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sábado, 31 de março de 2012

TEXTOS FREI MAURO STRABELI (MARÇO 2012): "BÍBLIA perguntas que o povo faz Nova edição, revista e atualizada " - PERGUNTAS E RESPOSTAS DE Nº 27 a 41:


         Era um alimento que os hebreus recolhiam a cada dia, durante a peregrinação pelo deserto. Segundo a Bíblia (Ex 16), de maneira prodigiosa, Deus concedia esse alimento ao seu povo. Parecia um milagre diário.
         Todavia não se pode dizer que Deus fazia milagres dessa maneira como vem escrito. Hoje, especialistas na exegese bíblica dão explicações do fato sem, porém, negar um aspecto sobrenatural no fenômeno.
         Segundo a Bíblia, o maná, embora chamado “pão do céu” (Jo 6,58), era uma espécie de semente branca com gosto de bolo de mel (Ex 16,31) e não como o pão que conhecemos. Aparecia de manhã quando o orvalho evaporava; era semelhante a grãozinhos de geada, diz o livro do Êxodo (Ex 16,14). Os hebreus ao verem tal fenômeno perguntaram: “O que é isso?” (Em hebraico se diz: “man-hu”;  daqui vem a palavra maná em português).
         O maná não é novidade no deserto; é um fenômeno natural  tipico do deserto: uma variedade de tamareira segrega à noite um liquido transparente que depois endurece, parecendo uma semente, um grão. Ainda hoje  os beduínos  recolhem e comem esses grãos. Esses grãozinhos  podem ser moídos e cozidos e com a massa se faz uma espécie de bolo doce.          Esse foi um dos alimentos do povo peregrino e não o único alimento.
          Não se pode dizer que Deus concedia o maná miraculosamente. Pode-se admitir que devido a uma produção maior de maná do que a costumeira, a natural, Moisés foi levado a interpretar o fato como miraculoso e como resposta de Deus aos pedidos e às reclamações do povo (Ex 16,3-4). Realmente, a quantidade de maná deveria ser muito grande para servir todo o povo, o que extrapolava a “produção” costumeira. Talvez nessa produção extraordinária e por tempo maior pode-se ver uma ação miraculosa de Deus, ou o aspecto sobrenatural do fenômeno.  Como também podemos entender que o texto está  acentuando quanto foi difícl sustentar todo o povo na caminhada. O milagre era conseguir comida.


         O porco é animal conhecido em todo o mundo e sua carne é usada também em todo o mundo como alimento. Poucos países impedem o consumo de carne de porco.
         A Bíblia proibia aos judeus comerem a carne de porco por razões sanitárias. Ainda hoje, na maioria dos países, as leis sanitárias referentes à criação de porcos, ao abate desses animais, à distribuição, conservação e consumo de sua carne, são bastante rigorosas.
         A carne de porco pode transmitir graves e incuráveis doenças, como, por exemplo, a cisticercose, que é infestação de tênias ou solitárias que podem atingir também o cérebro. Daí a proibição pela Bíblia de seu consumo.
         Para fundamentar a proibição de comer carne de porco, a Bíblia coloca esse aninal no número dos animais considerados impuros, isto é, animais cuja carne não pode ser usada na alimentação (Lv 11,7-8). As prescrições alimentares estão no livro do Levítico e são muitas; entre elas, está a de não comer carne de porco (Lv 7; 11; 17; 22 etc.).
         A Bíblia proíbe, pois, o uso da carne de porco por razões puramente sanitárias, num tempo em que as condições de saneamento e de higiene eram precárias. 
         Jesus não dá valor religioso aleis alimentáres e diz que prescrições alimentares, costumes tradicionais, são coisas irrelevantes. E condena os fariseus que se obrigam a tais observâncias e querem obrigar também o povo a seguir tais leis (Mt 15,2.10-20; Mc 7,1-23; Mt 23,25 etc.). Nenhum alimento é puro ou impuro para Jesus. São indiferentes. Segundo Jesus, pode- se comer tudo aquilo que se quiser: “Não é o que entra na boca que torna o homem impuro; mas o que sai da boca, isso torna o homem impuro (Mt 15,11).
         Numa comunidade, porém, onde houvesse irmãos, ainda imaturos na fé, que se escandalizassem com o fato de alguém comer ou beber isso ou aquilo, é dever dos irmãos mais instruídos e maduros, respeitá-los e instruí-los. E até deixar de comer ou beber determinada coisa que pudesse escandalizá-los. Essa é atitude de adultos na fé, muito fraterna e muito recomendada por São Paulo nas suas cartas:
         “Acolham o fraco na fé, sem lhe criticar os escrúpulos. Um acredita que pode comer de tudo; outro, sendo fraco, só come legumes. Quem come de tudo não despreze quem não come. E quem não come, não julgue aquele que come, porque Deus o acolhe assim mesmo.” (Rm 14,1-3).
         Ainda a mesma carta:
         “Sei e estou convencido no Senhor Jesus: nada é impuro por si mesmo. Mas, se alguém acha que alguma coisa é impura, essa coisa se torna impura para ele. Se, por questão de alimento, você deixa seu irmão triste, você não está agindo com amor. Portanto, o alimento que você come não seja causa de perdição para aquele por quem Cristo morreu. Não dêem motivo para outros falarem mal daquilo que é bom para vocês. O Reino de Deus não é questão de comida ou bebida; é justiça, paz e alegria no Espírito Santo. Quem serve a Cristo nessas coisas, agrada a Deus e é estimado pelos homens. Portanto, busquemos sempre as coisas que trazem paz e a edificação mútua. Não destrua a obra de Deus por questão de comida! Todas as coisas são puras. Mas é mau para o homemcomer provocando escândalos. É melhor não comer carne, nem beber vinho ou qualquer outra coisa quando isso é ocasião de tropeço, escândalo e queda para o irmão. Guarde para você, diante de Deus, a convicção que você tem. Feliz aquele que não condena a  si mesmo na decisão que toma.” (Rm 14,14-22).
         E na primeira carta aos Coríntios S. Paulo aconselha:
“Cuidem, porém, que a liberdade de vocês não se torne ocasião de queda para os fracos [...] Ora, se um alimento for motivo de queda para meu irmão, para sempre eu deixarei de comer carne, a fim de não causar a queda do meu irmão.(lCor 8,9.13).

        
         Na Bíblia existem três proibições acerca do sangue: é proibido comer o sangue ou a carne com sangue; é proibido derramar o sangue de outra pessoa e é proibido oferecer o sangue em sacrifício a outros deuses (Gn 9,46; Dt 12,16.23-27; 19,10-13; 21,9; Lv 17,10-14).
         Todo aquele que violasse uma dessas proibições, estaria fazendo o mal diante de Deus, e se comesse o sangue ou a carne com sangue deveria ser morto (Lv 17,14).
         Essa legislação dura faz parte das chamadas “prescrições alimentares” do Levítico e do Deuteronômio. E tem ela fundo teológico, segundo a concepção veterotestamentária judaica.
         Para os antigos israelitas o sangue era considerado a alma da pessoa. Isso pode ser visto em muitos textos bíblicos como estes, por exemplo:
        
“Mas não comam carne com o sangue que é a vida dela”(Gn 9,4). “Porém, de nenhum modo comam o sangue, pois o sangue é a vida. Portanto não coma a vida com a carne” (Dt 12,23).

         Tirar o sangue de uma pessoa era, para os antigos, tirar-lhe a vida! E a expressão “tirar o sangue” passou a ter na Bíblia o sentido de matar, assassinar. A vida é dom de Deus e só a ele pertence. Por isso, comer o sangue ou derramar o sangue de alguém representava violação do direito divino; e do mesmo modo, oferecer o sangue em sacrificio para os deuses, significava usurpação do direito divino. Deus é o Senhor da vida. Só a ele pertence a vida, e não aos ídolos.
         Todos esses elementos culturais, bem como os da concepção teológica dos antigos hebreus a respeito da vida e do sangue, constituem o pano de fundo das proibições da Bíblia a respeito do uso do sangue. Eles devem ser levados em conta quando se quiser interpretar tais textos. Sem isso, os textos estariam deslocados de seu contexto cultural e teológico e a interpretação feita não seria correta, mas fundamentalista, literal, inexata.
         Aliás, nós também ainda hoje temos a respeito do sangue essa mesma concepção antiga e popular. Dizemos que o sangue é vida, que é ele que mantém a pessoa viva. E sabemos, pela experiência, que tirando todo o sangue de uma pessoa, ela morre.
         Todavia sabemos também que o sangue não é a pessoa, mas é da pessoa. Quando alguém morre, seu sangue desaparece, mas o seu “eu”, a sua pessoa, permanece. Isso o sabemos pela experiência e pela fé.
         A Bíblia não fala em nenhum lugar sobre a “transfusão de sangue” e nem poderia falar, pois esse recurso científico não existia nos tempos antigos. Portanto, partindo disso podemos dizer que a Bíblia nunca proibiu e nem proíbe a transfusão de sangue. A suposta proibição a que se referem as “testemunhas de Jeová” é conclusão que o contexto bíblico não autoriza fazer.
         A transfusão de sangue, longe de ser “assassínio” do doador é, pelo contrário, gesto humanitário, de grande caridade cristã, e digno de todo louvor. E nenhuma transfusão mata ninguém! A quantidade de sangue tirada do doador é logo a seguir reposta pelo organismo, mantendo assim o equilíbrio natural. A doação de sangue, como também a doação de órgãos para transplantes, são atos de grande solidariedade humana e de extrema caridade cristã. São eticamente corretos.
         Concluindo, lembramos que Jesus deu novo enfoque às leis do Antigo Testamento. Elas foram abolidas ou completadas pelo “Novo” que é o próprio Jesus (Mt 5,17-48; 15,10-20). Ele mesmo, o Senhor Jesus, não só deu o seu sangue para a redenção, mas deu-se inteiramente por nós, deu-nos a própria vida.


         As guerras estão presentes em grande parte da história do povo hebreu no Antigo Testamento. Lendo as descrições da Bíblia sobre as guerras que o povo de Deus fez, duvidar-se-ia até que ela é “Palavra de Deus”! Nas guerras relatadas pela Bíblia não há sentimentos de compaixão e de perdão para com os vencidos, mas sentimentos de vingança, há massacre total, desumanidade, ódio contra os inimigos e até a sádica alegria dos vencedores pelos sofrimentos e destruição do povo vencido!
         No livro dos Números, por ex.,  está a descrição de uma guerra desse tipo, onde o próprio Moisés fica furioso e manda matar crianças e  mulheres que tinham sido poupadas na primeira matança (Nm 31,13-18). E isso, sem dó nem piedade!
         Igualmente se pode ler no livro de Josué (Js 8) fato idêntico, quando  foi tomada a cidade de Hai. Ainda há narração semelhante no livro de Samuel (1 Sm 15,1-9) onde o próprio Deus diz: “Não tenhas piedade (= do povo amalecita): mate homens e mulheres, crianças e recém-nascidos, bois e ovelhas, camelos e jumento” (1Sm 15,3). E há muitas outras passagens bíblicas sobre as guerras do povo de Deus, feitas com atrocidades e em nome de Deus!
         Como se pode entender ou explicar isso?
         Para nossa sensibilidade e para nossa cultura, esses episódios são por demais chocantes, realmente. Apesar de termos guerras ainda hoje, nas quais se cometem as mesmas ou piores atrocidades. Mas por que a Bíblia relata tais episódios insistindo que é o próprio Deus quem ordena tais massacres em massa, até de inocentes?
         Podemos responder dizendo com segurança que não foi Deus quem quis ou quem ordenou tais atrocidades. Nos tempos que precederam a monarquia em Israel, o povo hebreu convivia, num ambiente cultural e religioso, com dezenas de povos pagãos e bárbaros até. A guerra para tais povos significava lutar não só pela conquista de maior espaço geográfico, mas também pela preservação da própria nação e sobrevivência. Doutra parte, todos os povos antigos tinham sua divindade. E era um dado cultural e religioso, naqueles tempos, que quem dirigia a guerra de uma nação contra a outra era a própria divindade, o próprio deus nacional. Vencer uma guerra era sinal de maior poder do deus empenhado. A guerra, então, era chamada “santa”, ou seja, feita em nome do próprio deus e com o próprio deus. Um povo que fosse ofendido, considerava ofendido o próprio deus nacional; e deveria vingar-se e vingar o próprio deus. Essas guerras “santas” eram chamadas jihad (= guerra santa), como ainda hoje as chamam os povos árabes. O deus nacional era imposto aos vencidos, pelas armas.
         O povo bíblico está nesse contexto. Com a diferença que o povo hebreu não guerreava para impor a sua religião (o javismo), que era uma religião própria, específica dele; mas guerreava em nome de Deus para vingar-se, para conquistar mais terras, mais espaço. Os chefes julgavam que Deus estava ao lado deles e que a vitória deles e do povo seria a vitória de Javé, seu Deus. Era o povo de Deus que lutava (Jz 5,13; lSm 17,26). O povo inimigo era considerado povo infiel, cheio de maldades e perversidades; devia ser derrotado e dizimado (Dt 9,4- 5; 20,15-18). A isso tudo juntava-se também a idéia que vigorava em todo o Antigo Oriente
de que pela vitória, o Deus de Israel se manifestava poderoso e superior a todos os deuses inimigos. Valia a pena lutar pela nação, em nome de Deus, e arrasar os inimigos!
         Por causa desse enfoque religioso, os despojos arrancados aos inimigos nas guerras eram destinados ao anátema (em hebraico:
herem), isto é, à destruição. Tirava-se, porém, dos despojos a parte melhor, que se ofertava a Deus e ao Templo. Tudo o mais era, de fato, destruído, eliminado, inclusive as pessoas que não serviam para o trabalho forçado (velhos, doentes, mulheres casadas, crianças...) Por isso a Bíblia relata tais massacres. Não era Deus quem os ordenava ou os desejasse; eram, sim, frutos não só de tempo e de costumes bárbaros, primitivos, mas também frutos de enfoque religioso, teológico, distorcido.
         Nessa ótica devemos ler tais relatos bíblicos - realmente cruéis -  mas não esquecer que as narrações são mais exagero épico do que realidade histórica.
         Notemos que essas atrocidades aconteceram especificamente nos primeiros tempos da história do povo hebreu. Já pelo início da monarquia a guerra perdeu esse caráter “sacro” e passou a ser guerra civil mesmo, incluindo-se nas fileiras dos exércitos de Israel guerreiros pagãos e mercenários. São guerras políticas, embora o profeta Isaías tenha até tentado revalorizar o antigo caráter sacro das guerras (Is 7,4-9).[1]

         31. É verdade que entre os antepassados de Jesus há uma mulher prostituta?   
         Os evangelhos trazem duas listas de gerações sobre Jesus, chamadas genealogias: uma de Mateus (1,2-17)  e outra de Lucas (3,23-38). A lista de Mateus  começa com  Abraão e vai, em linha descendente,  até José “o esposo de Maria, da qual nasceu Jesus, que é chamado o Messias” (1,16);  a lista de Lucas começa com Jesus e vai, em linha ascendente, até Adão, até Deus. Elas coincidem somente no período que vai de Abraão até Davi. Elas são artificiais, não são absolutamente históricas. Elas têm uma finalidade: a de afirmar  que Abraão está inserido na história de Israel, e na descendência de Davi (“A promessa foi feita a Abraão e ao seu descendente, isto é, a Cristo, como diz Paulo em Gálatas 3,16).
Na artificial genealogia de Mateus é que entra a prostituta Raab, como uma das “avós”  de Jesus. (Mt 1,5).
         A história desta mulher está dentro do gênero épico, guerreiro,  e é muito bela. Pode ser lida no livro de Josué (Js 2; 6,15-25). Ela fôra certamente obrigada à prostituição e no contato com os espiões hebreus deu-lhes hospedagem e os defendeu da perseguição do rei de Jericó. Quando Jericó ia ser destruída pelos hebreus, eles salvaram Raab, sua família e seus bens. Ela  abraçou a fé judaica e se agregou ao povo de Deus. Converteu-se ao monoteísmo judaico e aderiu de tal modo ao Deus de Israel que, embora estrangeira, passou a ser símbolo da fé judaica. O Novo Testamento a apresenta assim também (Hb 11,31; Tg 2,25).
         Essa mulher, segundo Mateus, casou-se com Salmon que é um dos antepassados de Jesus. Raab foi mãe de Booz, marido de Rute (Rt 4,13) e bisavô do rei Davi (Mt 1,5). Jesus é da descendência de Davi e, portanto, é também da descendência de Raab, a prostituta convertida.
         Raab era de Jericó, a mesma cidade onde Jesus, mais tarde, vai encontrar, perdoar e conviver com outro grande pecador: Zaqueu, a quem ele chama de “filho de Abraão” (Lc 19,9). Jesus dirá ainda que os pecadores e convertidos são melhores do que muitas pessoas que se consideram santas, e que eles precederão muita gente “boa e santa” na entrada para os céus (Mt 21,31).
         Longe de ser motivo de escândalo, é sumamente edificante saber que Jesus tem na sua própria ascendência uma pecadora convertida, cheia de fé e de amor. Raab é figura típica do que Jesus ensinará mais tarde sobre a misericórdia, o perdão, a salvação.  Além de Raab, Mateus coloca ainda na genealogia de Jesus  quatro outras mulheres, três das quais, provavelmente  não-israelitas, consideradas adúlteras: Tamar, Rute e Betsabéia, que fazem pano de fundo para o aparecimento de uma israelita, a virgem Maria,  mãe  de  Jesus, o Filho de Deus.
         Muitos exegetas hoje em dia negam que a Raab citada por Mateus seja a prostituta que aparece no livro de Josué (Js 2). Dizem que entre  o relato do livro de Josué e Salmon há várias gerações e que, portanto, Raab, a prostituta, já teria morrido há tempo.  Não seria ela a mulher de Salmon. Apresentam como um argumento  o nome grego com que Mateus  designa a prostituta: ele a chama de Rakab e não Raab. Não deve ser, então, a mesma pessoa, dizem.
         Para os santos Padres -  pais da fé no início da Igreja - e para boa parte dos exegetas, Raab é realmente antepassada de Jesus. Para outros exegetas, contemporâneos, a inclusão de seu nome na genealogia de Jesus é artificial e simbólica. Está dentro dos quadros simbólicos das genealogias em Mateus.[2]
         Nos textos do Novo Testamento que citam seu nome, ela é lembrada e apontada tão somente como protótipo da verdadeira fé.

         A riqueza não tem valor nenhum perante Deus. Somente perante os homens. Essa concepção vale também para o Antigo Testamento.
         A riqueza, para o AT, é um bem relativo. Todavia, no correr dos tempos, riqueza e poder começaram a ser bens cobiçados. Para justificar as grandes riquezas aparece no AT a ideia de que os bens, o poder, a riqueza são sinais das «bênçãos” de Deus,  pois ele as concede somente às pessoas que são santas, justas.  A pobreza e a doença, de outro lado,  são maldições de Deus, pois  se as pessoas são pobres, miseráveis, doentes,  é porque são  pecadoras. Deus não concede riquezas a pecadores!  Ligava-se a riqueza à religiosidade pessoal (Gn 13,2; 24,35; Dt 6,10-12; 28,1-14 etc.). Essa ideia, também chamada de “teologia da prosperidade” (muito atual em certas igrejas neo-pentecostais)  levava o homem a procurar a riqueza para demonstrar que era abençoado por Deus!  O que  não era verdade, pois esse modo  de pensar era uma  infame justificativa para legitimar a riqueza injusta, a avareza, a ganância, o roubo,  a discriminação dos pobres. O AT mostra que há valores maiores do que a riqueza (Pr 3,13-16; 8,17-18; 10,22; 11,16 etc).
         Se no AT há a concepção de que Deus abençoa os ricos, essa concepção foi criada pela cultura e pelos costumes daquele tempo; não espelha a verdade teológica. Deus não faz, de fato, distinção de pessoas. Ademais, as riquezas não valem nada perante Deus; não são critério de justiça perante ele.
         O próprio AT lembra que as riquezas são até perigo para o homem (Pr 11,28; 18,11; Eclo 5,8). O  rico pode perdê-las, e as perde mesmo, com a morte (Pr 11,4; 19,1; 23,4-5 etc).
         O problema da riqueza é discutido pela literatura sapiencial (são os   escritos feitos pela sabedoria popular, pelo povão).  Eles mostram que, se de um lado a riqueza traz certos benefícios (amigos, honra, segurança, poder, prazeres, vida mansa), doutro lado traz com certeza temores e aborrecimentos (a insatisfação crescente, a preocupação, o medo de perder o que se tem, o orgulho, a avareza, o pecado). Compare, por exemplo, esses grupos de textos: Pr 14,20; 19,4; 22,7 e Eclo 10,30 com Pr 15, 16;  18, 11; 22 1-7 e Eclo 11, 18-19; 11, 23.
          As equações: vida virtuosa = riqueza, vida pecadora = pobreza, não são bíblicas. A Bíblia insiste, mesmo no AT, sobre a justiça equitativa, fala do equilíbrio de valores, pois a riqueza não é valor em si (Jó 20). Mesmo no AT outros valores são mais procurados e mais estimados do que as riquezas, como, por exemplo, a piedade e o temor de Deus (Sl 34,10-11; 37,16; Pr 11,28; 13,7; 15,16 etc.). E contrariamente ao que se diz, o AT chegou até a afirmar que o pobre é virtuoso e piedoso e o rico é geralmente descrente e pecador  com suas riquezas (Eclo 13,23-24;14,3; Sb 7,7-10; Sl 86,1-2). Toma corpo no AT a doutrina dos “pobres de Javé” de que tanto fala a Bíblia. Eles são os queridos de Deus porque são desapegados, limpos de coração, fieis a Deus (Sl 74,19; 149,4; Is 61,1).
         Biblicamente falando, Deus abençoa e está com os pobres e humildes e não com os ricos orgulhosos.
         Então, Deus abençoa os ricos hoje?
         Não podemos dizer que a riqueza seja pecado ou um  mal em si. Os meios pelos quais a riqueza foi adquirida e o uso dos bens é que são os critérios de avaliação moral das riquezas e do rico. Isso pode ser visto no NT. Jesus falou muito sobre a riqueza (Mc 10,17-31; 12,1-17; Lc 18,24-30; Mt 19,23-26 etc.). Ele não condena a riqueza em si, mas o mau uso dos bens e alerta para os perigos da riqueza: ela pode impedir a entrada no Reino do Céu (Mt 19,24); tomada como bem em si, ela é atentado contra a soberania de Deus sobre os bens do mundo, pois tudo é dele.
         A riqueza, tomada como valor, impede que a Palavra de Deus penetre na vida do homem; ela é então a causa da exclusão do homem do Reino. Em poucas palavras Jesus expõe o julgamento de Deus sobre a riqueza e a pobreza: os ricos, os saciados, os que riem à toa (por causa de sua segurança e poder), esses serão excluídos do Reino (Lc 6,24-25); os pobres, os famintos, os que choram, esses entrarão no Reino (Lc 6,20-2 1; Mt 5,3-6).
         Se  considerarmos hoje como abençoados por Deus os ricos injustos, isto é, aqueles que se enriqueceram ou enriquecem cada vez mais, às custas dos pequenos, dos pobres, dos oprimidos, estaremos cometendo grande equívoco. Se assim eles se enriqueceram ou enriquecem é porque são ladrões, injustos. E Deus rejeita tanto o roubo, a injustiça como os ladrões e os impostores. Deus não os abençoou no passado  e  nem os  abençoa hoje, nem no Antigo e nem no Novo Testamento. Pelo contrário, Deus censura, ameaça e condenará tais ricos se eles não se converterem para o amor a Deus  e aos irmãos, pondo seus bens a serviço do próximo (Lc 19,1-10).


        
O livro dos Juízes conta no capítulo 11 a história desse guerreiro, chamado Jefté. É história dura, cruel, estranha, desumana! Antes de se discutir a respeito da promessa que ele fez a Deus e que cumpriu, deve-se analisar a vida pregressa desse homem.
         Jefté era filho de prostituta, foi expulso de casa, juntou-se a marginais e partiu para o crime (Jz 11,1-3). O crime e a vida dura fizeram dele guerreiro valente, destemido. Por isso, diz a Bíblia, quando os amonitas, povo vizinho, declararam guerra a Israel, os chefes dos israelitas pediram ajuda a Jefté e ao seu bando. Eles se prontificaram a lutar por Israel. Mas Jefté exigiu o comando das tropas de Israel, uma vez que fora expulso do meio do povo de Israel, o mesmo que agora lhe vinha pedir ajuda!
         A Bíblia diz que “veio então o espírito de Javé sobre Jefté...” (Jz 11,29). A vinda do Espírito de Deus sobre uma pessoa não significa, na Bíblia, reconhecimento da santidade daquela pessoa, ou aprovação de seu modo de vida, mas simplesmente significa que aquela pessoa foi investida e preparada para uma tarefa determinada e especial. No caso de Jefté, significa que a comunidade toda reconheceu que pelo consenso geral Deus também estava aprovando que Jefté fosse o líder do povo na condução daquela guerra. Esse tipo de consenso geral, de concordância de todo o povo é de fato chamado na Bíblia de “vinda do Espírito de Javé”. Há muitos casos semelhantes na Bíblia; a comunidade concorda e a pessoa escolhida assume com vigor a tarefa pedida e nela se empenha decididamente. A própria pessoa libera todas as suas forças psicossomáticas, todas as suas potencialidades e as põe a serviço da causa comum. São casos famosos os de Sansão, Gedeão, Saul, Moisés, Josué (cf. Jz 3,10; 6,34; 11,29; 13,25; 1Sm 11,6-10; Nm 11,17.25; 27,18). A tomada de consciência da pessoa para essa missão especial é o núcleo da expressão “vinda do Espírito de Javé”. (A respeito dos profetas há outros elementos que devem ser analisados quando se fala em “Espírito de Javé”).
         No nosso caso significa, então, concretamente, a tomada de consciência, por Jefté, dessa tarefa que a comunidade lhe confiava e que também Javé (Deus) lhe confiava. (Segundo o conceito de “guerra santa” o povo de Deus combate em nome e a mandado do próprio Deus).
         Pouco antes da batalha, Jefté fez a citada promessa, que foi, sem dúvida, imprudente e ilícita. Ele prometeu a Deus que, se vencesse aquela guerra que aceitara dirigir e na qual jogara todo o seu prestígio de guerreiro, ele ofereceria, imolando em sacrifício a Deus, a primeira pessoa que lhe viesse ao encontro depois da batalha (Jz 11,30-31). Essa promessa é muito estranha e insensata, sem dúvida. E diz o texto bíblico que a primeira pessoa que foi ao encontro dele quando voltava da guerra, foi a sua filha única. Depois de algum tempo, ele a imolou em sacrifício a Deus (Jz 11,34-39).
         Aos nossos olhos, hoje, essa promessa de Jefté é cruel e inválida. Uma promessa deve envolver a pessoa que a faz, os seus bens, e nunca outras pessoa ou os bens alheios. Mas naqueles tempos (como ainda hoje também o fazem muitas pessoas) não se pensava assim.
         Pelo texto bíblico, o que Jefté fez é histórico, aconteceu. Assim dizem, por exemplo, Flávio Josefo, historiador judeu (Antiguidades Judaicas 5,7.10), os santos Padres (como santo Agostinho, santo Ambrósio, são João Crisóstomo, Orígenes) e alguns exegetas modernos.
         Outros historiadores e exegetas têm outro ponto de vista: são de opinião que o episódio narra uma consagração que Jefté fez da própria filha a Deus. Consagrava-lhe sua virgindade e sua vida. O fundamento de tal opinião é que os sacrifícios humanos eram proibidos entre o povo de Deus (Dt 12,29-3 1), embora tenham acontecido episodicamente (2Rs 16,3; 21,6); ainda: segundo o costume hebraico os sacrifícios eram oferecidos antes das batalhas e não depois (por exemplo, lSm 13,7-12).
         De acordo com a nossa sensibilidade humana e cristã o sacrifício da filha de Jefté nos causa horror e repúdio; somos inclinados a não aceitar a historicidade do fato. Mas devemos lembrar que conforme os costumes daqueles tempos era possível, e era até comum entre os povos bárbaros, oferecerem-se sacrifícios humanos às divindades. Não podemos esquecer que Jefté era marginal; homem duro, marcado pela insensibilidade e capaz de tudo!
         Concluindo: dentro do contexto cultural e religioso do Antigo Testamento e do Antigo Oriente esse fato pode até ter acontecido. Não pode, porém, ser provado historicamente, afora a narração bíblica. Hoje em dia, muitos estudiosos duvidam da historicidade desse fato, e afirmam que o autor desse texto está dando um “motivo histórico” por que ´´e que havia em Israel o costume de as moças se reunirem para determinada celebração religiosa feminina. O motivo histórico, para o autor, seria a memória da jovem filha de Jefté que morrera virgem, imolada pelo próprio pai, em cumprimento de promessa feita a Deus. Certamente na tradição religiosa de Israel havia alguns elementos históricos referentes aos sacrifícios humanos feitos a Javé, por influência pagã. O autor usa esses elementos para montar a sua “história”. Com ela pretende dar o motivo daquela celebração religiosa feminina bem como questionar e condenar o costume de se oferecer sacrifícios humanos às divindades -  como o fez o ímpio rei Manassés (2Rs 21,1-6). Nem a  a Javé, Deus de Israel  se pode oferecer sacrifíco humano. É abominável (cf. Gn 22).

34.
É verdade que o sol parou por ordem de Josué?

         É o livro de Josué que narra esse “milagre” (Js 10,12-15). Mas é um modo de falar, é um gênero literário poético.
         Copérnico ( + 1543) foi o primeiro cientista a propor que o centro de nosso mundo planetário era o sol e não a terra. A terra gira em torno do sol. Essa teoria lhe valeu a condenação formal pelo papa Paulo V como contrária à Sagrada Escritura!
         Depois de Copérnico, Galileu ( + 1642) demonstrou que a teoria dele (Copérnico) era verdadeira e provou que era a terra que girava ao redor do sol realmente. É o chamado sistema heliocêntrico. Também Galileu foi condenado pela Inquisição, e sendo ameaçado de ir para a fogueira como herege, teve de abjurar sua “heresia astronômica”! E abjurou contrariado, afirmando, porém, no seu íntimo que era a terra que se movia ao redor do sol! Ficou célebre sua frase: “E pur si muove”, isto é, “e contudo é ela que gira”!
         No sistema solar é impossível que a terra, ou qualquer planeta, parem em sua trajetória. Isso provocaria desastre cósmico de proporções inimagináveis. Mesmo assim, ainda hoje,  alguns autores conservadores e algumas seitas religiosas  fundamentalistas,  se recusam admitir como simbólica, metafórica, essa narração do livro de Josué sobre o “milagre do sol”! E ficam procurando um meio de acomodar a narração bíblica com a evidência da ciência. O certo é que nem o sol e nem a lua pararam no céu; e não poderiam parar.
         A narração do livro de Josué interpreta um fenômeno natural acontecido naqueles dias. E o interpreta poeticamente. Como o fazem os nossos poetas e nós mesmos quando dizemos que “o sol nasceu”, “o sol desceu por detrás dos montes”.
         A narração, no versículo 11, diz que Javé mandou contra os inimigos de Israel uma grande chuva de pedra que matou mais gente do que a própria guerra. Uma tempestade de granizo é geralmente acompanhada por nuvens espessas, escuras e muito vento, O narrador da história viu nesse fenômeno a mão poderosa de Javé; e para dizer literariamente que o sol e a lua não brilharam naquele dia e naquela noite, usou o verbo “parar” (isto é: não apareceram). Esse verbo, que em hebraico se diz damam, pode também significar, nessa língua, “ficar admirado”, boquiaberto. Desse modo, o texto estaria dizendo poeticamente que até o sol e a lua ficaram parados, “admirados”, boquiabertos diante da ação miraculosa de Deus em favor de seu povo, enviando-lhe extraordinariamente contra os seus inimigos grande tempestade, granizo e destruição. E foram esses fenômenos extraordinários que ajudaram, e muito, os israelitas na batalha. Ou por outras palavras: foram esses fenômenos que ganharam a batalha; os israelitas só conferiram o resultado (Js 10,1 1-13b). Os hebreus não poderiam “se vingar dos inimigos”  como diz o v. 13, pois   esses já tinham sido derrrotados  por Deus no versículo 10!
         Notar  que esse texto de Josué cita como sua fonte o “Livro dos Justos”, livro desconhecido, mas que vem citado também em 2Sm 1,18 e 1Rs 8,53. A narração é, pois,  genuinamente poética e não há motivo algum para pensar em problemas de astronomia.
         Autores contemporâneos não têm dúvidas em afirmar que essa narração é hiperbólica, feita de propósito, para traduzir pela primeira vez, na Bíblia, a concepção israelita sobre “Javé que age na História em favor de seu povo”. É o primeiro texto escrito que traduz essa tomada de consciência por parte de Israel. “O seu Deus é suficientemente poderoso para manejar ao seu arbítrio os fenômenos naturais; a natureza está a serviço de um desígnio histórico: a conquista. Desse modo, Israel vê a natureza como algo submetido por alguém à finalidade de sua história. A questão da historicidade da parada do sol um dos elementos do infeliz caso Galileu é, neste contexto, algo obviamente improcedente”.[3]
          

        
a) A história de Sansão e Dalila
         Essa história é narrada nos capítulos 13 a 16 do livro dos Juízes. Esse livro narra os acontecimentos que envolveram o povo de Deus quando, saindo do Egito e passando pelo deserto, começou a instalar-se na Terra Prometida. Foi um princípio muito difícil. De um lado, as guerras, as lutas contra os povos vizinhos eram constantes, e de outro lado a fé do povo vacilava muito: os problemas religiosos desafiavam a fidelidade desse povo à Aliança feita com Deus. O livro dos Juízes que narra toda essa história é então livro de tensões e de crueldades até, mas é também livro de esperanças. A redação do livro é de época bem posterior à dos fatos narrados.
         No contexto geral da História do povo hebreu, percebe-se como
Deus conduzia esse povo usando das experiências duras do dia-a-dia
e sempre chamando esse seu povo à fidelidade, à Aliança. Os juízes
foram eficazes instrumentos de Deus para manter acesa a fé do povo
e não deixá-lo perder sua identidade de “povo de Deus”. O livro é,
pois, a história de um povo mergulhado na História.
         Entre os juízes que dirigiram o povo aparece a figura pouco ortodoxa de Sansão.
         O nascimento de Sansão (Jz 13,1-5) é narrado dentro do esquema literário-bíblico do nascimento dos grandes personagens. A Bíblia sempre narra assim o nascimento de pessoa que terá missão especial na vida religiosa da nação. Assim são narrados os nascimentos de Samuel (lSm 1,1-28), de João Batista (Lc 1,5-25), de Jesus (Lc 1,26-37).
         Segundo esse esquema, um “anjo de Deus” anuncia o importante acontecimento; a futura mãe é estéril ou virgem; há prescrições rituais para serem observadas por alguns desses personagens, como, por exemplo, a proibição de beber vinho, para uns, a proibição de cortar os cabelos, para outro etc.
         A vida de Sansão foi muito atribulada, estranha e nada recomendável: casou-se com mulher inimiga de seu povo (14,1-3); realizou façanhas extraordinárias como despedaçar um leão, falar por charadas, matar sem piedade, incendiar roças! Abandonou a primeira mulher, casando-se com outra; acabou cego e morrendo em desmoronamento que ele mesmo provocou, matando com isso muitos inimigos também!
         O que há de verdade nessa história?
         Esse relato foi elaborado a partir de certa base histórica, mas recheada com lendas e com folclore.
         Qual a base histórica?
         Era a tensão existente no meio do povo a respeito da observância e não observância da Aliança, nos tempos da conquista da Terra Prometida. Sempre que o povo deixava de observar a lei de Deus, que era a Constituição do país, e adotava alguns dos costumes pagãos ou até inclinava-se para os ídolos, a nação se desajustava, desunia-se e tinha sua liberdade ameaçada. Os povos vizinhos aproveitavam geralmente dessas situações de desequilíbrio interno do país e faziam guerrilhas contra o povo de Israel na tentativa de dominá-lo, conquistar suas terras, ou até reconquistar terreno perdido.
         Doutro lado: sempre que o povo reconhecia as suas faltas, voltava a Deus e à sua Lei, Deus suscitava um líder para libertá-lo da dominação estrangeira. E é o livro dos Juízes que narra essas façanhas (3,9-10; 4,3ss; 6,7ss; 10,l0ss).
         Para o povo ficava claro que Deus estava sempre disposto a agir para libertá-lo, desde que ele fosse fiel à Constituição do país, que era a Lei de Deus.
         Um desses libertadores do povo foi Sansão, figura muito conhecida e muito presente nas histórias do povo. Foi ele um desses juízes que Deus suscitou para libertar seu povo. Nele se manifestava a força de Deus. A tradição juntou, porém, em torno de sua figura muitos elementos do folclore nacional. O núcleo histórico é a ação do juiz Sansão, suscitado por Deus para libertar seu povo.
         Como observa Fr. Carlos Mesters[4], o redator do livro dos Juízes usou, porém, essa história para veicular, no seu tempo, uma proposta dele a respeito da observância da Lei. Ele escreve muito depois dos acontecimentos narrados no livro. Escreve no tempo do rei Josias (640-609 a.C). Esse rei é considerado na Bíblia (2Rs 22 e 23) como rei piedoso, reformador da vida nacional e da vida religiosa. Para realizar esse seu projeto de reformas ele precisava não só ser forte e corajoso, mas ter o apoio de todos. Só assim ele seria, de fato, a manifestação da “força de Deus”.
         A história de Sansão entra aqui. Do mesmo modo como no tempo de Sansão o povo devia converter-se e voltar à Aliança com Deus, era preciso agora também que o povo mudasse de vida, observasse de fato a Lei de Deus e apoiasse o rei. Josias era, para o autor do livro, e devia ser também para o povo, o novo Sansão em quem estava a força de Deus. Uma história velha, como diz Mesters, torna-se motivo de novo impulso para a reforma da comunidade e forte apelo para a observância da Lei de Deus — proposta agora insistentemente pelo piedoso rei Josias. Ele devia, portanto, ser acatado, apoiado, prestigiado; sua obra vinha de Deus.

b) A história de Davi e Golias

         Essa história é narrada em 1 Sm 17 e pertence às tradições sobre as guerras dos israelitas contra os filisteus. As tradições costumam preservar um núcleo histórico numa narração, mas o enfeitam sempre com muitos pormenores lendários e folclóricos. Assim é a história da luta entre Davi e Golias. Por isso, há quem afirme que essa narração é apenas uma historinha inventada com finalidade didática e que não tem importância alguma.[5]
         De fato, o autor ou redator dessa história teve em mente finalidade didática: narrar uma guerra que havia entre os fortes fihisteus e o desorganizado e fraco povo israelita; narrar porque Davi foi recebido e aceito na corte do rei Saul, e finalmente mostrar, com essa história, como o Deus dos pais sempre protegeu o seu povo, libertando-o dos seus opressores. O povo de Deus, fraco e desarmado, é representado por Davi; o povo opressor, guerreiro, forte e bem armado é representado pelo gigante Golias.
         Esses pormenores todos aparecem mais claramente na descrição que o autor faz dos dois guerreiros: Golias tem 2,92 m de altura; é guerreiro fortemente armado, faz desafios e insultos, é prepotente e combate em nome de seu povo (vv. 4-10.40-46). Davi é o caçula de uma família de agricultores, desacostumado de lutas, desarmado, insultado; mas luta em nome de Javé dos exércitos, o Deus dos exércitos de Israel (vv. 38-40.46).
         A tradição primitiva falava de guerra havida entre os dois povos e de vitória de Davi nessa guerra. O gigante Golias foi inserido depois  na história para valorizar a façanha de Davi e explicar por que ele passou a frequentar a corte de Saul: era valente guerreiro.
         A história da luta entre Davi e Golias é, pois, uma reflexão do autor que, partindo de um núcleo histórico, escreve para chamar a atenção dos leitores sobre a intervenção providencial de Deus na vida de seu povo. Deus realiza a salvação sem precisar usar a espada ou equipamentos militares.[6]
         Essa mesma idéia é também expressa pelo livro do Eclesiástico: “Ele invocou o Senhor Altíssimo, que deu força à sua mão direita, para eliminar um guerreiro valente e reerguer a honra do seu povo” (Eclo 47,5). O primeiro livro dos Macabeus também reafirma a mesma idéia: “Bendito sejas Tu, Salvador de Israel, que derrotaste a força de um gigante pela mão do teu servo Davi [...] (1Mc 4,30).
         Esse relato é narração épico-histórica com fundo teológico:
Deus está sempre presente e salva o homem na história. Deus derruba os poderosos e prepotentes e eleva os humildes. Essa é idéia teológico-bíblica fundamental; idéia-chave nos dois Testamentos (Pr 12,7; 24,16; Jr 18,23; Ag 2,22; Lc 1,52).


         A narração bíblica sobre a atuação dos profetas Elias e Eliseu está nos livros dos Reis (lRs 17,1-2Rs 13,14-2 1).
         Tal narração constitui o que se chama hoje “ciclo de Elias”. Esse conjunto narrativo une fatos históricos e tradições populares e religiosas sobre esses dois profetas. Há muitos pormenores sobre cada um deles, lembrados com a finalidade de sublinhar a figura extraordinária de cada um desses homens de Deus. Muitos desses pormenores constituem o que podemos chamar hoje de “casos”, como os que o povo às vezes conta nas rodinhas de conversa! É o colorido que sublinha aspectos de acontecimentos históricos. A elaboração desses “casos” é bem posterior; é inserida no tempo do exílio de Babilônia (sec. V a.C.). Os fatos narrados de Elias e Eliseu ocorreram no século IX a.C. Por isso, ao analisar a narração bíblica sobre esses dois profetas, devemos separar bem o que é histórico do que é montagem posterior, quer dos discípulos desses profetas, quer do redator final da narração. Daqui podemos dizer com segurança que nesse ciclo profético de Elias e Eliseu há narrações verdadeiramente histórico-substanciais, como há também elaborações artificiais e literárias com finalidade didático-religiosa: mostrar através de “milagres constantes” a figura sobrenatural daqueles homens de Deus.
         A exegese mostra hoje que há um esquema literário-bíblico em que se baseia a história de Elias e Eliseu. Pela análise do texto bíblico (1 Rs 17,1 -2Rs 13,14-21) percebe-se que há semelhança muito grande entre as ações dos dois homens. Por exemplo: os dois entram em cena em ocasiões semelhantes: o país está passando por sérias dificuldades socioeconômicas (seca, pobreza, fome...); os dois fazem o milagre da multiplicação dos pães (lRs 17,7-16 e 2Rs 4,42-44); ambos ressuscitam um morto (1 Rs 17,17-24 e 2Rs 4,18-37) usando o mesmo ritual.
         Pode-se perceber nesses relatos um esquema de narração estereotipada sobre “profeta-taumaturgo”, milagroso. Além disso percebem os exegetas relações muito grandes entre a tradição que falava de Moisés e a tradição que fala de Elias e Eliseu. Assim, em lRs 17,6 fala-se da alimentação de Elias do mesmo modo como a tradição de Moisés (Ex 16,8.12) fala da alimentação do povo de Israel. Em lRs 18,20-40 é narrada a disputa entre Elias e os sacerdotes de Baal no monte Carmelo; em Ex 7,8-13.20-22, é narrada a disputa entre Moisés e os magos do Egito; tanto Moisés (Ex 14,2 1-22) como Elias (2Rs 2,8) passam pela água a pé enxuto... Elias é, de fato, apresentado como novo Moisés.[7]
         Tudo isso deve, pois, ser levado em consideração quando se quiser analisar esses textos.
         Alguns textos mais conhecidos desse ciclo e que causam certa perplexidade são: o arrebatamento de Elias aos céus (2Rs 2,1-18); a punição severa dos jovens gozadores (2Rs 2,23ss); os milagres da multiplicação do óleo e do pão (1Rs 17,7-16 e 2Rs 4,1-7.42-44) e a ressurreição de um morto (1Rs 17,17-24 e 2Rs 4,33-37).
         Não analisarei aqui, em pormenores, cada um desses relatos. Não é intenção desse trabalho. Todavia, uma interpretação genérica sobre cada um deles parece-me necessária.

         1. O arrebatamento de Elias aos céus (2Rs 2,1-18)

         É narração tipicamente teofânica, isto é, sobre aparecimento de Deus. Tem a intenção de mostrar que Elias foi aceito e recebido por Deus nos céus. Os céus se abrem para ele. É também narração feita com a intenção de legitimar a missão de Eliseu, profeta-sucessor de Elias: ele tem a mesma missão de Elias, pois recebeu o seu manto, gesto que o torna seu herdeiro e sucessor.
         A montagem da cena com carro de fogo e guerreiro (2Rs 2,12) tem acento mítico, diz-se hoje, isto é, a cena foi elaborada pelo redator para colorir uma história fabulosa sobre o grande herói religioso, Elias. Carro de fogo, cavalos de fogo e cavalaria celeste (coisas que aparecem na mitologia) são modo de dizer que Elias é tão grande e tão forte quanto todo um exército. [8] É uma maneira literária de dizer que Elias morreu de forma gloriosa e que  sua memória permanecerá viva no meio do povo.
         A intenção de todo o relato é a de mostrar a santidade e a importância de Elias, bem como a continuação de sua missão por Eliseu. Esse é o ponto alto, histórico, da narração. A forma, o modo de narrá-lo são secundários. Não se deve dar mais importância ao secundário e esquecer o principal, como tanta gente faz.
        
         2. A punição dos jovens gozadores (2Rs 2,23ss)

         Tomada ao pé da letra essa narração é inaceitável do ponto de vista do equilíbrio psicológico. Um adulto não pode reagir tão violentamente como fez Eliseu diante de brincadeiras de crianças. Também parece, segundo a narração, que Deus está à disposição do seu profeta, executando a qualquer hora milagres estupendos a seu favor!
         Os exegetas dizem hoje que tal história é uma montagem
didática para salientar duas idéias: um profeta não pode ser desprezado
e nem caçoado; o profeta é homem de Deus e tem a força do Espírito, o
qual pode realizar por ele obras maravilhosas! O relato tem, portanto,
a finalidade de sublinhar a dignidade do profeta bem como seu
prestígio junto ao povo.

         3. A multiplicação do óleo e a multiplicação do pão (lRs 17,7-16 e 2Rs 4,1-7.42-44)

         Também essas narrações são consideradas pelos exegetas como montagens literárias feitas pelo grupo dos discípulos dos profetas.
         São uma espécie de coletânea de “casos contados” sobre os profetas Elias e Eliseu. A finalidade desse tipo de relato é a de mostrar que o profeta, como homem de Deus, é dotado de poderes extraordinários. Esses “milagres” são um tipo de poder do profeta, que é usado sempre a favor dos mais necessitados.
         A origem histórica dos fatos pode estar nas tradições acerca dos poderes extraordinários dos homens de Deus que habitavam o monte Carmelo. Elias e Eliseu são historicamente apresentados como tais homens de Deus. Por eles Deus ajuda os pobres, as viúvas e os órfãos, como promete nas Escrituras (Ex 22,21-23). Eles realizam as promessas de Deus. Esse é o sentido primeiro dessas narrativas sobre os milagres deles. Realmente esses relatos falam das necessidades materiais, das dificuldades econômicas de duas viúvas pobres, com filhos pequenos. Elas procuram os homens de Deus e eles as ajudam como o Senhor prometera. O redator concretiza essa ajuda prestada, em dois milagres que atendem as necessidades básicas dessas duas famílias: abundância de pão e de óleo.

         4. A ressurreição de um morto (lRs 17,17-24 e 2Rs 4,33-37).

         Não podemos ficar discutindo o “milagre” em si, isto é, se é fato histórico ou não. Parece que a finalidade dessa narração é clara:
mostrar a dignidade, a santidade e a autoridade dos profetas. O “milagre” aqui apresentado é também ajuda a pessoa necessitada. Os profetas são, de fato, dizem os textos, homens de Deus. Por isso Deus realiza por meio deles essas obras portentosas. Não são obras do profeta, mas de Deus. Tanto Elias como Eliseu, por vezes seguidas suplicam a Deus pela restituição da vida àquelas crianças. O agir profético depende do poder de Javé.
         O “milagre” é descrito dentro de esquema estranho. O “ritual” usado é tirado, porém, de costume daquele tempo. No conjunto das ações entra em cena também um cajado mágico, um bastão (2Rs 4,29-32). O cajado mágico de Eliseu lembra o de Moisés, pelo qual ele operava milagres em nome de Deus (Ex 4,lss; 7,9-12. l9ss; 17,5ss). Mas aqui, nesse relato de 2Rs 4,29-32, é somente pela intervenção de Deus que se opera o milagre e não pelo poder do cajado  mágico.
         Em lRs 17,17-24 e 2Rs 4,33-37 é descrita a fórmula da ressurreição. Esse tipo de ação é chamado sinanacrose (literalmente significa comunicação de calor). Era um método comum de cura pelo qual os médicos-magos de antigamente tentavam reanimar os “mortos”. Deitavam-se sobre eles para comunicar-lhes o próprio calor e as próprias forças vitais, o que lhes devolvia a vida — conforme acreditavam. Nos casos relatados pelos livros dos Reis, a força toda dos relatos incide no papel exercido pelos homens de Deus. Os textos querem dizer exatamente isso: Deus sempre opera prodígios por meio de seus servos. Grandes servos de Deus foram Elias e Eliseu. Portanto, grandes prodígios Deus operou realmente por eles. Esse é o substrato histórico de toda a tradição sobre milagres e portentos dos homens de Deus, Elias e Eliseu.  Não são os milagres físicos em si, como pode parecer.

37. A Bíblia diz que o profeta Jonas ficou três dias e três noites na barriga de um peixe. É possível?

         Não há dúvida de que é totalmente impossível alguém ficar esse tempo na barriga de um peixe e ainda sair vivo! E pelo que se sabe, parece que não existe peixe tão grande que possa engolir um homem de uma vez. Existem peixes imensos, como o tubarão, por exemplo, e cetáceos como a orca, que são perigosos para o homem. Mas não engolem suas vítimas sem antes despedaçá-las!
         Pelo visto, pode-se perceber que a narração do livro de Jonas não é histórica no sentido de estar relatando um fato que deveras aconteceu. É histórica pelo fato de descrever uma situação difícil, um problema real que preocupava muita gente nos tempos do redator.
         O livro refere coisas estranhas e prodigiosas como se pode verificar: a permanência de Jonas por três dias e três noites na barriga de um peixe e não morrer;  a oração que ele faz dentro da barriga do peixe é um salmo longo e fora do contexto; um pé de árvore que nasce de repente e também seca de repente etc.
         Nada disso aconteceu, nada disso é histórico.
         Então,  por que a Bíblia narra tal história e insere tal livro como profético, inspirado?
         O que a Bíblia quer ensinar por meio desse livro é uma verdade muito grande. E usa uma história para transmitir essa verdade. Não se pode ficar mais preocupado com o quadro montado pelo autor, com todas as cores que ele usa, do que com o conteúdo que ele quer transmitir. Assim como nas piadas que contamos. O essencial, o importante é o final da história, sempre hilariante, inesperado e ilógico. Quem se preocupar com a lógica da piada, querendo saber o nome do português e outros pormenores, não entendeu o espírito da coisa. Mal comparando, assim é o livro de Jonas. Ele pretende tocar num ponto muito delicado do judaísmo de sua época: o extremismo religioso. O livro apareceu no séc. V antes de Cristo, depois do exílio de Babilônia (587-539), por ocasião das reformas feitas por Esdras e Neemias. Esses dois líderes religiosos, querendo obrigar o povo judeu à observância radical da Lei de Deus, cometeram graves injustiças. A maior delas foi a de exigir que todo israelita casado com mulher estrangeira expulsasse de sua casa tanto a sua mulher como os filhos que tivera com ela (Esd 9-10; Ne 13). O motivo era religioso:
só o povo israelita era considerado povo eleito, raça pura, o povo santo. Os estrangeiros manchavam a nacionalidade e a crença judaicas: contaminavam! Por isso deviam ser excluídos do povo de Deus.
         Mas nem todos os israelitas pensavam assim, como podemos ler no próprio Esdras (Esd 10,15). O próprio livrinho de Rute é um grito contra esse rigorismo arbitrário. Nesse contexto é que aparece também o livro de Jonas. Não é livro histórico, nem profético, mas didático. Quer mostrar que o Deus de Israel é um Deus de amor, é misericordioso para com todos os que o temem e que salva a todos que o procuram de coração sincero.
         Para transmitir essa verdade ou essa mensagem, o livro usa de liberdade literário-didática, tornando-se obra muito interessante, cheia de peripécias e de casos engraçados. A mensagem central do livro é esta: Deus salva a todos. Essa mensagem é um dos pontos altos da teologia do Antigo Testamento. Por isso o livro é um “sinal” da missão de Jesus, o Salvador de todos (Mt 12,38-42). Jesus combateu a idéia extremista, nacionalista de salvação particular quando condenou,  por exemplo, a intransigência do irmão mais velho, não aceitando na família o irmão mais novo e pecador (Lc 15,11-32).
         O livro censura então duramente o povo hebreu, simbolizado em Jonas, por não aceitar a vontade de.Deus. Jonas (= povo hebreu), ao ser enviado por Deus para pregar a salvação a estrangeiros, foge (1,3). Não quer que os outros se salvem! Quando é obrigado a pregar, ele vai Nínive; o povo escuta a mensagem, faz penitência, converte-se, é salvo. Deus se alegra com isso, mas Jonas (isto é, o povo hebreu) se entristece (4,1) e até pede a morte (4,2-3)!
         O livro zomba dos rigoristas hebreus, simbolizados em Jonas (1,5-9): esse, irrita-se e morre de raiva porque o pé de mamona que lhe dava sombra tinha secado! Pediu a morte por isso! E Deus lhe disse que se ele pedia a morte por causa de um pé de mamona que tinha nascido e morrido no mesmo dia, quanto mais o Senhor Javé não deveria preocupar-se com a salvação dos homens! Se Jonas tinha dó de um pé de mamona, não haveria o Senhor de ter dó de um povo tão ignorante que não sabia distinguir a mão esquerda da direita? (4,10-1 1).
         Concluindo, podemos dizer que o livro de Jonas é o livro da
misericórdia de Deus (Jn 1,6; 3 ,9s; 4,2b), o livro da salvação universal, pois  Deus não conhece fronteiras.
         É o único na Bíblia que termina com pergunta direta ao leitor, questionando-o para dizer-lhe que a misericórdia de Deus é ilimitada. É misericórdia que Deus tem não só para com os israelitas, a quem
libertou do exílio, mas para com todo povo que se converter a ele e
o aceitar como Senhor.
 Ironicamente o livro mostra que todos os personagens da narração são simpáticos e amigos; o único antipático e azedo é um israelita, um “escolhido”, um profeta! Se Deus é indulgente com um profeta azedo e antipático, muito mais indulgente será para com os povos que o procurarem.
Esse universalismo salvífico do livro de Jonas alcançará a sua máxima expressão no Novo Testamento. Deus é o Deus de todos. Não há mais grego, judeu, pagão, escravo ou livre. Deus é um só e Pai de todos. (Gl 3,28).  Por isso todos os homens são irmãos (Rm 3,29; Mt 23,8-9).
          O livro de Jonas pode ser considerado profético porque de fato ele lê nos acontecimentos de seu tempo a vontade de Deus: a volta do exílio e o perdão de Deus para um povo que, embora fosse o povo escolhido, era tão pecador e impenitente; mostra que Deus quer salvar sempre. Não só os israelitas, mas a todos os homens. Essa intuição do autor é realmente profética.      O livro é, pois, um midraxe, ou seja, comentário religioso, didático, de tema bíblico.
É também sátira bem-humorada contra toda intransigência e intolerância religiosas.


         Respondemos essa pergunta considerando três aspectos importantes no profetismo.
         a) O que é o profeta
         Muita gente pensa mesmo que profeta é a pessoa que prevê o futuro. A Bíblia, porém, mostra que não é bem isso.
         Profeta, na Bíblia, não é a pessoa que prevê o futuro, mas é a que “fala em nome de Deus”. É esse o sentido do verbo grego profemí, que quer dizer “falar em nome de”. É desse verbo que vem a nossa palavra profeta.
         Como sabemos, porém, que a pessoa fala em nome de Deus? Como podemos saber que o profeta é verdadeiro? Como explicar as previsões feitas pelos profetas bíblicos e que, de fato, aconteceram depois?
         O profeta, segundo a Bíblia, é o “homem do Espírito”, não da carne. Com isso a Sagrada Escritura quer afirmar que é tão somente o Espírito de Deus que envolve e impele o homem a falar em nome dele.
         Não são motivos e nem valores humanos que levam Deus a suscitar o profeta. Deus escolheu muitas vezes como profetas homens que eram humanamente contra-indicados. Por exemplo, escolheu, como libertador do povo e seu profeta, Moisés, que era gago e que se recusava a falar em nome de Deus (Ex 3,10-11; 4,10); escolheu Jeremias, que não tinha condições e que se recusava a aceitar a missão (Jr 1,4-6.17.19), escolheu Amós que era simples pastor no reino do sul para falar em seu nome no reino do norte; também Amós tem medo e não quer aceitar (Am 7,14-17).
         Todos eles, e outros, cedem mediante força interior que os seduz e empurra. Essa força é chamada na Bíblia “Ruah de Javé”, ou seja, “Espírito de Deus”. Esse “Espírito de Deus” é que toma a pessoa, envolve-a, domina-a, transforma-a e a impele para a missão. Dá até a impressão de que a pessoa é violentada em sua liberdade. Mas não é.
         Segundo a Bíblia, o profeta pertence à comunidade de Israel, como o sacerdote e o rei. São esses os três eixos sobre os quais se assenta o povo de Deus. Mas há grande diferença entre sacerdote/rei e o profeta. O sacerdócio e a monarquia foram instituídos; os cargos são hereditários. O profeta, porém, não pertence à instituição. O profeta emerge; ele surge de dentro da comunidade.
         O “Espírito de Deus” desabrocha ou explode nas situações concretas da vida. Aquele instante, em que determinada pessoa, por inspiração de Deus, toma consciência de que uma situação é vivida contrariamente à Lei de Deus, é o “instante do Espírito”. E o momento da chamada “inspiração profética”. Deus fala por aqueles acontecimentos; a pessoa ouve, entende e sente que não pode calar. Tem que falar, tem que gritar. É o momento da adesão da pessoa à inspiração de Deus. É momento de plena decisão pessoal.
         Diz Carlos Mesters que o profeta é quem percebe, dentro das situações concretas da vida, o curto-circuito entre o ser e o fazer, entre doutrina e prática. Ele é, segundo a Bíblia, a “sentinela de Deus” (Os 9,8; Ez 3,17; 33,7). Está sempre atento. Por isso o profeta denuncia, desinstala, perturba, derruba estruturas falsas, tira apoios.[9] Como exemplos podem-se ver:
         Amós: prega duramente contra a injustiça dos governantes e contra o tipo de  vida relaxada de seu povo (2,6-8; 5,10-13; 8,4-7).
         Jeremias: prega contra o Templo, o maior símbolo religioso- político da nação hebraica (1,11-15; 7,1-15).
         Osias: prega contra a traição do povo a Deus, verdadeira “prostituição” da fé (2,4-13). E outros.
         O profeta tem, segundo a Bíblia, uma função crítica na comunidade. Ele critica as falsas concepções sobre Deus, sobre religião e sobre a vida.
         Falsa concepção sobre Deus: o profeta bíblico lembra ao povo que o Deus de Israel é o Deus forte, presente na História, libertador e comprometido com seu povo. Exige que o povo cumpra sua parte na Aliança feita com ele (Dt 30,15-20). Todavia o povo de Israel abandonou seu Deus, seguindo os deuses pagãos, ídolos vazios, que não exigem do homem compromisso algum. O Deus dos patriarcas não é assim. É o Único, o Todo-poderoso, o Libertador.
         Os profetas pregam veementemente contra a idolatria, convidam o povo à conversão, e insistem na observância da Aliança.
         Falsa concepção sobre religião: o povo é muito apegado à prática cultual. Todavia, dizem os profetas, se a nação não voltar ao verdadeiro Deus e à observância fiel da Aliança, com suas consequências práticas, o culto prestado a Deus, no Templo, é falso e inútil; a prática religiosa é falsa, pois prestam  como verdadeiro um culto ao Deus Unico e Libertador, quando na prática se escravizam e aderem aos ídolos. O culto não representa, pois, a crença verdadeira e a vida do povo. É apenas rito, é vazio, é de fachada. Fé e vida estão desligados. O Templo, sinal da fé e da Aliança, não tem sentido, pode até ser destruído (Jr 7,9-15).       
         Falsa concepção sobre a vida: se o Deus dos pais foi trocado pelos ídolos; se a religião é por conseqüência falsa e ritualista, a vida de cada um e a vida comum são também livres, descompromissadas. A consequência lógica de tudo é então uma vida relaxada: prostituição (2Rs 16,4; 21,3), idolatria, exploração social, luxo, orgias etc. (cf. Mq 2,1-8; Am 6,1-7; 8,4-7).
         Contra esse tipo devida, contrária à Lei de Deus e à Aliança, é que os profetas pregam.
         Mas o profeta bíblico não é apenas o contestador das injustiças e da vida transviada do povo; não é apenas o crítico que denuncia, desinstala e derruba estruturas falsas. O profeta bíblico é, antes de tudo, homem que reflete com seu povo e aponta caminhos. O profeta verdadeiro dá pistas, propõe soluções, fundamenta as novas estruturas; concretamente ele convoca à conversão, propõe a fé no Deus verdadeiro, a adesão ao Senhor e o compromisso de vida. Assim o circuito: luz da fé-graça-vida é restabelecido. Portanto, o profeta bíblico é sempre homem de esperança. Até nos piores momentos da vida do povo.
         O profeta se torna verdadeiro sinal, voz de Deus, quando ele vive os acontecimentos ( não é “profeta contratado”, “paraquedista”); quando ele interioriza a Palavra de Deus e escuta a voz de Deus pela oração. Desse modo ele se habilita a ser de fato “instrumento de Deus”, profeta, isto é, aquele que pode falar em nome de Deus. Sua palavra será realmente expressão do “Ruáh de Javé”, do Espírito de Deus.
         b) Por que acontecem mesmo as predições dos profetas?
         As “predições” dos profetas não são uma visão do futuro. São conclusões lógicas de certos acontecimentos ou de certos comportamentos. Ele é capaz de prever aonde se pode chegar com determinado modo de vida. Geralmente, quando um grupo de pessoas é enganado quase ninguém do grupo percebe. Só um observador atento e esperto. Ele pode intuir.
         Assim são muitas das “previsões” proféticas. Elas são detectáveis, previsíveis mesmo. À luz da graça de Deus os profetas mostram ao povo as consequências de certas atitudes contrárias à Lei do Senhor.
         O profeta Amós convidava o povo à conversão de vida, à prática da justiça e do direito. Onde não houver observância da Lei; onde não houver justiça nem direito, diz o profeta, não haverá tampouco união nem liberdade. O povo poderá ser facilmente dominado. E o foi. Em
722 a.C. a Assíria tomou e destruiu o reino do norte (Am 5,16-17; 6,8-
14 e 2Rs 17,1-24).
         O profeta Jeremias previa também que se o povo não se convertesse, se não mudasse devida, perderia logo sua liberdade. Sem Deus, sem culto legítimo, sem disciplina, o povo seria facilmente dominado, dizia o profeta. E o foi também. Os babilônios dominaram o país e levaram quase todo o povo para o exílio (587-539) (Jr 7,29-34 e 2Rs 24-25).
         Outros profetas lembraram, do mesmo modo, as consequências de certos comportamentos do povo. Todo pecado contra Deus ou contra o próximo traz sempre consequências, que serão maiores ou menores, de acordo com a disponibilidade de o povo converter-se ou não (Is 3,16-26; 14,1-2; Ez 18; etc.).
         Isso tudo não é previsão no sentido de adivinhar; é uma conclusão lógica como se disse de certos acontecimentos e de certos comportamentos.
         Evidentemente, nem todos os oráculos proféticos são apenas previsões lógicas tiradas dos acontecimentos. São também intuições percebidas à luz da fé, da graça e da inspiração de Deus. Sempre, porém, um acontecimento está à base. O profeta é a única pessoa capaz de ler o significado do acontecimento. E ele o faz por graça e inspiração de Deus.

c) Existem profetas hoje?
        
         Existem e muitos. O profetismo, tem-se falado, é artigo de fé para o cristianismo. Por isso, o movimento profético não apenas existiu, mas existe e é muito forte. A inspiração de Deus e a força do Espírito enchem todo o universo, diz o livro da Sabedoria (Sb 1,7).
         Mais: se a Palavra de Deus é eterna (Is 40,8) e sempre produz efeito (Is 55,11) é lógico concluir que ainda hoje ela atua. E não só atua na Igreja de Deus, novo Israel, e pelos cristãos (novos profetas), mas também atua mediante tantos homens e mulheres de boa vontade que lutam pela justiça, pelo bem, pela paz até sem pertencerem à Igreja institucional. Por isso podemos dizer que o movimento profético é hoje tão vivo quanto o foi no tempo dos profetas clássicos, e é hoje tão necessário quanto o foi em Israel, pois também o homem de hoje necessita do pedagogo, do carismático, da testemunha, que vivendo a Palavra e impulsionados pelo Espírito de Deus, sejam a consciência crítica de seu modo de vida, critiquem, desinstalem, derrubem suas certezas e posições falsas, e o façam ouvir o claro apelo de Deus, indicando-lhe as esperançosas pistas de futuro feliz.
         Evidentemente existe certa diferença teológica entre o profetismo construído com base na fé e o profetismo construído com base nos valores humanos; como também há diferenças entre o verdadeiro e o falso profeta.
         O profeta verdadeiro, já foi dito, emerge das situações concretas da vida da comunidade. E ele a “sentinela de Deus” (Os 9,8; Ez 3,7; 33,7) que percebe o perigo; é ele quem percebe o curto-circuito entre fé e vida, e dá o alarme.
         Se o profetismo é hoje realidade, não é menos verdade que ele existe porque as situações concretas da vida são hoje tormentosas. Há abismo imenso entre fé e prática, com consequências concretas na vida socioeconômica do povo, nos costumes e na religião. Se a fé não for profundamente vivida, o homem não terá escrúpulos em oprimir seu semelhante, criando estruturas econômicas que fazem uns se tornarem cada vez mais ricos às custas de outros cada vez mais pobres (Puebla 27-30). Sem  fé profunda e viva, os valores éticos perdem também seu sentido. O que passa a valer é a corrupção, em plano pessoal  e social.
         A religião, por sua vez jamais será, nesse esquema, expressão fiel do reconhecimento do Deus Uno, Senhor, Pai, Libertador; jamais será sinal da adesão a ele e de seu compromisso com o irmão. Ela será apenas culto, que pode impressionar pela liturgia, beleza, pompa, mas jamais seriedade e coerência evangélicas.
         É nesse campo que atuam os profetas hoje, contestando a prática social, religiosa e ética do homem. E o critério para avaliar o verdadeiro profetismo hoje é o mesmo critério bíblico: o profeta se identifica pela sua fidelidade ao homem. De um lado, recorda as exigências de um Absoluto, Deus; de outro, luta com amor pelo respeito ao homem, senhor e não escravo da História.
         Numa palavra: verdadeiro profeta é hoje todo aquele que defende o irmão, por ser imagem de Deus, e por ele expõe até a própria vida.
Não é difícil confundir o profeta evangélico com o mártir da causa social ou com o autêntico líder social. Deve-se, porém, estar atento à sua mensagem e à sua vida, O verdadeiro profeta evangélico defende a causa do homem em nome de Deus e não a causa de um grupo em nome de um partido ou de interesses.
         Não deixa, porém, de ser verdadeiro profeta o líder que defende seus irmãos contra as injustiças, as opressões (mesmo não sendo cristão!) Todo aquele que expõe sua vida pelo irmão oprimido, todo aquele que ouve o grito de dor do homem escravizado e por ele levanta sua voz, esse é profeta de Deus. Por isso há sementes de autêntico profetismo em muitas lideranças sindicais, rurais e operárias de nossos dias.
Há profetismo vigoroso hoje em dia nas vozes da Igreja, das Conferências Episcopais, das Dioceses, Paróquias, Pastorais, Movimentos etc. Os exemplos são muitos. O traço comum que une a todos, cristãos e não-cristãos, instituições e pessoas, é a causa do pobre, do pequeno, do injustiçado. Disse Jesus: “Eu garanto a vocês: todas vezes que vocês fizerem isso aum dos menores de meus irmão, foi a mim que o fizeram” (Mt 25,40).
         O profetismo verdadeiro nem sempre é bem aceito; é frequentemente contestado, questionado e até perseguido! Até na Igreja de Jesus Cristo. Há sempre a massa alienada, “perdida em práticas e observâncias”,[10] corno também os grupos poderosos que usam do poder para explorar. Todos esses rejeitam, contestam, não aceitam denúncias proféticas. Porque o profeta, como se disse, perturba, inquieta, desinstala. Assim foi ontem e o é hoje. Jesus já alertara sobre isso: “Felizes os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino do Céu” (Mt 5,10).
         Concluindo: não foi função principal dos profetas bíblicos prever o futuro. Nem isso eles fizeram. Muitas das previsões deles cabem certamente dentro de certo quadro de possibilidades e probabilidades humanas. Todavia o Espírito do Senhor atuou sobre eles exatamente para exercerem sua função crítica na comunidade. O papel dos profetas sempre foi o de serem as sentinelas de Deus no meio do seu povo; o de serem os críticos de uma fé divorciada da prática; o de serem os anunciadores da Palavra de conversão; o de serem apoio nas lutas e sinais de esperança.


        
O livro de Jó é um dos livros poéticos mais antigos e dos mais belos da Bíblia. O tema de que ele trata não é  o problema do mal e nem a “paciência” de Jó, mas são dois problemas que incomodam muita gente: qual é o sentido do sofrimento do inocente e a doutrina da retribuição (também conhecida hoje como “Teologia da prosperidade”).  Segundo essa doutrina, Deus retribui a cada um conforme o que ele faz: aos bons, Deus dá saúde, alegria, bênçãos, dinheiro; aos maus, ele manda castigos, sofrimentos, pobreza e desgraças.
 Contra isso é que o livro protesta, porque esse modo de entender a religião leva a concluir que as riquerzas são sinal de bênçãos de Deus e a pobreza, sinal de maldição.Esse tipo de concepção, diz o livro, produz uma religiãode comércio segundo a qual Deus se deixa comprar.
Por outro lado, diz ainda o livro, existe tanta gente boa que sofre e só tem azares na vida, como  existe tanta gente ruim que progride e enriquece. Como se explica isso?
         Aqui entra a trama do livro de Jó.
         No fundo, pode-se dizer, o livro trata de um só problema: por que Deus não protege os bons e castiga os maus? O livro discute então a “justiça de Deus”. Nessa discussão entram os problemas da dor e do sofrimento humanos.
         Conforme certa concepção teológica do AT, todo castigo é consequência de um mal praticado e toda felicidade é consequência da justiça que se pratica. Quando o justo sofre, ele paga ou pelo pecado que fez ou pelos pecados dos outros. Essa idéia, comum no AT, acabou alcançando até o NT (Jo 9,2ss).
         Já no AT, porém, muitas pessoas discutiam esse critério e questionavam essa concepção. Não julgavam justo que alguém pagasse pelo que não fez. Cada um deve pagar por si o mal que praticou. Assim pensava, por exemplo, o profeta Ezequiel; ele pregava aos judeus exilados que o castigo do exílio era consequência das culpas e dos crimes que todos praticaram; era consequência lógica da infidelidade comum, de todos, e não só dos antigos (Ez 18). Assim pensa também o autor do livro de Jó.
         Para discutir esse tema, o autor do livro monta uma história ou drama. Com esse drama discutirá o assunto. Dispõe os vários personagens: os que são da opinião comum de que Deus castiga os maus e premia os bons; os que acham que os sofrimentos do justo são consequência dos pecados dos outros; realça muito o personagem central, Jó e o ponto de referência que é Deus.
         A trama é muito simples: o autor imagina uma reunião no céu entre Deus, os anjos e Satanás. Deus elogia as virtudes de seu servo Jó. Satanás contesta, dizendo que ele é virtuoso porque é rico e tem saúde: se ele perder os bens perderá também as virtudes. Precisaria ser testado! Deus o permite e Jó perde todos os seus bens. Apesar de perder tudo, inclusive os filhos, Jó não se revolta nem protesta; pelo contrário, até louva a Deus pela oportunidade de ser provado.
         Derrotado pela virtude de Jó, Satanás pede a Deus que o prove mais uma vez, tirando-lhe agora a saúde também. Deus o permite novamente, Jó ficou leproso. Sua mulher se revoltou e protestou contra Deus, perguntando por que um homem bom sofria tanto. Novamente Jó se conforma e responde-lhe, dizendo que se já recebera de Deus tantos bens por que não receberia também a infelicidade?
         E Jó perdeu tudo: os bens, a família e a saúde. E o povo dizia que seu sofrimento era castigo por seus pecados. Mas ele sabia que não era culpado.
         Três amigos dele vieram visitá-lo para consolá-lo. E deram também suas opiniões sobre as causas de seus sofrimentos.
         Os diálogos que o texto traz, reproduzem as perguntas que toda pessoa faz no seu íntimo sobre o problema da dor e do sofrimento:
quem os explica? O livro apresenta, então, diversas opiniões.
         Opinião do povo: todo sofrimento é castigo de Deus. Se a pessoa sofre, é devido aos pecados dela ou de outros.
         Opinião dos amigos de Jó: os três amigos dele representam a sabedoria tradicional, a teologia tradicional. São “teólogos”. Dizem eles: a tradição ensina que Deus é justo, por isso ele premia os bons e castiga os maus: “Pode Deus torcer o direito?Pode o Todo-poderoso perverter a justiça? Se os filhos pecaram contra Deus, ele já os entregou ao poder dos próprios crimes. Mas,  se você procurar Deus, se suplicar ao Todo-poderoso, e se conservar puro e reto, ele cuidará de você e o restaurará em sua legítima prosperidade” (Jó 8,3-6).
         Para Bildad, um dos amigos, Jó paga pelos pecados que fez. Deve converter-se a Deus. Essa é também a opinião de outro amigo, Elifás (5,8-1 1). Para o terceiro amigo, Sofar, Deus é bom. Não faz injustiça. Se Jó sofre é porque merece. Deus vinga-se somente dos maus e não dos bons como Jó (20,23-25).
         Outro amigo ainda, Eliú, diz que Deus tem razão no que faz. Até no sofrimento ele mostra sua bondade, pois o sofrimento educa o homem (36,3; 33,17-19). O sofrimento é remédio amargo, mas cura o pecador; Deus não o castiga por maldade (34,12).
         Finalmente diz Eliú que Deus não tem que dar  satisfação por aquilo que faz (37,23).
         Para os amigos de Jó, Deus é bondade e justiça; faz bem tudo o
que faz; não pode ser questionado e não tem satisfações a dar a
ninguém. O sofrimento enviado por ele é medicinal; muitas vezes o
homem o merece; outras vezes paga pelos outros; o homem sofredor
deve é converter-se a Deus!
Jó não aceita nenhuma dessas opiniões. Nem a do povo, nem a dos amigos. Tudo o que eles falam são coisas sabidas. Para defenderem a Deus  que envia sofrimentos ao justo, dizem que ele o faz por causa dos pecados cometidos pelo homem. Isso é mentira. Há pecadores que não sofrem;  então, não tem sentido alguém pagar pelo que não fez!
A atitude de Jó é a de negar as opiniões preconcebidas sobre o sofrimento e a de achar outra explicação para o problema. Essa solução ele vai pedi-la então ao próprio Deus.
         Nesse trecho do livro, o autor, através de Jó, dá alguns passos na elaboração da teologia do “mistério de Deus”. Quem é esse Deus com quem Jó vai falar? E um Deus que se cala (9,1 6ss), mas que está muito próximo. (Deus é chamado no texto de “Chadai”, que quer dizer “muito próximo”). É Deus paradoxalmente amigo e inimigo, presente e ausente, doação e abandono, recompensa e castigo!
         O autor retrata assim o conflito interior de Jó (e de todo homem) a respeito de Deus. “Ele não consegue fazer uma imagem coerente de Deus, por isso oscila entre a rebelião e a adoração, entre o desafio e a súplica. Suas respostas aos amigos nos fazem conhecer mais o caminho de um homem do que o rosto de Deus. Ou melhor, através da luta de Jó com Deus, semelhante à de Jacó, aprendemos a ‘conhecer’ as escuras profundezas e os abismos desconcertantes da experiência da fé. O Deus de Jó não pode ser circunscrito; foge a toda classificação simplista”.[11]
         Às perguntas de Jó, Deus responde com longo discurso sobre a sabedoria divina (38-41). Deus é quem fez o mundo onde existem lantos mistérios que nem Jó nem outra pessoa podem explicar. Mas todos eles têm sentido e lugar no conjunto da criação.[12]
         O livro termina dizendo que depois de ouvir a Sabedoria divina que se revela em tantos mistérios, Jó entendeu sua limitação como homem (40,4-5) Não será capaz de ultrapassar os mistérios de Deus: “Eu te conhecia só de ouvir. Agora, porém, os meus olhos te vêem. Por isso, eu me retrato e me arrependo, sobre o pó e a cinza” (Jó 42,5-6). Com isso o autor ensina que cada um de nós deve dar sua resposta diante dos problemas da vida à luz da fé. Não ficar pelo que os outros dizem; não ficar no “ouvi dizer”, mas entender, fazer a própria imagem de Deus (42,5). E preciso desfazer as idéias errôneas que se tem sobre Deus e construir a própria idéia a partir também da própria experiência.
         O autor não dá a solução para o problema do sofrimento, da dor, da justiça retributiva. Mas abre grande pista para a reflexão: Deus é amigo e se manifesta também no sofrimento; o sofrimento é mistério que ultrapassa nosso entendimento e pertence à Sabedoria de Deus. E grande insensatez culpar a Deus por tudo de ruim que acontece, como todos fazem; cada pessoa deve usar a sua experiência, inclusive a experiência da dor, do sofrimento, para chegar mais perto de Deus e vê-lo (42,5). Descubra cada um qual é a melhor solução, a melhor resposta para os problemas existenciais que encontra no seu dia-adia. Esse o sentido do livro.
         Para concluir: o livro de Jó não é, pois, livro sobre a paciência. E livro que discute grande problema existencial: existem a dor, o sofrimento, como também o sofrimento do inocente. De quem a culpa? De Deus ou do homem? Lançá-la a Deus é a coisa mais fácil, mais simplista e mais insensata. A dor e o sofrimento, também do justo, são mistérios que se inserem no nosso caminhar. Fazem parte do crescimento da pessoa. Ninguém tem a chave desse mistério. Somente Deus. O homem deve entendê-lo, procurar sua resposta e deixar-se conduzir por ele. “Deus é o mistério do amor e da vida, que cria e caminha com o homem, ajudando-o a conquistar a vida, O autor quer que o homem se liberte da prisão das idéias feitas para viver a vida real, cheia de experiências novas, onde está Deus presente”.[13] Essa é a difícil teodicéia que o livro ensina.

40. A Bíblia fala sobre a evocação dos espíritos e mostra que eles, de fato, podem “baixar”.

         O texto bíblico que pode dar maior motivo para tal interpretação está em lSm 28,3-25. É o famoso texto da consulta aos mortos feita pela pitonisa (adivinhadora) de Endor a pedido do rei Saul, disfarçado em viajante. (Para acompanhar a explicação é bom ler o texto citado)
         A humanidade sempre teve curiosidade em conhecer o além; sempre preocupou-se em conhecer o futuro. Procurou e procura  resposta nos astros (astrologia), no vôo dos pássaros ou em suas vísceras (enteromancia) , nas linhas das mãos (quiromancia), nos movimentos do pêndulo, nas cartas do baralho, búzios e em tantos outros possíveis sinais. Magos e adivinhos constituíram florescentes grupos antigos. A tônica de todos eles é a preocupação com o futuro, no sentido de decifrá-lo, conhecê-lo, ter enfim resposta sobre ele.
         No mundo antigo, um dos caminhos mais explorados à procura de respostas satisfatórias, foi o da “evocação dos espíritos”. Supunham os homens que os mortos podiam voltar, em determinadas circunstâncias, à terra dos vivos e responder às perguntas sobre o além. Na literatura oriental há muitos textos a esse respeito. E Israel cedeu também à tentação de querer conhecer o futuro por esses meios. Mas logo percebeu que isso não era possível; o futuro está nas mãos de Deus e o que Deus quiser revelar ele o faz pelos profetas e pelos sinais dos tempos. Consultar outros meios é coisa iníqua (Dt 18,9-22; Lv 19,31).
         A Bíblia, porém, relata um caso de “consulta aos espíritos dos mortos” (necromancia). Está, como dissemos, no primeiro livro de Samuel (lSm 28,3-25). Trata-se, como se sabe, do rei Saul que, abatido diante dos inimigos, resolve consultar uma vidente que evocava os espíritos para saber o que deveria fazer. Diz o texto que foi evocado o “espírito de Samuel”; Samuel apareceu a Saul, censurou-o por tê-lo perturbado com a evocação e garantiu-lhe que ele e todo o povo seriam entregues nas mãos dos inimigos; garantiu-lhe ainda que no dia seguinte ele e seus filhos morreriam!
         O que há de verdade nisso?
         A respeito da possibilidade de os “espíritos baixarem”, respondem a ciência e a teologia.  Podemos  ver alguns desses  elementos.
         A ciência tem mostrado que a mente humana tem forças físicas extraordinárias. A capacidade de a mente humana poder modelar e exteriorizar o chamado “plasma humano” é demonstrado pela parapsicologia. É o chamado fenômeno da ectoplasmia. A aparição de espíritos pode muito bem ser inserida no quadro das forças físicas e psíquicas da mente humana. É fenômeno parapsicológico. A telergia (palavra grega que significa literalmente: ação à distância) é fenômeno extranormal de “desagregação e liberação das forças motoras, plásticas, do homem, isto é, das forças físicas, corporais, embora dirigidas pelo psiquismo inconsciente”.[14]
         A ectoplasmia (palavra grega que significa literalmente: coisa modelada fora) é a exteriorização e condensação mais ou menos moldada ou moldável da telergia. A “aparição de espíritos” estaria nesse contexto; podendo, portanto, ser  cientificamente explicável.
         Antes de se aceitar pacificamente como fenômeno sobrenatural a “aparição de mortos”, é preciso consultar a ciência. E ela tem muito a dizer sobre isso.[15] O que aqui reportamos são apenas princípios elementares.
         Sob o aspecto teológico bíblico podemos dizer que o famoso episódio da “aparição” do espírito de Samuel a Saul (lSm 28,3-25) é inaceitável como fenômeno sobrenatural. Primeiramente porque não se deve buscar explicação sobrenatural para um fenômeno antes de se esgotarem todas as respostas naturais e científicas sobre o mesmo. Sem esquecermos ainda que a ciência progride, caminha. O que ela não explica hoje pode explicá-lo amanhã. Em segundo lugar devemos ter presente que a revelação de Deus se faz na História, conforme a Bíblia. Deus se revela a partir e através dos fatos. Neles é que o homem deve ler a vontade de Deus. Os acontecimentos da História são sinais reveladores da vontade salvífica de Deus. Não é necessária intervenção especial, miraculosa, de Deus para se revelar a cada homem.
         O episódio em questão pode ser explicado naturalmente. Não houve, de fato, aparição do espírito de Samuel. O texto deixa claro que Saul vivia drama pessoal muito grande; estava desgastado psíquica e fisicamente. Vivia atormentado, transtornado, neurótico (leia lSm 16,14-16; 18,10-12). Sentia-se isolado, solitário e desamparado. Estava aterrorizado diante dos seus inimigos (lSm 28,5); nem Deus e nem os homens o escutavam mais (28,6). Diante disso ele resolveu apelar para o mundo do além, na vã esperança de livrar-se de suas angústias, embora enganando-se. E apelou para algo que ele mesmo condenara (leia 28,3b). Para consultar uma “vidente” ele teve que caminhar muito, até Endor, passando pelos perigos dos acampamentos inimigos.
         O quadro psicológico negativo de Saul favoreceu a ação da vidente. Mas ela teve medo de “fazer o trabalho”, porque o rei já  proibira esse tipo de coisa (28,9). Obrigada por Saul, ela começou o “trabalho” e descobriu que seu cliente era o próprio rei. Com garantias de vida ela continuou o “trabalho” e, segundo o texto, pôs Samuel em contato com Saul.
         Mas o Samuel que foi evocado por ela, a pedido do rei, da “região dos mortos” e que conversou com ele, repetiu tudo o que já dissera em vida  o mesmo Samuel contra Saul (lSm 15,26-28). Ele censurara Saul, e suas palavras são repetidas aqui como se fossem as de seu espírito “evocado”. A “visão” que a mulher tem e a “profecia” que faz para Saul (28,16-19) eram coisas já conhecidas. Todos sabiam que Saul estava com os dias contados como rei. E ela entende melhor isso vendo o estado lastimável do rei. Por isso mesmo, depois de repetir que todos já sabiam, ela deixa sua farsa de vidente e assume o papel de pessoa humana compreensiva, carinhosa e prestativa, como toda pessoa pobre e simples: torna-se até enfermeira do rei (28,20-25).
         O episódio tem como finalidade salientar duas coisas: primei- lamente mostrar que Saul fora rejeitado por Deus e pelo povo; essa rejeição lhe fora comunicada por Samuel em vida ainda, e estava confirmada para sempre. Por isso o texto quer  sugerir que, mesmo morto, Samuel a ratifica. Em segundo lugar o episódio quer salientar a grande figura do novo rei Davi, que chorou amargamente a morte de seu rei Saul, rejeitado por Deus e por Samuel (1 Sm 13,8-15; 15,10-23) e reconheceu o grande valor de Saul que deu a própria vida pelo seu povo, na batalha dos montes Gelboé, juntamente com Jônatas, seu filho, e amigo íntimo de Davi (lSm 31; 2Sm 1).
         O relato não trata, pois, de “evocação” de mortos, e sim da rejeição de Saul, descrita dentro de recurso literário onde simbolicamente aparece novamente Samuel para ratificar tal rejeição. O autor usou na elaboração de seu relato a linguagem de seu tempo a respeito do mundo do além. Usa, por exemplo, a expressão “subir da terra” (v. 13), o que designava no judaísmo antigo o lugar dos mortos, o xeol. O xeol era o último lugar do mundo; estava abaixo do mundo das águas e era a habitação dos mortos. Os mortos estavam no xeol em estado de total passividade e inanição; aí não havia movimento nem sabedoria, nem pensamento. O texto de que tratamos lembra-o dizendo que Samuel estava ali em repouso (v.15).


        
Numa resposta curta e objetiva poderíamos dizer que o demônio existe e que sua existência não é invenção. Sentimos a sua força cada dia em nós mesmos e no mundo em que vivemos. A Bíblia tem uma palavra sobre isso, tanto no Antigo como no Novo Testamento. O demônio, porém, não é o tipo de ser que habitualmente pintamos ou em que acreditamos. Há,  alguns passos a serem dados para a compreensão mais exata do que vem a ser esse “espírito”.

         Os termos mais comuns para designar esse “espírito mau’ são:
demônio, diabo e satanás.
         O termo demônio vem da língua grega (= dâimon) e significa literalmente: espírito, semi-deus, deus (= ídolo). Esse termo ou seu congênere daimônion, designava nas crenças populares gregas, seres do outro mundo, geralmente imaginados como espíritos dos falecidos, dotados de grande força sobrenatural e que intervinham na vida do homem. Acreditavam que somente pela magia o homem podia livrar-se deles.
         A filosofia grega elevou esses seres à categoria de divindade (= deus), situando-os como intermediários entre os deuses e os homens.
         O termo diabo vem também da língua grega (= diábolos) e significa caluniador, acusador. Esse termo é usado no Novo Testamento sempre no singular. Os vocábulos demônio e espírito mau são usados também no plural. O vocábulo diabo é tradução grega da palavra  hebraica satan.
         O termo satanás na língua hebraica (= satan,) significa literalmente incomodar.  De modo geral tem o significado de acusador e de modo particular designa aquela pessoa que diante do tribunal faz o papel de advogado da acusação. [16]
         Todas as religiões antigas tinham a idéia da existência de seres sobrenaturais que influenciavam negativamente a vida do homem. Isso faz parte do patrimônio universal da humanidade.
         O que diz a Bíblia sobre isso?
         No Antigo Testamento
         Não existe crença definida sobre o demônio no AT. Há algumas breves alusões na linguagem popular, como, por exemplo, em lSm 16,14-15 onde é dito que um “espírito mau”, proveniente de Javé, assombrava Saul.  Há  outras referências a demônios, como no Deuteronômio: “Sacrificaram a demônios, falsos deuses... “ (Dt 32,17);  mas  aqui é  referência aos deuses pagãos, como o próprio texto explica. Para o AT todo mal que atingia o homem não era causado por demônio (como o entendemos), e sim pelo próprio Deus, que enviava aos homens os seus “anjos”. Uns faziam-lhe o bem (= os “anjos da guarda”), e outros faziam-lhe o mal (= os demônios).
         No judaísmo
         Muito forte, porém, no AT é a crença em satanás, o acusador. O substantivo satanás é entendido genericamente como referência a toda pessoa que se opõe a outrem (cf. lSm 29,4; 2Sm 19,23; lRs 5,18; 11,14.23.25 etc.). De modo particular designa um ser sobrenatural que acusa o homem perante Deus. [17]
         Essa idéia nasce no judaísmo tardio, isto é, no período que medeia o Antigo e o Novo Testamento. É nesse tempo que propriamente toma corpo a crença sobre o demônio. Mas vem da influência grega. O judaísmo tenta explicar a origem dos demônios. Os livros apócrifos (por exemplo, Henoc 53,3) descrevem os demônios como anjos decaídos ou como filhos de Deus que se casaram com as filhas dos homens. Essa idéia é conservada ainda em Gn 6,1-4. Satanás era identificado ainda com a serpente (Gn 3); por isso o livro da Sabedoria diz que “é  pela inveja do demônio que a morte entrou no mundo” (Sb 2,24).
         Muito conhecida é a passagem do livro de Jó onde satanás acusa o justo diante do trono de Deus (Jó 1,6-2,7). E um modo literário de falar -  como foi explicado  no n.º 39 sobre Jó.
         O AT tem conceito bastante elástico de demônio; todavia, mesmo não distinguindo bem entre o que Deus causa diretamente e o que ele permite, o AT chegou a identificar um princípio do mal que opera no mundo e tenta prejudicar o homem: é o satanás, o acusador, o prejudicador.

         No Novo Testamento
         A demonologia do NT tem raízes tanto na demonologia do AT como na do judaísmo. Mas o NT fala pouco dos demônios, com exceção dos casos de possessão demoníaca. Os demônios são chamados geralmente de “espíritos” ou de “espíritos impuros”. O NT utiliza também a linguagem simbólica da mitologia para personificar o mal; por exemplo, At 16,16 onde se fala de um “espírito de adivinhação que fazia oráculos”;  1Cor 10,20 onde Paulo diz que  “aquilo que os pagãos sacrificam, eles o sacrificam aos demônios”; também  Ap 12,9  “Esse grande Dragão é a antiga Serpente, é o chamado Diabo ou Satanás”; ainda em Ap. 18,2: “Caíu! Caíu Babilônia, a Grande! Tornou-se morada dos demônios”.
 Essa linguagem não implica em afirmações dogmáticas. O uso do simbolismo não compromete a concepção neotestamentárja de demônio, que parece sustentar a existência de espíritos pessoais maus.[18]
         O NT usa indistintamente os termos satanás e diabo para designar o espírito mau. Esse espírito mau é caracterizado como o forte (Mt 12,29; Mc 13,19; Lc 11,21), o maligno (Mt 13,19), o tentador (Mt 4,1; Mc 1,13; Lc 4,2). O seu poder é de trevas (Lc 22,53), e o exerce no mundo (Lc 13,16).
         O NT deixa claro que satanás ou o diabo estão sujeitos ao poder de Deus e serão definitivamente dominados (Ap 20,10; 2Pd 2, 4).[19]
         O conjunto de todos esses textos e de outros do NT levam a crer que os vocábulos diabo e satanás designam realmente um “poder do mal”, que muitas vezes é considerado um ser pessoal .
         À luz dos textos bíblicos, a doutrina tradicional diz que de fato o demônio existe e é um ser pessoal. Configura ele a absoluta antítese de Deus. São eles, diz a doutrina tradicional, anjos decaídos do céu por soberba.  Essa doutrina tem base na tradição religiosa hebraica apenas, como nos citados livros, o apócrifo de Henoc (Henoc 53,3;) e no NT as cartas de Pedro e Judas (2Pd 2,10-12; Jd 6)..
         A doutrina tradicional da Igreja ensina ainda que “há espíritos maus pessoais, mas insiste no fato de que eles são maus por sua própria vontade e não por criação”.[20] A Bíblia mostra que é certa a existência de espíritos malignos, diz Mckenzie, mas não a explica.[21]
         O que diz a teologia hoje?
         A teologia não muda verdades; ela ajuda a esclarecer a compreensão de um dado teológico. Neste caso, o que a Bíblia quer revelar com as figuras de diabos, demônios, satanás?
         Os textos teológicos  que debatem essa questão são muitos,  encheriam até uma biblioteca. Sem pretender fazer síntese do  pensar teológico sobre esse tema poderíamos dizer o seguinte:
         Existem forças destrutivas no mundo que seduzem o ser humano e se mostram às vezes como irresistíveis. Isso é demonstrado pela experiência comum da humanidade. São Paulo também fala isso em Rom 5,12-21 e  7,7-25. Ele diz que há uma força operativa do mal que domina a humanidade e da qual ninguém pode escapar. Chama essa força de “hamártema”, palavra grega que significa o “pecado geral”  ou atmosfera contaminada  de mal que respiramos.  (O pecado pessoal ele o chama de hamartía)
         De onde vem essa força operativa do mal?       
         Essa força vem do próprio homem; tem sua origem em seres livres e pessoais. Elas não são forças maléficas da natureza, pois isso responsabilizaria Deus pelo mal. “Por outro lado, a reta  razão e a revelação
não permitem responsabilizar uma determinada pessoa pelo mal no mundo, nem sequer por alguns deles, de forma isolada. Porque mesmo os causadores de males horrendos são também vítimas de forças sedutoras” [22]
         A revelação bíblica ensina que o ser humano é um ser chamado desde sua origem à relação com Deus, ao diálogo com Deus, um ser que nasce pelo Espírito da Palavra criadora de Deus.  Esse diálogo com Deus envolve necessariamente o diálogo com todos os irmãos.
         “É a perversão desse diálogo que se torna essa força destrutiva e sedutora; essa força é chamada na Bíblia de Satã, Inimigo, Adversário, Acusador. Ela tem, de alguma forma, caráter pessoal, isto é,  não existiria sem as pessoas. Não pode ser uma força da natureza. Mas sendo “pessoal”, não pode contudo identificar-ser com nenhuma dessas pessoas isoladamente.”[23]Se Jesus  chama Pedro de “satanás”; isto quer dizer que Pedro, naquele momento, fazia o papel de satanás tentando atrapalhar a vida de Jesus (Mc 8,33).  Ele representava, no momento,  uma força operativa do mal, deixando-se seduzir por uma  forma de pensar “humana”.
         Teólogos notáveis de hoje, como o cardeal W.Kasper, J. Ratzinger (Bento XVI), R. Marlé entre outros,  ensinam que o demônio não é uma pessoa mas sim uma não-pessoa; ele é o antipessoal, aquilo que arruína o ser pessoal e por isso é característico de sua natureza apresentar-se sem rosto. O mal não tem rosto. Diabo, Satã (ou o diabólico, o satânico como a teologia diz hoje), vem a ser  aquela máscara que disfarça o conjunto das forças concretas, destrutivas da pessoa. J. Ratzinger (Bento XVI) diz  que podemos conceber  os demonios como o conjunto de poderes maléficos que estão entre os homens e  pervertem suas relações pessoais. “O diabo não é uma figura pessoal, conclue W. Kasper, senão uma não-figura que se dissolve em alguma coisa de anônimo e sem rosto. Não se pode atribuir-lhe o conceito de pessoa; o diabo, o demônio são a perversão da dignidade pessoal.
Em todo caso, “ não é fácil, diz Ruiz de Gopegui, conceber que tipo de ser deve  ser atribuído a esse “entre” ao qual se nega de um lado o “ser pessoa” e doutro se nega que seja uma simples adição de “eus” humanos e uma personificação do mal. “Por isso as figuras de Satã, Diabo, Demônio, Pecado, Dragão, Serpente,  ajudam a penetrar na profundidade abissal do mal enquanto negação de Deus por um ser criado à imagem de Deus. Para compreender o mal nas suas dimensões físicas, sociológicas, psíquicas e outras semelhantes, essas figuras seriam dispensáveis. Para o compreender na sua dimensão “teológica” elas são imprescindíveis.”[24]

         E por que aparece tanto a figura do demônio?

         As figuras do demônio, diabo, satanás têm origem em livros apócrifos judaicos, como foi dito.  Eles criaram a concepção de satanás  como um ser criado bom, um anjo bom, que depois se perverteu e pecou. O Concílio de Latrão IV, combatendo o maniqueismo do tempo, que ensinava que tudo o que é material não foi criado pois Deus,  declarou solenemente que todos os seres espirituais e corpóreos foram criados por Deus e que o Diabo só podia, portanto, ser uma entidade  espiritual, criado bom por Deus  mas pervertido depois pelo pecado. Também os outros demonios foram criados como anjos bons na sua natureza mas que depois, por si mesmo, se tornaram maus Os teólogos  nunca conseguiram explicar essa  concepção de “anjos decaídos”.  (O Catecismo da Igreja Católica mantém essa a hipotese!)
         O citado teólogo Ruiz de Copegui lembra que a Revelação nunca afirmou que alguma criatura esteja irremissivelmente condenada para sempre. Afirma que para ser salvo o ser humano deve  ter responsabilidade nos seus atos e não rejeitar a graça divina.  Se o diabo e os demônios são seres que estão condenados definitivamente também não saberíamos explicar  por que são capazes de agir no mundo, se  Cristo  já venceu os poderes do mal com sua morte.

         Uma conclusão teológica
        
         É inegável a presença no mundo de uma força operativa do mal e que se opõe vigorosamente ao bem. Uma força que se faz sentir a nível pessoal e social e que é antítese de Deus. São Paulo chama essa força de “o deus desse mundo” (2Cor 4,4). O domínio desse deus é claro no mundo e é exercido sobre o homem. Ele é o “homem mais forte” (Mc 3,27). O homem torna-se submisso a esse deus toda vez que opta pelo mal e se faz escravo do pecado (1Jo 2,8.10).
         O demônio é o poder do mal que atua no mundo tentando o homem (1Cor 10,13; 7,5; Lc 22,31) e se manifesta sob diversas formas. A Bíblia, como foi dito,  não  afirma que devemos crer nos anjos decaídos. E nem  explica a origem do mal no mundo. E nem pode explicar. A Bíblia faz a constatação que nós também fazemos, isto é, que existem forças negativas que atuam na vida do ser humano.  E  lhes dá  um nome ou vários nomes: diabo, demônio, satanás e até procura identificar sua origem fazendo-os anjos decaídos, conforme  certa tradição apócrifa. Mas podemos dar-lhe outros nomes e outras explicações. O que não podemos negar é a existência da força do mal  e sua influência no mundo e sobre as pessoas, pois isso nós o sentimos a cada dia como também vemos o mal que age no mundo.
         Sabemos, porém, por outro lado, que há uma outra força: a força operativa do bem que nos veio pela ressurreição de Jesus. A ressurreição de Jesus é a garantia de vitória sobre o mal. Com sua morte e ressurreição ele venceu o poder das trevas (Jo 12,31); o homem está salvo, mas ainda não; isto é, ele deve cooperar para sua salvação e a salvação do mundo, fazendo frutificar os germes da ressurreição de Jesus. Ele pode vencer em si mesmo essa força solicitadora do mal pela graça de Deus, pela oração, pelo jejum, pela fé (Rm 16,20; Ef 6,11). Esse poder do mal, atuante no mundo, será definitivamente vencido no final dos tempos. Ele perderá toda a sua força (Ap 20,10) e Deus, então,  será tudo em todos (lCor 15,28).


[1] Cf. Enciclopedia della Biblia (Turim, LDC, 1969), vol.3, col. 1394 – 1395.
[2] A. Van den BORN, em Dicionario Enciclopédico da Bíblia (Vozes, Petrópolis, 1971), verbete “Raab”, col. 1267.
[3] J.L. RUIZ de la PEŇA, Teología de la creación, p. 24.
[4] C. MESTERS, Deus, onde estás?, p. 40-41.
[5] M. NOTH, Storia d´Israele (Paidéia, Bréscia, 1975), p. 215.
[6] F. BUCK, em La Sagrada Escritura, BAC, AT/II (Madrid, 1967), p. 317.
[7] Cf. F.-ELMAR WILMS, I miracoli nell´Antico Testamento (EDB, 1985), p. 279-283.
[8] Cf. F.-ELMAR WILMS, op. cit., p. 287.
[9] C. MESTERS, Deus, onde estás? p. 49-55.
[10] C. MESTERS, Deus, onde estás? p. 58.
[11] A.BONORA. Il contestatore di Dio (Marietti, Turim, 1978), p.53.
[12] C. MESTERS, Deus, onde estás? p. 105.
[13] I. STORNIOLO-E. M. BALANCIN, Conheça a Bíblia (Ed. Paulinas, São Paulo, 1986), p. 89-90.
[14] O.G. QUEVEDO. As forças físicas da mente (Loyola, São Paulo, !978) vol. I, p. 47.
[15] Para maior conhecimento deste tema cf. O. QUEVEDO, op. cit, p. 21-60 e 221 293.
[16] A. Van den BORN, op. cit., verbetes “demônio”, col. 365-366 e “satan”, col. 1396.
[17] Uma curiosa tradição hebraica diz que Satanás acusa o homem todos os dias perante Deus, exceto um: o dia nacional da grande Penitência ou o Grande Perdão (Yom Kippur). De fato, se forem somados como números as letras hebraicas que formam a palavra ha-satan (o acusador) a soma obtida é 364! (cf. A. PRONZATO, Un cristiano comincia a leggere il vangelo di Marco ( Torino, 1979), p.57, nota 3).
[18] Cf. J. MACKENZIE, op. cit., verbete “demônio”, p. 227.
[19] Id., verbete “satanás”, p. 853.
[20] cf. J. MACKENZIE, op. cit., p. 227.
[21] Ib., p. 47. 
[22] J.A.RUIZ DE COPEGUIAs figuras bíblicas do diabo e dos demônios em face da cultura moderna”, em Perspectiva Teológica, ano XXIXX, setembro/dezembro 1997, p. 337.
[23] J.A.RUIZ. DE GOPEGUI, op,cit, p. 337
[24] (cf. J.A.RUIZ DE GOPEGUI, op. cit.337-340 passim).

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