, e kynárion = cachorrinho de estimação, bem tratado, caseiro].  Por isso mesmo a mulher não se ofendeu; a resposta que ela dá a Jesus traz conteúdo teológico muito grande apesar das palavras usadas por ela: “...os cachorrinhos comem as migalhas que caem da mesa de seus donos” (v. 27). [Cachorrinho de estimação  come até do prato das donas!]. Com isso ela expressou grande verdade: a salvação é enviada de fato em primeiro lugar aos judeus, mas depois deles é destinada também  a todos os que aceitam o Salvador.
         Uma vez que a mulher mostrou tão grande fé na pessoa de Jesus, ela passa imediatamente a pertencer ao novo povo de Deus, é admitida à salvação. E Jesus atende o seu pedido: a filha é curada.
          Esse relato evangélico apresenta três elementos importantes da História da Salvação:
         — Jesus é o Salvador anunciado pelos profetas e que veio para evangelizar o seu povo em primeiro lugar: “Ela (a Palavra) veio para a sua casa, mas os seus não a receberam” (Jo 1,11);
         — o povo hebreu tem precedência histórica na História da Salvação. Isso também dirá mais tarde são Paulo em Rm 1,16; 2,9-10; 11,11-24;
         — a universalidade da salvação: a salvação de Jesus destina-se a todos os povos, sem acepção de raças e povos. Todo aquele que o acolher, será salvo (Mt 12,50; At 10  e outros tantos textos).
         Concluindo: o relato evangélico é relato teológico redigido em linguagem popular e dentro da cultura daquele tempo. A linguagem parece áspera aos nossos ouvidos, mas é simbólica e traduz a grande verdade do Novo Testamento: Jesus, o Salvador, veio para salvar a todos. E todo aquele que nele crer será salvo (At 10,34-35).







ÍNDICE











         Este livro foi preparado pensando no povo que se reúne nas comunidades.
         O Autor parte das perguntas mais frequentes feitas pelo povo ao estudar a Bíblia.
         Embora se apoie em especialistas para mostrar como caminham hoje os estudos bíblicos, o Autor partilha integralmente o que diz Carlos Mesters: “A explicação das coisas difíceis da Bíblia e a investigação científica do seu sentido literal-histórico não constituem o objetivo principal da explicação da Bíblia ao povo, por mais necessarias e indispensaveis que sejam.”
         As questões propostas nestas páginas são tratadas de maneira simples e objetivamente. Vêm divididas assim:
Primeira parte: Perguntas gerais sobre a Bíblia
Segunda parte: Perguntas sobre o Antigo Testamento
Terceira parte: Perguntas sobre o Novo Testamento.
         Ao apresentar esta proposta, o Autor busca estimular a sensibilidade do povo para interpretar a Palavra de Deus à luz da fé, da comunidade e da vida.


         Frei MAURO A. STRABELI é capuchinho. Estudou na Ordem, bacharelou-se em Teologia pela FAI (Assunção-SP); fez Mestrado em Teologia Bíblica na Universidade Gregoriana em Roma e estagiou no Pontifício Instituto Bíblico da mesma cidade. Lecionou Sagrada Escritura na Ordem e desde 1985 leciona na Faculdade João Paulo II  (FAJOPA), na cidade de Marília (SP) e na Escola de Teologia para Leigos, em Piracicaba e Rio Claro (SP).  Publicou vários livros sobre a Sagrada Escritura  editados por Paulus. Exerce o ministério paroquial no interior do Estado de São Paulo.





Essas observações não fazem parte do livro




OBSERVAÇÕES  SOBRE A REVISÃO FEITA NO LIVRO



1.    O livro foi revisto e alguns textos atualizados, especialmente as perguntas: 8 (sobre a criação); 41  (sobre o demônio); 43 (serpente no deserto);  53  (Tu és Pedro); e 57 (demônios nos porcos).
2.    Outros textos sofreram pequenas alterações, como mudanças de palavras ou na redação (pequenos acréscimos redacionais).
3.    Os textos bíblicos usados no livro não são mais da Bíblia: Mensagem de Deus (Loyola), mas são tirados da Bíblia Sagrada. Edição Pastoral.  Paulus.
4.    As perguntas continuam as mesmas;s
5.    Foi feita a revisão literária  dos  textos para adaptá-lo à  nova ortografia
6.    O texto deve passar pela REVISÃO DA EDITORA.

 Autorizo todas as adaptações necessárias para a nova edição.




Frei Mauro Aristides Strabeli - Autor





[1] C. MESTERS, Flor sem defesa (Vozes, 1983) p.15.
[2]  Veja nota ao pé da p. 34
[3]  Veja nota ao pé da p. 34
[4] . Citado no Diccionário Bíblico, F. Spadafora (Barcelona, 1959), verbete: “Gêneros literários”, p. 229.
[5] . Cf. M. ELIADE, La nostalgie des origines (Ed. Gallimard, 1971), p. 161ss; G. de CAMPEAUX, Le monde des symboles (Zodiaque, 1972, pp. 208-272)
[6] . Mitologia é historia fabulosa dos deuses, dos heróis da antiguidade. Vem da palavra mito, que é uma pequena história feita para explicar certas tradições ou crenças populares. A palavra mito, literalmente, quer dizer narração.
[7] . C. MESTERS, Paraíso terrestre: saudade ou esperança? (Vozes, 1971), p. 56-57.
[8] .Cf. C. MESTERS, Paraíso terrestre: saudade ou esperança? , p. 57-61.
[9] .Cf. C. MESTERS, Paraíso terrestre: saudade ou esperança?, p. 67.

[10].  Cf. C. MESTERS, op. cit., p. 97.
[11]. C  fC. MESTERS , op. cit., p.64. Cf.  JUAN ANTONIO ESTRADA, A impossível teodiceia. A crise da fé emDeus e o problema do mal. Paulinas, 2004)

[12] . Cf. C. MESTERS, op. cit. p. 79
[13] . Cf. B. BARTMANN, Teologia Dogmática (Vol. 1) (Paulinas, SP, 1962) p. 421-422.
[14] . Uma sintética exposição sobre o poligenismo pode ser vista no citado livro de C. MESTERS, Paraíso terrestre: saudade ou esperança? p. 103-105.
[15] . cf. Comentário Bíblico “San Jerônimo”, AT, vol. I, p. 79
[16] . Cf. ANET (Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament), p. 42-44.
[17] . Cf. J.L. R. de la PEÑA, Teología de la creación (Sal Térrea, Santander, 1986), p. 33.
[18] O livro do Eclesiástico não tem, quanto ao nome, uma maneira única de ser citado pelas Bíblias em português. A Bíblia de Jerusalém (Paulinas), a Bíblia das Vozes, a Bíblia da Ave Maria e a Bíblia Sagrada, Edição Pastoral (Paulus) - que uso nesse trabalho - usam o nome Eclesiástico.  A Bíblia, Mensagem de Deus (Lyola) usa o nome Sirácides. As Bíblias protestantes não têm esse livro.
[19] O mar morto tem 80 km de comprimento, com 15 km de largura no seu ponto máximo. Sua profundidade máxima é de 450 m. Está a 400 m. abaixo do nível do mar. Sua água é 25% mais salgada que a dos oceanos. Neste mar não há peixeis ou qualquer tipo de planta aquática ou marinha. Ele é formado pelas águas do rio Jordão.  Não há saída pra as suas águas; há porém intensa evaporação.
[20] Cf. L.H. GROLLEMBERG, A nova imagem da Bíblia (Herder, SP, 1970) pp. 63-64.
[21] O nome faraó é egípcio (par’oh ou também per-âa) e significa casa grande, palácio. Não é um nome pessoal, mas um título dos reis do Egito a partir da 18ª dinastia (séc. 16 a.C.)
[22] Cf. J.PLASTARAS, Il Dio Dell´Esodo (Turim, 1977), p. 84-100
[23] Cf. J.PLASTARAS, op. cit. p. 101 – 107; S. BARTINA, em: La Sagrada Escritura AT/I (Madrid, 1967), pp. 385-397.

[24] A tradução etiópica da Bíblia foi feita pelo texto grego no séc. IV. Dessa tradução foram feitas as traduções copta e árabe. É o Mar Vermelho que banha  a costa da Etiópia e grande parte da Eritréia.
[25] A Bíblia hebraica foi traduzida para a língua grega no ano 245 a.C. aproximadamente. Essa tradução é chamada “Tradução Grega”, ou também “Tradução dos 70 sábios” (LXX). Dizia-se  que 72 sábios, 6 de cada uma das doze tribos de Israel, tinham feito este trabalho em Jerusalém. Essa informação, , porém,  não é histórica, mas folclore religioso. – Delta designa aqui a foz do Rio Nilo, que é formada por vários canais e pequenas ilhas; tem a foz do Nilo a forma da letra D grega, por isso é chamada Delta.
25ª. Cf. J.J. MCKENZIE, Dicionário Bíblico, Paulus, São Paulo, 1984, Verbete “Água”, p. 19.
[26] Talvez possa ser entendida como simbólica a expressão usada em Ex 14, 21: “um forte vento do oriente soprando a noite toda” secou as águas. Vento e sopro são traduzidos em hebraico pela palabra Ruah. Ruah significa também “espírito”, “hálito” de Deus, vida. Pela fé na Palavra de Deus, o povo conseguiu passar com segurança no meio de tantos perigos e conseguiu viver. Deus “secou” os perigos e o povo pôde caminhar tranquilamente e salvar-se.
[27] Diccionario de la Bíblia, verbete: “Decálogo”, col. 446.
[28] Cf. Bíblia, Mensagem de Deus  (Loyola, 1983): comentário a Ex 20, 1-21.
[29] Veja a pergunta n° 44.
[30] Cf. Diccionário de la Bíblia (Herder, Barcelona, 1963), verbete “Domingo”, col. 497.
[31] Cf. Enciclopedia della Biblia (Turim, LDC, 1969), vol.3, col. 1394 – 1395.
[32] A. Van den BORN, em Dicionario Enciclopédico da Bíblia (Vozes, Petrópolis, 1971), verbete “Raab”, col. 1267.
[33] J.L. RUIZ de la PEŇA, Teología de la creación, p. 24.
[34] C. MESTERS, Deus, onde estás?, p. 40-41.
[35] M. NOTH, Storia d´Israele (Paidéia, Bréscia, 1975), p. 215.
[36] F. BUCK, em La Sagrada Escritura, BAC, AT/II (Madrid, 1967), p. 317.
[37] Cf. F.-ELMAR WILMS, I miracoli nell´Antico Testamento (EDB, 1985), p. 279-283.
[38] Cf. F.-ELMAR WILMS, op. cit., p. 287.
[39] C. MESTERS, Deus, onde estás? p. 49-55.
[40] C. MESTERS, Deus, onde estás? p. 58.
[41] A.BONORA. Il contestatore di Dio (Marietti, Turim, 1978), p.53.
[42] C. MESTERS, Deus, onde estás? p. 105.
[43] I. STORNIOLO-E. M. BALANCIN, Conheça a Bíblia (Ed. Paulinas, São Paulo, 1986), p. 89-90.
[44] O.G. QUEVEDO. As forças físicas da mente (Loyola, São Paulo, !978) vol. I, p. 47.
[45] Para maior conhecimento deste tema cf. O. QUEVEDO, op. cit, p. 21-60 e 221 293.
[46] A. Van den BORN, op. cit., verbetes “demônio”, col. 365-366 e “satan”, col. 1396.
[47] Uma curiosa tradição hebraica diz que Satanás acusa o homem todos os dias perante Deus, exceto um: o dia nacional da grande Penitência ou o Grande Perdão (Yom Kippur). De fato, se forem somados como números as letras hebraicas que formam a palavra ha-satan (o acusador) a soma obtida é 364! (cf. A. PRONZATO, Un cristiano comincia a leggere il vangelo di Marco ( Torino, 1979), p.57, nota 3).
[48] Cf. J. MACKENZIE, op. cit., verbete “demônio”, p. 227.
[49] Id., verbete “satanás”, p. 853.
[50] cf. J. MACKENZIE, op. cit., p. 227.
[51] Ib., p. 47. 
[52] J.A.RUIZ DE COPEGUIAs figuras bíblicas do diabo e dos demônios em face da cultura moderna”, em Perspectiva Teológica, ano XXIXX, setembro/dezembro 1997, p. 337.
[53] J.A.RUIZ. DE GOPEGUI, op,cit, p. 337
[54] (cf. J.A.RUIZ DE GOPEGUI, op. cit.337-340 passim).
[55] Cf. G. AUZOU, Dalla servitù al servizio: il libro dell´Esodo, p. 189-190.
[56] Cf. G. AUZOU, op. cit., p. 196-197.
[57] Cf. G. AUZOU, op. cit., p. 116-117.

[58] A. Van den BORN, op. cit., verbete “Travessia do deserto”, col. 374.

[59] Karma é palavra que vem do sânscrito, língua literária e sagrada dos antigos hindus, e significa ação, sorte. A lei do Karma é princípio de causa e efeito: se há doença, há mal por detrás; se há alegria, há bem. Para o homem ser feliz é preciso purificar-se de todos os males, purificar seu Karma, seu destino.
[60] Cf. “Pergunte e Responderemos”, 526 (1981), p. 170.
[61] Cf. A.A. SCHOEKEL; J. L.SICRE DIAZ, Profetas I (Edições Paulinas, São Paulo, 1989.)
[62] Cf. La Sagrada Escritura, BAC, AT III, p. 553.
[63] cf. L. BOFF, A ressurreição de Cristo. A nossa ressurreição na morte. (Vozes, Petrópolis, 1974), p. 85.
[64] Bíblia, Mensagem de Deus (Loyoa), comentário a Mt 1, 25.
[65] Cf. J.L. MACKENZIE, op. cit., verbete: “Irmãos do Senhor”, p. 448.
[66] Na catacumba de Priscila em Roma há uma significativa e bela pintura em afresco representando a Virgem Maria, o Menino e o “profeta” Balaão. É uma pintura alusiva a essa passagem bíblica. É a mais antiga referência da devoção da Igreja a Nossa Senhora.
[67] O fogo tem grande significado nas religiões. Na Bíblia ele é sinal das teofanias, principalmente no AT. No Novo Testamento é também sinal do julgamento de Deus (Mt 3, 10; Lc 3,9.17 etc.). Na expressão de João Batista o fogo é símbolo da purificação que o batismo de Jesus fará no interior do homem.
[68] Sinóticos são os três primeiros evangelistas: Mateus, Marcos e Lucas. São chamados sinóticos porque os seus relatos coincidem muito. Há muita semelhança entre eles. A palavra sinótico vem de sinopse que significa, em grego, olhar em conjunto, olhar junto. De fato, se colocarmos as narrações dos três evangelistas sinóticos uma ao lado da outra, elas poderão ser comparadas e olhadas em conjunto. São muito semelhantes entre si.
[69] Cf. G. SCHIWY, Introduzione al Nuovo Testamento. Matteo-Marco. (Assis, 1971), p. 80-83.
[70] Cf. G. SCHIWY, op. cit., p.84; C. BOMBO, “As tentações de Jesus nos Sinóticos”, em Revista de Cultura Bíblica (1972), pp. 83-102; I. STORNIOLO, As tentações de Jesus (Ed. Paulinas, São Paulo, 1988).
[71] Cf. Nuovissima Versione della Bibblia, NT, Matteo, p. 99.
[72] Cf. J.L. MACKENZIE, op. cit., verbete “Milagre”, p. 611.
[73] Cf. V. De LEEUW, L´uomo moderno di fronte alla Bibbia (Paoline, Roma, 1981) p. 88-90.
[74] J. PIKASA, A teologia de Mateus (Ed. Paulinas, São Paulo 1984) p. 60.
[75] Cf. B.RIGAUX, L´historicité de Jesus devant l´exégèse recente, em RB 65 (1958) p. 485.
[76] História das formas (Formgeschichte) é o nome de um método de interpretação dos evangelhos sinóticos. Esse método, padrão da exegese atual, foi estruturado e proposto por Dibélius e Bultmann, dois biblistas protestantes alemães. A finalidade desse método é tentar mostrar que o conteúdo dos evangelhos atuais procede de certas formas tradicionais; ou seja, há toda uma história literária e inúmeros gêneros literários e tradições  por detrás dos evangelhos.
[77] Cf. F. MUSSNER, I miracoli di Gesù (Brescia, 1969).
[78] Cf. Elenchus Bibliographicus Biblicus 65 (1984), p. 257-269.
[79] Sobre esse tema cf. L. BOFF, Eclesiogênese (Vozes, 1977), p. 56-64; Igreja, carisma e poder. (Vozes, 1981); Dizionario dei Concetti biblici del Nuovo Testamento, verbete: “Roccia”, p. 1600-1602; G. SCHIWY, op. cit., p.200-202; Nuovissima Versione della Bibblia, NT I, I Quatro Vangeli, pp. 190-191; Comentário Bíblico “San Jerônimo”, III, vol I, p. 238.
[80] G.SCHIWY, op. cit.; p.200.
[81] O. CULLMANN, Il Primato di Pietro (Il Mulino, Bologna, 1965).
[82] Cf. Dizionario del Concetti biblici del NT, pp. 1601-1602.
[83] Cf. L. BOFF, Eclesiogênese, p. 61.
[84] L. BOFF, Eclesiogênese, p. 61.
[85] cf. Comentário Bíblico “San Jerônimo” III, vol I, p. 241.
[86] Discurso escatológico quer dizer: discurso que trata do fim do mundo e da humanidade; ou também das últimas coisas que vão acontecer. Em grego escatologia quer dizer: tratado sobre as últimas coisas.
[87] cf. The Anchor Bible-Mathew (N.York, 1971). Comentário a 24, 1-2.
[88] Nuovissima Versione della Bibblia, NT, I, p. 320.
[89] Comentário Bíblico “San Jeronimo”, III, NT I; p. 271-272.
[90] Nuovissima Versione della Bibblia, NT, I, p. 391.
[91] Comentário Bíblico “San Jerônimo”, III, NT I; p. 87.
[92] Citado em Comentário Bíblico “San Jerônimo”, III, NT I; p. 87
[93] Midraxe, como se disse, é a explicação livre de um texto bíblico; é feito com muitas alegorias e fantasias. Era um método bíblico muito comum dos rabinos.
[94] Comentário Bíblico “San Jerônimo”, III, NT I; p. 88.

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