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sábado, 31 de março de 2012

TEXTOS FREI MAURO STRABELI (MARÇO 2012): "O PENTATEUCO" - Capítulo 01 a 39:

                               O PENTATEUCO  

                              Escolas de Teologia para Leigos



INTRODUÇÃO                                                                                                          

O presente trabalho foi elaborado como subsídio para os alunos dos Cursos de Teologia para Leigos.  O Pentateuco é visto em linhas gerais. O livro de Gênesis é tratado em particular. As aulas sobre ambos os temas devem sempre ser acompanhadas  por explicações exegéticas e pastorais por parte  de um assessor. Peço desculpas porque o texto, como apostila, é um pouco extenso!  Fico aberto  a sugestões e correções.

I -  O PENTATEUCO 
1-      O nome
            A palavra Pentateuco vem da língua grega: penta =  cinco e têucos = estojo, rolo ou livro. Assim, Pentateuco quer dizer: os cinco rolos, cinco estojos ou tradicionalmente: os cinco livros.
Antigamente os livros eram escritos em rolos de pergaminho e eram colocados  em estojos. Os cinco livros a que se refere a palavra “Pentateuco” são os cinco primeiros livros da Bíblia, que são: Gênesis, Êxodo, Levítico,  Números  e Deuteronômio.  Esses nomes são gregos e foram dados a esses livros pelos tradutores gregos da Bíblia, por volta do ano 250 antes de Cristo. Essa tradução é chamada  “Tradução dos Setenta” ou LXX, porque conforme a tradição (lendária) foram setenta rabinos que fizeram a tradução do Pentateuco, do hebraico para o grego. Eles deram a cada livro um  nome que indicava  o conteúdo narrado  por eles.  Desse modo, Gênesis, que em grego significa origem, é o livro que narra as origens do universo, do homem, da mulher, do bem, do mal e do Povo de Deus. Êxodo, que em grego significa saída, narra a história do Povo de Deus que lutando conseguiu libertar-se do poder do Faraó do Egito e caminhando pelo deserto chegou à Terra prometida: Canaã. O livro dos Números, que em grego se diz aritmói,  narra os recenseamentos feitos, faz estatísticas,  descreve roteiros de viagem,  fala dos conflitos internos etc. Esse livro continua a história começada com o livro do Êxodo. Retoma a história a  partir da parada do povo ao pé do monte Sinai (Nm 10,11-36,13) e narra-a  até  o povo chegar à entrada da  Terra prometida. O livro do Levítico tem esse nome em referência a Levi, um dos filhos de Jacó ( Gênesis 29,34).  A tribo dele (tribo de Levi) ficou encarregada do culto e  do santuário. Era a tribo sacerdotal.  Por isso o livro, que trata de temas e leis litúrgicas chama-se Levítico. Finalmente o livro do Deuteronômio; Deuteronômio em grego significa literalmente segunda lei, trata da atualização da lei de Deus, ou seja a aplicação  da lei  ao povo de Deus  já assentado, instalado na terra.  Mais do que  “segunda lei” a palavra  “Deuteronômio” significa atualização, interpretação, aplicação da Lei.

[ Apenas como informação cultural:  em hebraico, língua oriental em que foram escritos esses livros, os nomes são dados pelas primeiras palavras com que cada livro começa. Assim, o Gênesis chama-se em hebraico Bereshit, que significa  “No princípio”, pois essas são as primeiras palavras do livro.; o Êxodo é chamado We’elleh shemôt, que significa  “Esses são os nomes”; o Levítico é chamado  Wayyqra’ que significa  “E chamou (Javé)”; o livro dos Números  chama-se Bemidbar que significa “No deserto” e o Deuteronômio chama-se ‘Elleh haddebarîm, que significa: “Essas as palavras”. ]



            Originariamente os cinco livros do  Pentateuco formavam um livro só, chamado tradicionalmente pelos judeus “livro de Moisés” (Neemias 13,1),  “Lei de Moisés” (2Crônicas 23,18) ou simplesmente  “Lei” (Neemias 8,2). Em hebraico o Pentateuco é chamado Torá, palavra que significa “ensinamento”.  No Cristianismo nascente (Novo Testamento)  a Torá começou a ser chamada  Lei,  conservando a essa tradição  escrita dos antigos. Daí as citações dos evangelistas: “Lei de Moisés, profetas e salmos” (Lucas 24,44), ou  “Lei e profetas”  (Mateus 5,17)  ou apenas “Moisés” (Mateus 22,24). E Paulo também trabalha muito o tema da “lei de Moisés”.
            As traduções modernas da Bíblia foram feitas a partir dos textos originais hebraicos e gregos. Os nomes dos livros foram dados pelos tradutores gregos da Bíblia chamada   “Bíblia dos LXX”, como foi dito acima.

2. Conteúdo do Pentateuco
O conteúdo do Pentateuco é essencialmente histórico-legislativo. Fala da história do povo hebreu e das leis que regiam esse povo. Cada livro do Pentateuco, porém, vai desenvolver esse binômio (história-lei)  a seu modo. Tanto a história narrada quanto as leis, se baseiam na concepção teocrática do povo ( teocracia quer dizer força de Deus), e aqui significa que o povo,  suas leis e sua história  têm Deus e seu poder como  fundamento. A História é dirigida por Deus e as leis dadas ao povo também vêm de Deus. ( Isso é a “concepção teocrática”)
Desse modo, o Gênesis prepara  essa história falando de Deus criador de  tudo, de Deus que escolhe os patriarcas do povo,  que escolhe seu povo.
O Êxodo continua a história mostrando que esse povo começa a organizar-se no Egito por uma série de circunstâncias, principalmente pela opressão exercida  sobre ele pelos poderosos do país. Deus  é o centro referencial de todo o livro do Êxodo, porque aí vem revelado seu nome: “Eu sou aquele que sou”  (Êxodo 3,14),  o que em hebraico significa  “Eu sou a Vida” “Sou Aquele que faz ser”.  O Êxodo narra a luta do povo hebreu por sua libertação, pela  dignidade de vida.  O povo faz uma aliança com esse Deus libertador, que o arranca do Egito e o leva pelo deserto e o instala numa terra  fértil, com segurança.  Fica assim estabelecido o regime teocrático em Israel.
O Levítico,  por sua vez,  expõe e explica a legislação teocrática de Israel  (o Decálogo, ou Dez Mandamentos),  dando normas detalhadas  sobre a vida religiosa, o culto e a vida comunitária.
O livro dos Números completa  história teocrática narrada pelo Êxodo. Retoma a história depois do capítulo 20 do Êxodo e dá orientações para o povo  sobre a caminhada pelo deserto.
Finalmente, o livro do Deuteronômio: este adapta a lei teocrática, os Dez mandamentos, para seu povo (mas já um povo assentado na Terra prometida)  e narra a aliança feita entre Deus e seu povo, agora  em Moab (Deuteronômio 29).
[NB. Cada livro do Pentateuco estudado em particular)

3. Origem do Pentateuco
Não é possível saber quem é o autor do Pentateuco. Simplesmente porque o livro não é obra de um autor.  Fica claro pela análise crítico-científica  do livro que ele é uma obra escrita a várias mãos,  uma obra coletiva, uma coletânea de tradições religiosas, históricas e legislativas de várias épocas e que foi escrito bem depois dos acontecimentos aí narrados.  Além do que não existe nenhum documento histórico, nenhuma referência histórica sobre a autoria do livro.  O Pentateuco seria como um grande rio formado por vários afluentes.
Todavia, a tradição hebraica,  (inclusive o Novo Testamento) sempre considerou o Pentateuco como uma obra de unidade literária e atribuiu sua autoria a  Moisés (por ex. Ex. 17,14; 24,4;34,27; Nm 33,2; Mt 8,4; 19,8; Mc 7,10; 12,26; Jo 5,45-47).  E essa tradição permaneceu até o século 17. A partir de 1700, estudiosos da Escritura, católicos e protestantes, mostraram que era impossível ser Moisés o autor do livro. Quem  por primeiro propôs essa questão foi o padre francês Richard Simon,  religioso oratoriano,  falecido em 1712. Ele foi muito contestado, combatido e transferido para um lugarejo pobre e distante de Paris.
O médico francês  Jean Astruc ( +1753) , continuando as pesquisas provou que a redação do Pentateuco não tem unidade literária nenhuma, mas é uma redação muito complexa, com elementos legislativos e históricos pré-mosaicos, mosaicos e pós mosaicos ( ou sejam  que procedem de tempos antes de Moisés, do tempo de Moisés e  de tempos depois de  Moisés). Ele mesmo deu alguns exemplos, o principal deles a descoberta que fez de que a redação sobre a criação é uma duplicata, um dublê  (Gênesis 1,1 – 2,4a e Gênesis 2,4b – 25). E há outros casos de dublês como, por exemplo, os dois relatos sobre a aliança de Deus com Abraão ( Gênesis 15 e 17), os dois relatos sobre a expulsão de Agar (Gênesis 16 e 21, 9-21); os dois relatos sobre a vocação  de Moisés(Êxodo 3,1 – 4,17 e Êxodo 6,2 – 7,7).  O Decálogo é relatado duas vezes também (Êxodo 20,2-17 e Deuteronômio 5,6-21).  Nos relatos bíblicos  da criação Deus é designado com dois  nomes diferentes: Javé, num e Eloîm noutro.  E há uma  série de outras razões  por que o Pentateuco não pode ter sido obra de um só redator e muito menos de Moisés;  por exemplo, a citação de leis que não existiam nos tempos de Moisés (leis de culto, de pureza legal, sobre o santuário...);  há fatos históricos narrados que são anacrônicos, isto é, estão fora do tempo, como por ex., a  informação  histórica de  Gênesis 36,31: :  “antes que os israelitas tivessem um rei”.   Essa informação prova que já havia rei em Israel quando o texto foi escrito... A monarquia em Israel começou, porém, com Saul e Davi, pelo ano 1030-1000 mais ou menos,  ou seja, uns dois séculos depois de Moisés. Há ainda o relato sobre a morte de  Moisés (Deuteronômio  34), que certamente não foi escrito pelo próprio;  a expressão: “país dos hebreus” usada às vezes no Pentateuco (por ex. Gn 39,14; 41,12; 43,32; Ex 2,11; Dt 15,12 etc.)  é uma expressão dos tempos de Samuel (1Samuel 13,3). Samuel viveu no século X aC., nos tempos de Saul e Davi.
Muitas hipóteses foram propostas, discutidas, publicadas, tentando explicar a origem do Pentateuco.  Nenhuma delas, porém, comprovada definitivamente. Abriram caminho apenas. Acredita-se que esse problema dificilmente será resolvido. É um problema que afeta a crítica e não a fé. Nesse sentido, a discussão sobre a autoria do Pentateuco, seria uma questão não muito relevante. Acadêmica apenas. Todavia, são apresentados aqui alguns aspectos da Crítica contemporânea sobre o Pentateuco.
Dentre as hipóteses publicadas e aceitas pela Crítica hoje, as duas principais são essas:
1.ª) Hipótese dos fragmentos. Foi proposta pelo estudioso escocês Alexander Geddes (1792).  A base de sua proposta estava na diferença do nome dado a Deus: Javé
e Elohim. Segundo ele, existiriam  inúmeros e pequenos relatos esparsos como também pequenos textos isolados, sem uma continuidade narrativa, que foram depois reunidos por um  ou vários redatores, dando assim origem ao Pentateuco.
De fato, antigamente não havia livros, mas  fortes tradições orais que  lentamente foram  passadas para a escrita em pequenos textos. Essa hipótese é possível, mas  até agora não comprovada.
2.ª) Hipótese documentária das Quatro Fontes, ou Tradições.  Essa hipótese é a mais aceita entre tantas outras e dá certa explicação  sobre a redação do Pentateuco, inclusive classificando os documentos ou tradições. É  mais conhecida como  Hipótese das Quatro fontes,”.  Tem suas raízes nos estudos críticos do  citado padre Richard Simon, francês (+ 1712) , continuou com o médico humanista Jean Astruc e foi estruturada  na atual Hipótese por Julius Welhausen (1844-1918)., teólogo e biblista alemão. Segundo a Hipótese de Welhausen, o Pentateuco  nasceu de quatro tradições (ou fontes)  que estão muito claras no texto. E as expõe:
n uma tradição nascida no sul do país, chamada tradição Javista porque usa no texto o nome “Javé” para Deus. É designada pelos estudiosos com a letra  J  ( de Javé; nome dado a Deus no sul).
n Outra tradição, do norte, chamada Eloísta - porque usa sempre o nome hebraico Eloîm para Deus. É designada pela letra E  (de Elohîm = nome de Deus no Norte do país).
n Outra tradição, chamada Deuteronomista, porque usa muito a lei, ou a atualiza as leis. É designada pela letra D ( de Deuteronômio). Tal tradição nasceu no norte, no tempo dos profetas e foi levada para o sul quando a cidade da Samaria  (no norte)  foi destruída no ano 722.  O texto foi colocado no Templo de Jerusalém. Mais tarde, quando o rei Josias mandou reformar o templo (2Reis 22,3) esse texto jurídico-legislativo foi descoberto.
n Finalmente a tradição Sacerdotal. É chamada sacerdotal porque tem a inspiração dos sacerdotes. Ela é designada  pela letra P (da palavra alemã Priestercodex = código sacerdotal).  Essa tradição  desenvolveu no exílio da Babilônia (587-539). Parece que essa tradição, ou os sacerdotes, é que fizeram a redação final do Pentateuco.
Desse modo teríamos quatro fontes ou quatro tradições na origem do Pentateuco: J, E, D, e  P.
Segundo os especialistas fonte J (javista)  surgiu  no sul entre os séculos X e VII aC.; a fonte E (eloísta) surgiu no norte, entre os anos 900-700 aC.; a fonte D (deuteronomista) surgiu antes do exílio, entre os séculos VIII-VI aC. Provavelmente no norte e a fonte P (sacerdotal), no tempo do exílio da Babilônia no século IV aC (587-539). A redação do Pentateuco é colocada no século IV aC., no pós-exílio. Foi feita pelos sacerdotes].
Embora tenham surgido até recentemente novas teorias sobre a origem do Pentateuco, hoje em dia aceita-se a hipótese de Welhausen  a mais viável e confiável.
O importante é que o Pentateuco foi formado pelo povo de Deus, sob a inspiração de Deus. Fica para os estudiosos pesquisar o “como” foi escrito.

4.  Conteúdo específico geral de cada livro

GÊNESIS:      1— 11:           História das origens
                        12—25,18       História de Abraão
                        25,19—36       História de Jacó e José
                        37,1-50           História de José
ÊXODO       1—6             História de uma libertação. Javé na História e na vida do povo
                        7—11             A luta pela libertação: as Pragas
                        12-18              A libertação. O sinal: a Páscoa
                       19—20            Os dez mandamentos (Decálogo): base para a nova  sociedade


                          (Os capítulos 20,22 a 23,33  trazem o chamado  Código da Aliança. Do cap. 24 ao 31 o livro não trata mais do êxodo; são acréscimos  posteriores, como são também acréscimos  também os capítulos  35-40. Os  capítulos 32-34 são do êxodo.

LEVÍTICO      1—7             Leis sobre os holocaustos, oblações e sacrifícios pacíficos.
                          8—10           Leis  sobre o sacerdócio
                          11—15         Leis sobre a pureza legal ( = Marcos 7,1-23)
                          16                 O Dia do grande Perdão (Yom Kippur)
17—26         A Lei da Santidade    (A lei do talião = Mateus 5,38-42; o jubileu)
NÚMEROS     1,1—10,10    Conflitos na organização do povo
                          10,11--26      Continuação da história narrada pelo Êxodo até o capítulo 20
                          27—36         Acréscimos posteriores                     
DEUTERONÔMIO: 1—11 Capítulos introdutórios (discursos). (O capítulo 6: shemá = o centro do relacionamento com Deus  é o amor. É preciso ouvi-lo).
                          12—26         Centro do livro. É o código deuteronômico
                          27—30         Capítulos conclusivos
                          31—34         Apêndice

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II.  O LIVRO DO GÊNESIS

1.   Observações preliminares

            Um Deus todo poderoso e Criador

            A história da origem do ser humano e do mundo cosmológico vem narrada na Bíblia pelo livro do Gênesis, nos onze primeiro capítulos. Não é uma narração científica, mas a expressão de uma cultura, uma resposta às indagações do homem bíblico acerca da vida e do mundo. Por isso mesmo tais narrações são limitadas pelo horizonte cultural daquele tempo. Não somente cultural, mas também teológico, sociológico e histórico. E é dentro dessa moldura que é preciso encaixar, estudar  e interpretar a “História das origens” segundo a Bíblia.
            Os dois primeiros capítulos traz uma dupla redação: uma, chamada sacerdotal  e a outra, javista.  A primeira redação vai  do capítulo 1,1 até o capitulo 2, versículo  4ª. É chamada sacerdotal porque foi elaborada pelos sacerdotes. A segunda é chamada javista por usa o nome de “Javé” para Deus. [Em hebraico há várias expressões para designar Deus : Javé, Elohim, El Shadai, Adonai, O Nome e outras].
            O homem sempre perguntou pela origem das coisas, do mundo e  pela sua própria origem. Até hoje perguntamos. Cada povo ou cultura religiosa primitiva ou antiga  respondeu a essa pergunta  a seu modo e dentro de sua cultura. Na antiga Grécia também os seus filósofos procuravam a origem das coisas e do homem. Para uns, a origem de tudo era o ar (Anaxímenes), para outros, á água (Thales de Mileto).
            Os antigos povos sumério e babilônio, também responderam a essa pergunta, e atribuíram a origem de tudo aos deuses. Foi uma resposta politeísta. O povo hebreu não admite a idolatria, a mitologia.  A resposta que dá para a origem das coisas e do homem não é mitológica, mas a da fé num Deus único, Poderoso, Senhor da história e Criador. E usa na descrição das origens a cosmogonia popular de seis dias, falando dos céus, abismos, terra, astros, água, animais. [Por isso fala da criação do sol depois de ter falado que já havia dia]
            Os conceitos, as idéias teológicas da narração bíblica são também totalmente contrários aos conceitos das religiões antigas quando falam das origens das forças celestes. A teogonia do povo babilônico, vizinho de Israel, ensinava, porém, que havia dois princípios divinos que deram origem às coisas: um, masculino, chamado Apsu (o deus das águas doces), e outro, feminino, chamado Tiamat (deusa das águias salgadas). Ambos, submissos ao deus maior chamado Marduk. Para o povo hebreu, porém, as forças celestes não são deuses e nem a criação é divina. Essa postura bíblica é uma verdadeira desmitização (ou desmitologização). Tal postura pode ser considerada verdadeiro avanço científico para aquele tempo. Tal concepção avizinha a Bíblia das concepções dos filósofos  jônicos gregos considerados ateus por tentarem explicar a origem das coisas  sem recorrer  à mitologia. A concepção bíblica e a concepção grega avizinham-se de uma concepção pré-científica.
            Todavia há uma grande diferença entre os sábios gregos e os escritores bíblicos. Para os sábios gregos a “physis’ (natureza) substituía os deuses; para a Bíblia, é um Deus único e Poderoso quem cria.pois foi a partir
            Para a Bíblia, a criação é a primeira intervenção de Deus na História. Todavia, a não é a criação o fundamento da fé de Israel, pois a fé do Povo de Deus está baseada na sua aliança com um Deus libertador, que o tirou do Egito. Mostrou-se poderoso. Se ele era todo-poderoso, era também o Criador. Por isso na reflexão bíblica o Gênesis é posterior ao Êxodo.
            Por outro lado, se a criação é a primeira intervenção de Deus na História  e se Deus sempre intervém por  meio dos eventos, acontecimentos que se sucedem,  segue-se que a história é sagrada, não por narrar  os acontecimentos vividos pelo Povo de Deus, mas por ser o lugar da intervenção de Deus, o lugar onde Deus fala.

             A criação: ângulo da visão bíblica
            Antigamente o relato da criação não trazia nenhum problema, pois  se consideravam como realmente históricos os acontecimentos aí narrados. Também na Idade Média a narração bíblica não suscitou muitas dúvidas. A narração era considerada alegórica.
            Hoje, porém, a ciência coloca dificuldades quanto à historicidade da narração é  demonstra o caráter anticientífico de muitos fatos narrados. A visão bíblica e a visão moderna quanto à  criação   são  diferentes e opostas.
            Segundo a Bíblia, a criação foi uma obra perfeita: “Deus viu que era bom” (Gn 1,25) e “ Deus viu que  tudo o que havia feito e  tudo era muito bom” (Gn 1,31). O homem aparece perfeito, feliz. O pecado é colocado como causa da queda desse estado de perfeição e felicidade.
            Segundo a ciência, a perfeição não é própria das origens; nas origens há imperfeição. A perfeição pode ser alcançada através da  evolução. A perfeição a que se refere a Bíblia se pode ser posterior às origens; nesse sentido, o pecado original não foi queda  de um estado de perfeição , mas um passo à frente, um conhecer mais, um evoluir para a liberdade. Foi uma “queda para cima” (Kant).
            Se a narração bíblica era, até o século passado, um documento oficial da Igreja sobre as origens, hoje não mo é mais. A terra, como é sabido,  não é o centro do universo – como o demonstraram  Galileu e Copérnico; o homem é um elo na criação, do imperfeito para o perfeito e não algo já consumado – como o mostrou Darwin. E como dizia Heráclito, tudo é um eterno devir; o homem hoje não é perfeito, é homem em devir.
            A narração sobre a criação era interpretada antigamente, pelos Santos Padres (patrística) ao pé da letra, literalmente. A exegese medieval interpreta a Escritura alegoricamente , ultrapassando o sentido literal, buscando o”espírito” da narração.
            Hoje, com o progresso científico, com as grandes descobertas arqueológicas, com os estudos e conclusões da crítica literária, histórica, textual, contextual e conquistas no campo exegético e hermenêutico, ficou claro que a narração bíblica não é algo excepcional e único, mas é um escrito religioso que se insere no contexto cultural  do Antigo Oriente.  E todos os relatos religiosos sobre a criação do mundo e do homem, naquele ambiente cultural, vêm caracterizados pela linguagem mítica. O mito não é uma mentira ou um “faz de conta”, uma lenda, mas é uma narrativa que tenta explicar tradições, mistérios da vida, crenças religiosas de difícil compreensão O mito une o homem de ontem e de hoje.  É uma primeira resposta do homem a um problema difícil., a uma indagação humana. É uma primeira forma de filosofia.
            Hoje a História, a exegese e a hermenêutica bíblicas mostram que o Gênesis é composto de relatos baseados na experiência especulativa do povo hebreu numa cultura de base religiosa monoteísta, e que são transmitidos pela tradição, pelas sucessivas gerações. Os relatos procuram dar uma resposta sobre a origem e os mistérios do mundo e da vida..
            O livro dá resposta, a seu modo, a problemas humanos, cosmológicos, antropológicos, sociais e que sempre preocuparam a humanidade, como por ex. a origem do mundo, do ser humano, do mal, a origem dos povos, do povo de Deus etc.
            Os relatos sobre essas questões são feitos pelo Gênesis numa ótica (intenção) religiosa, teológico-simbólica, isto é, mostrar que tudo o que existe foi criado e por  um Deus criador e na liberdade do ser humano criado. Não é um relato científico, mas sim teológico, dentro de um gênero literário mítico, simbólico e cultural. O Gênesis não é o único  relato sobre as origens de tudo. Os gregos já tinham seus mitos a respeito das origens do mundo e do ser humano. A mitologia grega é um monumento de sabedoria e cultura.

            Muito importantes são os mitos da cultura mesopotâmica. A Mesopotâmia (Babilônia)  tem relatos  sobre as origens muito semelhantes aos do Gênesis São hoje conhecidos os de  “Atra-Hasis”,  “A epopeia de Gilgamesh” e o poema “Enuma Elish”  Em resumo:
            1.   “O Mito de Atra-Hasis” (= o muito sábio).  Ele é o heroi do dilúvio. Constroi um barco para escapar da inundação, embarcam ele, sua mulher e a família de sua mulher, bem como muitas espécies de animais.  Cai o dilúvio. Quando acalma, eles solta uma pomba, uma andorinha e um corvo.  A  barca parou sobre um monte. No final da história, ele e a  mulher são transferidos para a ilha da imortalidade.
            [Semelhança com Gênesis: narração do dilúvio: barca, famílias, animais, inundação, aves: pomba, andorinha, corvo, monte].
            2.         “A epopéia de Gilgamesh”.  Trata de um heroi lendário do povo mesopotâmico, que teria vivido entre 2500-2300 aC. Um texto desta epopeia foi encontrado na biblioteca de Asurbanipal  rei da Assíria, (sec. V aC).  O poema é em sumério e trata do dilúvio. Tem 12 cantos. O de n. 9 narra a viagem de  Gilgamesh à procura da imortalidade. Transpôs montanhas e vales e chegou  às águas do rio da morte. Consegue ultrapassá-las e alcança a ilha encantada onde está um seu antepassado chamado Ut-Napishtim (também chamado de Atra-Hasis, que quer dizer “o muito sábio”), que morava aí com sua mulher, tendo alcançado a imortalidade.  Este, revela a Guilgamesh o segredo da “planta da vida”. O heroi  consegue a planta, mas ao voltar, uma serpente lhe rouba a planta da vida e lhe diz que  seu destino é morrer. [Semelhança com Gênesis: imortalidade, planta da vida, serpente, morrer (pecado)].

            3.  O poema “Enuma Elish” (= Quando no princípio”). É um poema babilônico-acádico do século XIV aC, composto em honra do deus Marduk. Era recitado no templo nacional por ocasião do Ano Novo babilônico – quando tudo recomeçava, como noiva criação. Conforme o poema, no  princípio havia o caos, confuso, indistinto; o universo primitivo é constituído pelas águas doces (personificadas pelo deus Apsu e pelas águas  salgadas (mar), personificadas pela deusa Tiamat. Desses dois princípios nasceram todos os deuses, que são as forças cósmicas. Os homens são criados para servirem  aos deuses. Marduk mata Tiamat e de seu corpo dissecado faz o universo. O homem foi criado  com argila e com o sangue do deus EA, que foi vencido e morto. [Semelhança com o Gênesis: Título: “Quando no princípio” = “No princípio...” (Gn 1,1); o tema: a criação; caos, mundo veio da água; homem criado com argila e sangue divino (= ruah bíblico); a criação do mundo].

            [Outras culturas: índios tupi-guarani; povos karajás,  povo yoruba]

            Gênesis hoje: ângulo da ciência
             Se o homem e as culturas sempre se preocuparam em tentar responder às questões existências do ser humano sobre a origem do universo, da vida e da morte, do bem e do mal, hoje em dia não é diferente. O homem continua indagando.  O homem  pesquisa hoje também para entender e explicar a origem do universo e da vida, mas armado com os instrumentos científicos e tecnológicos de que dispõem a moderna ciência. Nesse ponto, o homem de hoje procura fazer de modo científico o que o mito já fez na história das religiões em linguagem simbólica: dar a razão de nossas questões existenciais. De modo que  nesse sentido “o mito é o precursor da ciência” (Nakanose, p. 40). Por isso quanto aos mitos de origem, a ciência e a religião chegam hoje a decisões parecidas.
            O que pergunta o homem hoje sobre a origem do universo?
            - De que é  feita a matéria?
            - Como funciona?
            - Por que as partículas têm massa?
            - Há outras dimensões no espaço?
            - O que são a matéria escura e a energia escura que compõem 96% do universo mas que não conseguimos enxergar?
            - Há partículas instáveis que surgem e desaparecem em frações de segundo mas que são fundamentais para entender como funciona o universo.

            Tentando encontrar caminho para as respostas o homem construiu uma máquina: o Grande Acelerador de Partículas. Pretende estudar a estrutura elementar da matéria que compõe o universo.
            O principal propósito desse Grande Acelerador de Partículas (Large Hadron Colider ou LHC) é encontrar o chamado “bóson” de Higgs. (bóson vem de Bosen, cientista indiano).  Bóson vem a ser a partícula fundamental, o elo perdido, para a construção do universo (São conhecidas 16 partículas). Mas sem essa, acreditam os cientistas, não existiriam ar, água, terra, seres vivos! O LHC tentará dar a resposta. Tentará reproduzir os fenômenos que sucederam ao Big Bang, que foi  a “súbita expansão” inicial que originou o universo.
            Esse grande Acelerador foi construído entre a Suíça e a França a uma profundidade de cem metros; o aparelho tem 27 quilômetros de extensão e 25 metros de altura. Foram gastos mais de 9 bilhões de dólares na sua construção.
            A experiência foi sempre adiada e aconteceu dia 13 de dezembro de 2011. E segundo os jornais “os cientista anunciaram terem encontrado sinais da chamada “partícula de Deus” (O Estado de S. Paulo. A16. VIDA. 14 de dezembro de 2011).
            Fabíola Gianotti, chefe do Projeto Atlas, diz: “não encontramos nada por enquanto” (ibidem).  E Guido Tonelli, um dos líderes do projeto, diz que com tudo isso os pesquisadores conhecem apenas uma fração do funcionamento do universo e que vai levar  mais de cinqüenta anos para descobrir a utilidade dessas pesquisas (ibidem)
            Como se vê, o homem quer, a todo custo, conhecer a gênese do mundo e de si  próprio.  A Bíblia diz que Deus criou, num ato único. Não diz o “como”.  Essa tarefa é da ciência. “As soluções científicas modernas para o nascimento do universo, a origem da vida e o surgimento da humanidade muitas vezes parecem extraídas de passagens bíblicas...  O fato de as metáforas religiosas        guardarem tantas semelhanças com as descobertas recentes da ciência  talvez reflita os limites da capacidade da mente humana de lidar com assuntos dessa magnitude. Dado determinado problema, pode-se  chegar a conclusões parecidas com instrumentos científicos ou simplesmente pelo raciocínio dedutivo – como o fez Santo Agostinho. A diferença básica ente ciência e religião está em outra esfera:  as coisas  não ocorrem sem uma causa – como disse Einstein. E todos os ramos da  ciência compartilham dessa convicção. Já o pensamento religioso acredita que a causa de qualquer acontecimento ou fenômeno pode ser simplesmente a vontade divina. No princípio era a partícula (procura a ciência). Essa Partícula não é Deus? diz a religião. (cf. VEJA. 25 de junho 2008. Encarte especial, Um olhar  sobre o início de tudo p. 73-131).

2.      Gênesis. Conteúdo do livro

Capítulos 1—3 (mundo, Adão/ Eva/ opção-pecado)
Criação do mundo, do homem, da mulher; o bem e o mal, a opção livre (pecado). O sentido da vida humana, o sexo, a família.
Capítulos 4—5  (Caim/Abel, Lamec. A violência na família e sociedade)
Centro da história: transmitir às gerações futuras a imagem de Deus nas relações sociais. O futuro não pode estar na violência.
Capítulos 6—9 : (Dilúvio)
Uma nova criação: dilúvio é caos. A segurança está em Deus. Voltar ao projeto de Deus. Aliança.
Capítulo 11 (Torre de Babel. Globalização)
A pretensão humana, a auto-suficiência. Depois do dilúvio o homem  volta a querer construir um império opressor (globalização): “chegar até  Deus”, como em Gn 3,5: “sereis deuses”. Javé dispersa. A diversidade de línguas e a dispersão são concretização da bênção de Deus: cai Babel, surge Israel (Gn 12).
Capítulo 12,1—25,18: História do patriarca hebreu Abraão, pai do povo
Capítulo 25,19—36 :   História dos patriarcas Isaac e Jacó
Capítulo 37—50 :        História de José (Canaã e Egito. Ponte para Êxodo





1.ª PARTE .  Gênesis  1—11 : a história das origens

 Capítulo 1.º
 A narrativa é feita pelos sacerdotes em esquema literário de sete dias para ressaltar o  sábado; Deus fala dez vezes, realiza oito obras e é repetido por seis vezes o estribilho: “E Deus viu que era bom... (e) muito bom” e Deus “descansa no sétimo dia”.

Esquema:
1.º dia:            -           Luz
2.º dia             -           Firmamento
3.º dia             -           Terra-mar e  ervas, árvores, sementes
4.º dia             -           Sol-lua-estrelas
5.º dia             -           Seres vivos e pássaros
6.º dia             -           Animais domésticos e répteis; o homem e a mulher.
7.º dia             -           Deus terminou a obra, descansou, abençoou.

O verbo criar aqui usado (bará, em hebraico) é aplicado somente a Deus. Nunca indica “criar do nada”, mas quer indicar que a criação depende de Deus; ele ordenou tudo, renovou tudo. A criatura depende de Deus, portanto não é divina – como ensinavam os mitos da Mesopotâmia (como o mito chamado “Enuma elish”). A Bíblia não está ensinando que Deus criou do nada; mesmo porque de nada, nada se cria.  Tudo depende de Deus.
Céus e terra  é uma dualidade bíblica. Não indicam mais de um céu. Para os hebreus os céus eram formados pelo  “céu  morada de Deus”  e o firmamento  que vemos (astros). A expressão  designa a totalidade da criação, ou o cosmos. Deus criou tudo, o universo todo.
Terra informe e vazia: é uma expressão para dizer que a terra era desabitada e  sem condições de vida;  era um caos.  A ação de Deus elimina o caos e deixa a terra em condições de ser habitada. Deus elimina o caos fazendo coisas positivas (criando)
 As trevas que cobriam  a terra  ressaltam a condição do não-ser, do vácuo, do vazio que era a terra antes de Deus iniciar sua ação. Trevas/abismo é uma dualidade negativa que reforça a condição da terra antes da ação de Deus.
O espírito de Deus pairava sobre as águas: espírito significa vento, alento de Deus. Em hebraico se diz ruáh. Aqui indica o sujeito da criação, Deus,  que com sua força, seu alento controlava a situação caótica.
[As águas: é um plural em hebraico porque nessa língua designa dois tipos de água: as águas de cima (chuvas, neve, orvalho) e as águas de baixo (rios e  mar).
No primeiro dia Deus cria a luz. Para os antigos nada podia sem feito sem a luz do dia. Por isso para criar, Deus faz primeiramente a luz.  Para eles a luz era algo diferente do sol e da lua; por esse motivo o sol e a lua são criados depois. Importante notar que Deus cria por sua Palavra. A palavra é elemento fundamental na criação (Deus fala dez vezes) Isso tem a intenção de mostrar que as coisas não derivam de Deus, não emanam dele (como ensinavam os mitos orientais) mas são criadas por sua vontade, por sua palavra. Portanto as coisas são diferentes de Deus. Entre o criador e a criatura há uma diferença ontológica (isto é: de essência, de ser). A Luz era considerada pelas culturas vizinhas como divindade.  Aqui o texto demitiza isso: a luz não é divindade mas criatura de Deus.
Deus separou: a luz das trevas:  isto é faz distinção, elimina o caos que fundia tudo. Luz é luz, trevas são trevas. Ambas estão delimitadas: cada uma num campo, nos limites traçados por Deus. A criação de Deus não
E dá-lhes novo nome: dia e noite. Dar nome significa na cultura oriental e na Bíblia, dominar, ser senhor. Deus domina os elementos.
Deus viu que a luz era boa: é um  juízo de avaliação; correspondia à sua vontade.
No segundo dia Deus cria o firmamento. A criação do firmamento tem a finalidade de organizar o caos que estava em estado primitivo de confusão. Deus começa remediar isso criando o firmamento. Ele terá uma função: separa as águas superiores da inferiores. Ele será chamado céu. Para os antigos o firmamento era uma abóbada sólida; ela impunha limites ao caos. Acima dela ficavam o “céu” de Deus, e as águas caóticas (chuvas, dilúvios, tempestades); abaixo do céu de Deus  ficava o firmamento e sob o firmamento ficavam as águas “de baixo” (fontes, rios, mar). As tempestades aconteciam quando as águas conseguiam romper a barreira da abóbada. O firmamento é chamado céu.
[Obs. Confira o desenho de como seria a concepção bíblica, popular de firmamento, segundo Gênesis – O desenho está no fim do texto)
 No segundo dia Deus diz “exista” e não diz “faça-se” como no versículo 1,  em hebraico. O autor bíblico quer  mostrar  que a  ação criadora de Deus procede de sua Palavra: ela sempre realiza o que Deus diz.
 Houve uma tarde e uma manhã:  isto é Deus delimita, estabelece limites.  (Embora o sol ainda não  tenha sido criado; mesmo assim o autor diz que houve tarde  e manhã, o que mostra que seu esquema não é científico, mas religioso, popular.  O fato de dizer “tarde e manhã” e não – como nós – “manhã e tarde”  deve-se ao costume oriental de contar o dia a partir do pôr do sol).
Terceiro dia: nesse dia são narradas duas obras: a separação das águas ( terra/mares) e o dom da vida. Primeira obra: Deus ajunta as águas e dá-lhes o nome de mar; e a parte seca é chamada terra.   Dar nome, chamar, significa ter o domínio sobre o criado. Deus avalia:  “Viu que era bom”, isto é correspondia à sua intenção e finalidade. Segunda obra: a vida. A vida aparece na sua forma mais simples, ínfima, para o autor: é a vida  vegetal.  Para o autor e seu povo, esse tipo de vida não tem néphesh  (= néfech). Néphesh vem a ser o respiro, operações vitais. Para eles, somente os homens e os animais respiravam; as plantas, não.  Notar que não é Deus quem cria as plantas, mas  é a mãe-terra: “que a terra produza...”. Ela produz pelo poder de Deus.. [Aqui autor deixa transparecer o mito antigo da “mãe-terra” que é o princípio feminino, fecundado pelo princípio masculino (Deus) e tornando-se assim  capacitada para gerar (“cio da terra” – conforme a música popular).
E Deus viu que era  bom, isto é correspondia à sua intenção. Manhã e tarde: limites do dia.
Quarto dia: criação dos luzeiros: o maior, o sol; o  menor, a lua. Eles serão os sinais para marcar os dias e as festas. É Deus quem determina suas funções. Eles são criaturas de Deus. Nas religiões antigas os astros eram deuses. [Lembrar que a astrologia era muito forte nos povos antigos; acreditavam eles (e muita gente hoje) que os astros é que dirigiam  suas vidas, pois eram deuses. Para a Bíblia, não;  são criaturas de Deus.  A Bíblia purifica o mito (desmitiza).
Há também aqui uma avaliação: Deus viu que era bom; e há limites:  manhã  e  tarde = quarto dia.
Quinto dia:  A terra está pronta para  um tipo superior de vida: Deus cria os animais e depois, o homem.  Criação vai-se processando dentro de um arco ascendente. O vers. 20 diz que  apareceram os “seres viventes” ou seres animados. Eles todos têm a néphésh, isto é, vida, respiração.  Aqui são as águas que fazem aparecer os seres vivos; Deus as habilitara. E é Deus quem cria os pássaros – embora não apareça o verbo criar. Mas no vers. 21 aparece novamente o verbo bará, para sublinhar que é Deus o sujeito de toda criação (uma vez que na Bíblia esse verbo, com o sentido de criar, só é usado para Deus). Animais e aves são formas superiores de vida.
            Os animais marinhos são criados diretamente por Deus porque para as antigas tradições religiosas tais animais eram considerados monstros e como tais eram considerados também como semi-deuses. O povo tinha muito medo desses animais e do mar (ver por exemplo o salmo 148,7; Jó 7,12; Isaías 51,9; Amós 9,3 etc.). Esse texto do Gênesis  purifica essa crença ao afirmar que é Deus quem cria tais animais, por isso eles não são deuses, mas criaturas.
Sexto dia: nesse dia Deus faz duas obras: cria os animais domésticos e as feras e em seguida o homem. Os animais domésticos e feras não são criados diretamente por Deus mas pela mãe-terra. O animal depende da terra, por isso ela é sua mãe, segundo a concepção oriental. Deus porém está à base  da criação (vers. 25). Aqui não aparece a bênção de Deus para essa forma de vida porque ele já a abençoara na sua forma inicial (vers. 22) e voltará a abençoá-la na sua forma mais evoluída, máxima, que é o homem (vers. 28).
Criação do homem: é a segunda obra do sexto dia, e é a mais importante. Diferentemente  de tudo o que fizera anteriormente ao criar, Deus  parece que toma aqui um conselho, faz uma pausa para tomar uma decisão: “Façamos o homem...”.  Não se trata de um plural politeísta que exige muitos sujeitos (vários deuses).  Segundo a exegese hebraica, aqui  se trata de um recurso literário, usado pelo autor, para sublinhar que a ação que Deus vai operar agora é a mais importante do seu projeto (até agora Deus vira que tudo o que criara “era bom”; agora o que ele vai criar será “muito bom”).   Então antes de criar o homem e a mulher, que serão senhores da criação, Deus  convoca e chama todas as criaturas já criadas, bem como todos os  anjos da côrte celeste para que assistam a criação.  Esse plural serve então para acentuar a dignidade e importância do homem e da mulher De fato, na Bíblia aparecem  anjos  que formam a corte celeste (serafins, querubins: Is 6,8; Jó 1,6). Seria um plural majestático.
Deus cria o homem (em hebraico é adam. Por isso muitas Bíblias traduziram por Adão, nome próprio; mas não é).  Deus criou os homens, ou o homem, o ser humano (homem e mulher);  é um nome genérico.
Imagem e semelhança: querem expressar a correspondência do homem e mulher com o modelo divino, com o projeto de Deus.  À sua imagem, em hebraico: be salmenu; essa expressão  significa sombra. O homem é sombra de Deus (como nossa sombra é imagem nossa). O homem é projeção de Deus. Deus é o original, o homem é sua cópia, xerox (!),   projeção. A expressão à sua  semelhança, em hebraico: kide mutenu, significa de fato semelhança, não igualdade, identidade.  Semelhança limita a primeira expressão “imagem”. É termo abstrato que indica a não-identidade do homem com Deus. Há diferença: Criador/criatura. Limitando o primeiro, afirma que o homem é sombra, imagem de Deus realmente,  mas não é  igual a Deus, não tem a identidade, a essência de Deus.  Então a expressão quer dizer que o homem é imagem no sentido de projeção, sombra,  carbono de Deus; mas não é  idêntico a ele; não há paridade na essência.
 A expressão mostra, ainda, por outro lado a dignidade do homem e da mulher.  O homem é imagem de Deus porque pode relacionar-se com ele, falar-lhe, ouvir-lhe a voz, ser livre;  entrar em comunhão com ele, ter autonomia, capacidade de decidir e até pecar. A interpretação segundo a qual  tal expressão  se refira  apenas ao aspecto intelectual do homem é uma criação de Santo Agostinho. Ele afirmava que é pela inteligência que o homem se diferencia de todos os demais seres.  É uma interpretação neo-platônica que sublinha a importância e excelência da inteligência (nous). A Escolástica (modelo de teologia e filosofia da Idade Média) perguntava se a imagem de Deus estava impressa no homem ( em latim: Utrum imago Dei sit in homine). A Bíblia já responde:  Deus fez o homem à sua imagem, e assim como o pai gera o filho  à sua imagem e o filho se assemelha ao pai, assim o homem a Deus. Essa interpretação bíblica desespiritualiza a expressão e sublinha certa concreticidade corporal, não no sentido material , mas no sentido de  possibilidade de relacionamento: ninguém pode relacionar-se sem corpo. Se o homem pode relacionar-se com Deus deve “ser como Deus”, isto é, ser sua imagem e ter  semelhança com ele.

A história da criação iniciada no capítulo 1  termina no começo do capítulo 2, no versículo 4. Esse versículo encerra a primeira narrativa da criação e começa a segunda narração. Por isso ele vem dividido nas Bíblias como versículo 4 a e 4 b (confira).
De fato temos duas narrações bíblicas sobre a criação: a primeira vai de Gn 1,1  até Gn 2,4 a .  Essa narração foi feita pelos sacerdotes no exílio da Babilônia  no século V aC. A segunda foi feita pelo povo no tempo do rei Salomão (séc. IX aC e mais tarde incorporada ao texto de Gênesis); ocupa o capítulo dois de Gênesis (Gn 2,4b-25).
O capitulo 1 termina dizendo que no sétimo dia Deus descansou.  Essa primeira redação (chamada Sacerdotal, porque feita pelos sacerdotes) quer insistir com o povo na observância do sábado, dia sagrado do Judaísmo. Para fundamentar essa observância religiosa os sacerdotes constroem a narração da criação em seis dias, fazendo Deus descansar no sétimo. Desse modo o povo deveria descansar no sábado (sétimo dia) porque Deus descansara. É claro que Deus não descansa e nem o mundo foi feito em seis dias.  O certo é que o mundo foi feito por Deus. Isso é o que a Bíblia ensina.  O  “como” o mundo foi  feito fica por conta da ciência e não da Bíblia. A Bíblia informa que tudo vem de Deus. O relato bíblico é um relato teológico, religioso e não histórico-científico.

Capítulo 2
Temos aqui a segunda narrativa da criação. A primeira, como se disse, foi feita pelos  sacerdotes. Essa, pelo povo. Por isso  essa segunda narração é bem diferente, é mais animada, popular, concreta.  Começa dizendo que havia muita seca, antes da criação. Então imagina o povo sofrido pela seca  que a criação começou com chuva. Chuva é vida.  O homem é criado da terra para encontrar água (v.6). A partir daí é possível construir um paraíso.
Nesse capítulo vem descrito o paraíso. Notar que à base desta narração está toda a experiência do hebreu, homem nômade, que vivia em contínua caminhada pelo deserto com suas famílias,  sem água, sem comida suficiente,  sem sombra de  árvores, com muito calor. Desse modo um paraíso para esse povo nômade seria um lugar totalmente diferente e contrário do tipo de vida que levava.  Assim é então descrito o paraíso  nesse capítulo:   é um lugar fixo, estável; é um  lugar cheio de árvores frondosas, bonitas e cheias de frutas boas de comer. Um oásis maravilhoso e eterno! Esse local é cortado por quatro rios, que o autor chama de Fison, Geon, Tigre e Eufrates. [Os dois últimos são conhecidos e ainda hoje banham o Iraque (antiga Babilônia); os dois primeiros não são conhecidos]. O importante para o povo não eram os nomes dos rios, mas a idéia que queriam transmitir:  o paraíso tinha água à vontade (Veja Eclesiástico 24,22-27).  O paraíso era  também um lugar cheio de pedras preciosas, com animais pacíficos e pássaros. Foi nesse lugar que Deus colocou o homem; ele deveria apenas cuidar desse jardim chamado Éden. O trabalho do homem era  sereno, tranqüilo, ecológico, verdadeira jardinagem à sombra de árvores, junto às muitas águas, e com a abundância de flores e frutas, pássaros e animais dóceis! 
Esse paraíso tem um nome: Éden.  Geralmente essa palavra é tomada como sinônimo de lugar bonito, agradável, paradisíaco. Mas a palavra em si mesma significa deserto. E tem sentido: Deus fez um paraíso num deserto (éden). Deus pode mudar radicalmente as coisas. Fazer brotar água e fontes até  num deserto (éden).  Por isso, éden não é um lugar geográfico, mas uma situação imaginária. É portanto pura perda de tempo  procurar o Paraíso perdido como  sendo um lugar geográfico. [Alguns “cientistas” norte-americanos, porém,  acreditam nisso! Certamente é um modo a mais de eles ganharem dinheiro].

O homem feito do barro (vers. 7)
 A primeira narração da criação diz que Deus formou o homem “à sua imagem e semelhança” (Gn 1,26), sublinhando tal expressão o caráter de espiritualidade do homem, sua semelhança com Deus, sombra de Deus, sua capacidade de relacionar-se com Deus, falar-lhe, ser livre.  Na segunda narração (Gn 2,7) o autor diz que Deus fez o homem “com a argila do solo”. Se a primeira narrativa sublinha o caráter espiritual, relacional, livre,  do homem em relação a Deus, essa segunda sublinha seu caráter de fragilidade, temporalidade. Ele não é somente espiritual, mas  é também terreno (argila, barro), frágil, pecador, sujeito à dor e à morte. Por isso o autor usando de uma comparação com o oleiro que molda com suas mãos tantas imagens e figuras, fala que  Deus fez o homem assim: ele moldou o homem do barro. Claro é que Deus não fez o homem do barro; a narração é simbólica e feita para mostrar esse caráter  de fragilidade e de dependência do homem de Deus:  ele foi criado e é  frágil, terreno,  quebradiço (barro).  O ensinamento bíblico não é,  pois, um ensinamento científico, mas teológico: o homem vem de Deus, depende de Deus, é pecador, fraco e limitado. Dessa maneira, o povo, com sua narração,  completa a narração dos sacerdotes sobre o homem:  o homem é uma unidade espiritual, relacional, eterna, mas também  carnal, temporal, limitada, dependente. Essa é a interpretação desses versículos tão bonitos, antropológicos e teológicos.

A mulher tirada da costela do homem  (Gn 2,21-24)
Quando a Bíblia fala da criação do homem deve-se entender que fala também da mulher. Deus criou o ser humano, homem e mulher. “Ele os criou homem e mulher”(Gn 1,27
O fato de a Bíblia falar da criação da mulher especificamente, tem duas finalidades ou  intenções: primeira, mostrar que não só o homem foi criado diretamente pela palavra, poder  e vontade de Deus, mas também a mulher (Gn 2,22); depois,  mostrar que a mulher tem a mesma dignidade do homem.
             Essa narração tem alcance antropológico, social e teológico muito grande,  a que nem sempre damos o devido valor e atenção: a Bíblia está defendendo a libertação da mulher da dominação do homem, inserindo-a na comunidade e dando-lhe direitos, (pois conforme a cultura oriental, mesmo a bíblica, o homem é dono da mulher). Por isso o autor insiste:  se Deus criou o homem, criou também a mulher. A mulher tem a mesma dignidade do homem e merece a mesma consideração, o mesmo respeito e  iguais direitos.
            Essa postura é de grande avanço social para aqueles  tempos bíblicos. [Por isso talvez  possamos dizer  que a  chamada “emancipação feminina” de hoje tem  suas raízes já no livro do Gênesis]
Para traduzir, então,  todo esse conteúdo teológico, social e antropológico o autor bíblico usa literariamente um ditado popular hebreu que designava a mulher em relação ao marido como “osso dos meus ossos, carne de minha carne” (Gn 2,23) - como  hoje dizemos a mesma coisa quando nos referimos à mulher em relação ao homem: “tampa e panela; “cara-metade”  etc. .
            Desse modo o autor bíblico mostra não só a igualdade fundamental entre o homem e a mulher como também  ressalta que entre ambos  sempre haverá uma atração físico- psicológica  de complementação que os leva a unirem-se no casamento, uma união estável, monogâmica: “os dois uma só carne” (2,24) e que não é possível  mais separar, sem que os dois morram!   É isso ele quer  dizer com as expressões “osso dos meus ossos, carne de minha carne,  e “tirar da costela”.

 Árvore da vida e árvore do conhecimento do bem e do mal (Gn. 2,9).
            Esse capítulo dois faz a mediação teológica entre os capítulos um e três. No primeiro capítulo vem descrita a criação do homem e no capítulo três vêm descritas as conseqüências da errada e misteriosa opção humana (chamada pecado original). O capítulo dois narra qual era a situação do homem e da mulher ao serem criados :segundo o  projeto de Deus, um vida de total felicidade. Para tanto Deus propunha a eles um teste ao mesmo tempo fácil e difícil para serem felizes para sempre: escolherem  sempre a felicidade. Isso vem indicado pelas expressões  “árvores da vida e do conhecimento do bem e do mal”.
            O teste de Deus era uma ordem expressa: para serem felizes deveriam não procurar a infelicidade! Coisa óbvia! Bastava seguirem a vontade de Deus que nada mais era do que a de fazê-los felizes, repetimos.  Mas o homem é livre e pode querer não ser feliz; ou ao menos pode  fazer a experiência de não ser feliz para ver o que pode acontecer!  Deus deixou ao homem a liberdade de fazer tal experiência negativa, mas alertando-o de que ele seria infeliz e morreria, se a fizesse. Aqui entra a misteriosa atração do homem para o mal.
            Toda essa ambivalência psicológica, espiritual, a liberdade humana, é designada aqui no texto com as expressões simbólicas  “árvores da vida e do conhecimento do bem e do mal”.
            Tais expressões são bíblicas. A sabedoria de Deus e a Lei de Deus são comparadas a árvores viçosas, na Bíblia.  Diz o livro do Provérbios:  “A sabedoria é árvore de vida para os que a adquirem...” (Pr 3,18);  “o fruto do justo é árvore da vida” (Pr 11,30) Ter a sabedoria é ter vida;. Por outro lado, a Lei de Deus é chamada na Bíblia “lei da vida.” Observar a Lei de Deus é viver, diz o salmo: “Jamais vou esquecer os teus preceitos, pois é com eles que tu me ensinas a viver” (salmo 119,93).. E diz ainda a Bíblia que o homem que cumpre a lei de Deus é semelhante a uma  “árvore viçosa plantada à beira das águas” (salmo 1,1-3).
            Tais explicações já nos indicam o caminho para uma correta interpretação de Gn 2,9.16-17): o homem saberá o que é o bem e o que é o mal por meio da Lei de Deus (árvore da vida); se observar a Lei de Deus e não fizer a experiência pessoal para saber o que é o mal  (árvore do conhecimento do bem e do mal) ele será feliz sempre; viverá. Do contrário, será infeliz, morrerá (2,17). Mas o homem não resiste. Vai mesmo fazer a experiência pessoal  tentando conhecer o mal!

            Deus dá ao homem o senhorio sobre os bens do mundo e sobre toda a criação Esse é o sentido do vers. 20 que diz que  o homem deu nome a todos os animais.  “Dar o nome”  é conforme o costume bíblico, ser senhor, ser superior. Não é um domínio de poder mas no sentido de não se deixar dominar pelas coisas criadas.

            Capítulo 3
            Esse capítulo está ligado ao capítulo 2,4b-25.. No capítulo primeiro de Gênesis vem narrada a criação do mundo, como se viu.  Essa primeira narração da criação vai até o capitulo 2,4a.
            Em Gênesis 2,4b-25  vêm narradas a criação do paraíso, do homem ea mulher e a situação de felicidade do homem e a mulher nesse paraíso. Esse era (e é) o projeto de Deus.
            Em Gênesis 3,1-7 vem narrado o pecado do homem-mulher.  É  descrito como se fez essa passagem do estado de felicidade (projeto de Deus)  para o estado de mal e infelicidade  em que o homem vive.
            Em Gênesis 3,8-24 é narrado o castigo pelo pecado. O autor vê as situações dolorosas de cada dia, os sofrimentos de cada dia,  a maldade das pessoas como um castigo  A situação que vivemos de sofrimentos, mal-estar, dor, morte,  deve ter uma explicação. Por que  tudo isso?
            O autor então responde que o responsável por  tudo isso  é o Adam . Adam  (ou Adão) não é nome próprio, mas um nome genérico: gênero humano,  homem-mulher.       No homem-mulher está a origem do mal. Se o homem provocou o mal ele deve agora tentar corrigir-se, voltar-se para o plano de Deus, converter-se. Assim ele poderá reconstruir o paraíso.
            A narração bíblica sobre o pecado e suas conseqüências  está neste capitulo (3,8-24). O autor fala dos males de seu tempo. O mal é o mesmo hoje. Só muda a cara. Quais os males que o autor detecta no seu tempo? São os que vêm narrados aqui.
            Ele constata, percebe, que existem contradições (ou ambivalências)  na vida,  e que não deveriam existir.
             Para ele, a primeira é o amor humano. O amor entre marido e mulher é bonito, apaixonado, bom. Mas no dia a dia  a mulher é dominada pelo homem, escravizada (3,16) e pergunta: por que?
            Depois, a própria vida:  o homem quer viver para sempre  mas tem que morrer, voltar ao pó (3,19) Por que?
            A maternidade: ter filhos é alegria, é perpetuar-se. Mas os filhos nascem da dor de parto, da tensão, do sofrimento;  a mulher muitas vezes morre ,  a criança morrem no parto!  Por que a morte está lá onde se origina a vida?
            A terra: deveria dar frutos, alimentos, e só produz espinhos, parece maldita, tem que ser duramente trabalhada (3,17). Por que?
            O trabalho: deveria ser uma tranqüila operação para providenciar o sustento; mas é duro, cansativo, exige muito esforço e rende pouco (3,18-19). Por que?
            A religião. Deus: por que  o homem tem medo de Deus, se ele é seu Criador? Por que o homem se esconde de Deus  quando faz o mal (3,10)?
            Esses  são  os tipos de males que o autor assinalou no seu tempo. Hoje são esses e tantos outros. Então ele pergunta: por que  existe o mal? E responde: porque o homem tem misteriosa tendência que o leva a não seguir a lei de Deus. A vontade de Deus nada mais é do que a felicidade do homem. Para que o homem seja feliz é preciso que observe alguns princípios morais, éticos, sociais, pessoais e comunitários. A Bíblia deu a esses princípios o nome de Deus Mandamentos. Outras religiões falam a mesma coisa mas de outro modo.
            O mundo não é feliz por que o homem não quis e não quer. Por que ele não quer?
            O autor monta uma história cheia de símbolos para tentar dizer por que o homem não seguiu desde sempre a  Lei de Deus. Esse erro fundamental de origem é chamado pecado original. Não no sentido de que o primeiro homem pecou e nós sofremos hoje as conseqüências mas no sentido de que todo homem tem uma misteriosa inclinação para o mal e o pratica sempre. Assim foi o primeiro homem e assim são os homens de hoje. Portanto, o pecado original não existiu mas existe.



            A origem do mal

            Com esse título as Bíblia trazem a história do chamado “pecado original”, ou o pecado do primeiro casal (Gn 3,1-24). Não é uma reportagem, é uma narração simbólica mas que traz a grande verdade histórica e teológica:  todos os homens pecam, inclusive o primeiro.
            O homem nunca aceita facilmente a vontade de Deus. Inclusive o primeiro. Ele quer fazer a sua experiência. Inclusive o primeiro. Quer ter a sua certeza, alcançar por si todo o conhecimento do bem e do mal. Essa experiência amarga é que a Bíblia chama de “comer da árvore do bem e do mal”. Para ser feliz bastava ao homem comer da “árvore da vida”, isto é seguir a vontade de Deus. A triste experiência do homem é narrada com muitos símbolos.
            - A serpente. É uma figura que simboliza a tentação. Por que? Porque no tempo do autor a religião dos cananeus (povo vizinho) era uma tentação para o povo hebreu. Porque era uma religião magia, idolátrica, permissiva, sem muitos compromissos éticos e praticava até a “prostituição sagrada” nos seus templos. Para os hebreus, que viviam sob a  disciplina da Lei  de Deus  (Dez Mandamentos), essa religião era de fato uma tentação. E essa religião tinha como símbolo a serpente  (porque era considerada símbolo da vida: ela descasca e aparece nova como também é símbolo fálico (órgão sexual masculino que gera a vida). A serpente era vista pelo Povo de Deus como símbolo de traição a Deus e de solicitação para o mal (perder a fé).
            O autor bíblico usa todo esse contexto cultural, mítico, religioso que envolvia a figura da serpente  para tomá-la como símbolo da tentação para o homem. O relato é chamado relato etiológico (etiológico quer dizer: narração feita para  explicar uma causa. Em grego, causa se diz “aitía”, donde vem a palavra: etiológico). [É claro que nenhuma serpente falou com o homem e nem fala].
            - A maçã. A Bíblia não fala da maçã mas de “fruto” (vers. 5).  A maçã mais tarde, quando apareceu a  apareceu a pintura bíblica clássica. Nas religiões antigas a maçã era considerada símbolo de tentação. “Comer o frutoi” ou a maçã quer dizer:  deixar a Deus e seguir a si próprio.
            - As folhas de figueira. Simbolizam o medo do homem depois de descoberto: é preciso cobrir-se, ou seja, o erro foi descoberto, era preciso tentar ocultá-lo (vers. 7). A nudez, descoberta depois de comer a fruta, é simboliza  a tomada de consciência  do homem e da mulher diante de Deus pelo mal feito.
            - Os passos de Deus. Antes de pecar, o homem recebia Deus ao cair da tarde (3,8)  e com ele conversava (= consciência tranqüila); depois do pecado o homem e a mulher têm medo dos passos de deus. Encontrar-se com Deus é ter que dar satisfação., é preciso fugir (vers.10). O homem e a mulher se escondem : reconhecem que são pecadores; preferem a  fuga ao diálogo.
            - A expulsão do paraíso.  O texto diz: “Javé Deus disse: ‘O homem se tornou como um de nós’ conhecedor do bem e do mal...”  As palavras  têm sentido majestático e não designam mais  deuses (como foi visto e dito em Gn 1 26). O sentido é este: Agora que o homem comeu o fruto,  isto é, fez a experiência (comer do fruto da árvore do bem e do mal)  ele sabe o que é o mal: é não seguir a  proposta de Deus, é ser infeliz. Não terá mais possibilidade de  “comer  da árvore da vida e viver”, isto é  viver para sempre, como Deus, mas  morrerá. A morte  é simbolizada pela expulsão do paraíso. E a impossibilidade de viver eternamente aqui é simbolizada pelos dois querubins que ficam à porta do paraíso impedindo  que o homem entre. (Esses querubins são figuras mitológicas da  religião da Mesopotâmia; estavam colocados à entrada do templo de Marduk, na Babilônia.).

             O  pecado (original).
            O  capítulo 3  do Gênesis trabalha um tema antropológico fundamental da vida humana: o pecado, a origem do mal, como o pecado entrou na história humana.
            Essa temática difícil e ao mesmo tempo maravilhosa é transmitida por meio de uma linguagem simbólica. Dizemos hoje que essa narrativa é um mito. Mito não no sentido de narração sobre  algo  irreal, fantasioso, inexistente, mas no sentido de pequena história criada para explicar uma tradição religiosa ou crença imemorial. (A palavra mito significa, em grego,  narração).
            A atual  “ciência dos mitos” diz que Gn 3 não é um mito como os demais (de outras culturas que procuravam com suas narrativas minimizar  a violência,  justificá-la e até  aprovar comportamentos  e costumes  questionáveis. Gn 3 quer mostrar como a violência, o pecado, entraram no mundo. Não é uma narrativa vazia mas contém um profundo conteúdo humano, uma verdade que expressa uma realidade humana. Não é também uma narrativa pessimista.  Eva, considerada no texto pela tradição machista do AT, como a culpada pelo pecado,  pela morte,  é ao mesmo tempo entendida como a portadora da vida,  esperança da vida. Eva quer dizer “mãe dos viventes” (3,20). Por ela a vida continuará e a descendência dela vencerá a morte (3,15).
            O texto de Gn 3 trabalha pois um drama humano: o pecado. Como o pecado entrou no mundo. Pela narração nós sempre achamos que o pecado entrou no mundo por causa de Adão e Eva. E nós todos somos vítimas do erro deles; o pecado deles passou para todos nós. Se  eles não tivessem pecado, nós seríamos hoje mais felizes.
            Esse tipo de reflexão é um recurso psicológico de transferência   inconsciente pelo qual atribuímos a outro a culpa de  nossos erros.  O pecado original não veio de Adão e Eva mas chega a Adão e Eva!  Esses nomes não são nomes próprios – como já foi assinalado acima -  mas indicam na Bíblia o Homem e a Mulher: Deus fez o Homem (adam= homem, em hebraico) e Eva (em hebraico: hawwah, de hiyyah = dar a vida).
            Os autores bíblicos, a partir da análise do mal no mundo e no seu tempo, concluem que o culpado por tudo isso é o adam, o homem. A narrativa com a qual querem explicar esse processo psicológico de tender e fazer o mal é simbólica. Nela entram todoos os componentes acima citado: a tentação nossa para o mal (= serpente); a crise para escolher entre o bem e o mal (sereis como deuses); o pecado cometido, a culpa e o castigo (reconheceram-se  nus, fugiram da face de Deus, fizeram tangas, não assumiram a culpa: (“foi a mulher que mês deste como companheira que me deu o fruto” (v.12); “foi a serpente que me enganou” (v. 13b).
            A tentação para o mal todo ser humano a tem. Há uma misteriosa tendência em cada pessoa para fazer o que não é agradável aos olhos do Senhor (pecado). Por que?  Os antigos filósofos já diziam “vejo as coisas boas e as aprovo, mas faço as piores”. (Vídeo  meliora  proboque, deteriora sequor).  E São Paulo vai dizer mais tarde a  mesma coisa: “Não consigo entender nem mesmo o que eu faço; ´pois não faço aquilo que eu quero, mas  aquilo que mais detesto... o pecado mora em mim. Sei que o be, não mora em mim, isto é em meus instintos egoístas. O querer o bem está em mim, mas não sou capaz de faze-lo. Não faço o bem que quero, e sim o mal que não quero.  Se faço aquilo que não quero, não sou eu que  o faço, mas é o pecado que mora em mim” (Romanos 7,14-20).
            O trecho esclarece que o pecado desintegra o sujeito. Ele permanece bom, como  Deus quer. Mas  a tendência para o mal o afeta no seu íntimo, na sua subjetividade. Essa é a situação de morte, da qual Paulo anseia libertar-se (7, 22-23)
            O livro do Gênesis diz que essa tendência para o mal está em todo ser humano. É uma misteriosa tendência de origem. Daí que se chama essa tendência de pecado original. Se nós a temos, nossos pais a tiveram, nossos antepassados também e assim até ao primeiro ser humano: ele também a teve, como nós a temos. Por isso o pecado (tendência) original não vem da Adão  e passa para todos nós,  mas vai de nós a Adão.
            O drama humano é esse: saber escolher entre o bem e o mal, seguir o projeto  de Deus que é  Vida  ou seguir o projeto da serpente (tentação) que é  morte. No livro do Deuteronômio Deus pede insistentemente a seu povo que escolha a vida e não a morte:
            “Veja -  diz o Senhor -  hoje eu estou colocando diante de você ávida e a felicidade e a morte e a desgraça. Se você obedecer aos mandamentos de Javé seu Deus, amando a Javé e andando nos seus caminhos... você viverá e se multiplicará. Todavia, se o seu coração se desviar e você não obedecer aos mandamentos eu hoje lhe declaro:  é certo que vocês todos perecerão... Eu lhe propus a vida ou a morte, a bênção ou a maldição. Escolha, portanto a vida, para que você e seus descendentes possam viver...” (Dt 30,1—19).

            O pecado original e o batismo
.           No ensinamento do Magistério Ordinário da Igreja o homem, criado na justiça, por tentação da serpente abusou de sua liberdade levantando-se contra Deus e querendo ser como Deus  (Gaudim et Spes 13,1). Por sua culpa, o primeiro homem, Adão, perdeu a santidade e a justiça originais recebidas de Deus, não só para si mas também para todos os seus descendentes. Rm 5,12). Por isso Adão e todo homem que vem a esse mundo encontram-se em estado de privação da justiça original
            Tradicionalmente falamos que o batismo apaga esse pecado original. Talvez  essa  formulação não seja adequada. Se entendemos como pecado original a tendência misteriosa  que marca todo ser humano que vem a esse mundo e o priva da absoluta isenção para o mal, evidentemente que o batismo não apaga tal pecado, porque mesmo depois de batizado o ser humano continua a pecar.

            Qual seria o fruto do Batismo?
            É dar-nos a salvação pela graça de Cristo (Rm 6 e 8). O batismo nos mergulha na graça da ressurreição de Cristo, cura-nos por dentro capacitando-nos de novo para o bem – apesar da fragilidade humana continuada. A salvação é o dom da justificação; a graça  é o dom de Deus dado pelo Batismo que orienta e determina a liberdade para o bem Não vivemos mais no egoísmo radical, determinados para o mal e sim vivemos a vida de Filhos de Deus. Esse dom, essa graça nos são infundidos pelo Batismo – fonte de salvação.  Pelo Batismo nos tornamos mortos para o pecado e vivos para Deus em Jesus Cristo (Rm 6,4.10) No Batismo revelam-se então o mistério do pecado e da graça redentora. O homem torna-se escravo da justiça (Rm 6,18) Jesus é então o segundo Adão de cuja morte e ressurreição nasceu a nova humanidade

Capítulo 4 : Rompimento da fraternidade  e  progresso da violência
            O bloco Gn 4-11 tratará da história do progresso humano, da civilização, não como relatos científicos mas como análise da estrutura da História, sempre dominada e marcada pela ambigüidade, violência, luta, competição, poder e morte.
            O capítulo 4 mostra que o  rompimento da fraternidade é a raiz de toda  violência e  .   que a violência gera sempre mais violência.
            O trecho 4,11-12 tem semelhança literária e doutrinal com o capítulo 3,14-19: ambos são história  de “culpa e castigo”:  Adão e Eva pecam, são castigados e a terra amaldiçoada  Caim  assassina Abel: é  castigado e a terra amaldiçoada (Veja os textos).
            Esse capítulo 4 começa com a  genealogia de Adão, que é interrompida com informações sobre alguns personagens e retomada em seguida. Desse modo, falando de Caim e Abel informa suas profissões. Mais à frente (vv. 17-26) informa sobre Henoc (v.17), Lamec (vv. 19-22 e  23-24), Set (v.25) e Enós (v. 26).
            O texto fala mais de Caim, Abel e Lamec.
            Caim (o nome é hebraico: vem do verbo qanah, que quer dizer  comprar, adquirir. Para o  autor bíblico um filho é dom de Deus, é “adquirido” de Deus e não de Astarte, a deusa  da fertilidade em Canaã (4,1).
            Abel – o texto não fala do significado de seu nome.  Alguns intérpretes dizem que o nome vem  do hebraico hebel, que significa desvanecer, desaparecer, acabar. E teria sentido com a história de Abel, porque ele foi assassinado e não teve descendência; sua descendência desapareceu, acabou. Outros dizem que o nome pode ser derivado  do sumério  ibila , que significa filho.
            VV. 4-5:  os sacrifícios de Abel e Caim -  Deus aceita o sacrifício de Abel e não o de Caim. O por quê pode ser deduzido do costume antigo de se oferecer a Deus os primogênitos dos rebanhos e o melhor entre as primícias da terra (Ex. 34,19-2—20,22.26). Abel, segundo o texto, cumpriu esse preceito; portanto,  a sua oferta foi aceita por Deus. A oferta de Caim foi rejeitada porque não ofereceu o melhor da colheita mas produtos do solo.
            É claro que essa legislação do Êxodo e do Levítico são coisas do tempo em que o povo já estava na Terra prometida; portanto nada tem a ver com o caso dos dois irmãos. O que vem relatado aqui é uma interpretação dos redatores para dar o porquê Caim é condenado: é condenado porque desde o início ele não era sincero nem com Deus; já enganava, como vai enganar o irmão em seguida. Deus aceita a sinceridade de Abel e rejeita a falsidade de Caim.
            O texto mostra ainda que a rivalidade entre cidade e campo já é coisa antiga, está no começo da história. Abel representa,na narração, o seminomadismo do povo hebreu, isto é a vida pastoril   quase nômade;  a vida deles (pastores)  consistia em girar pelas estepes, pelos campos; uma vida dura, nômade (a aplavra nômade cem do grego nomás que significa “aquele que muda de pasto”0. Ficavam, às vezes, pouco tempo por perto das cidades. Por isso se diz que eram semi-nômades
             Por outro lado,  Caim representa a agricultura – atividade que exige assentamento. A  cidade sempre   representa perigo; na cidade não se respeitam as mulheres (Gn 12,10-20; Gn 20)  nas cidades há seqüestros e guerras ( Gn 14,1-13);  Sodoma e Gomorra representam o tipo de cidades pervertidas (Gn 18-19); os moradores das cidades não são confiáveis (Gn 34) etc.
            A narrativa sobre Caim e Abel não pretende privilegiar  a história de dois irmãos, mas acentuar que a competição social existe desde sempre e sempre gera ódio e morte.  Competição e morte  são posturas condenadas por Deus cujo projeto é fraternidade  e vida (paraíso).
            A inveja é o móvel das rivalidades e conflitos. Para dizer isso, o texto fala que “Caim ficou muito  enfurecido e andava de cabeça baixa” (vers. 5);  andar de cabeça baixa é, na Bíblia (Jeremias 3,12), sinal de inimizade, de insatisfação, desejo de vingança. “Cabeça erguida, face levantada” – ao contrário – significa amizade, fraternidade (Números 6,26:  “Javé lhe mostre o seu rosto e lhe dê sua paz!”).
            Segundo a narrativa, Deus convivia com o homem no paraíso (Gn 3,8), por isso aqui na narração  Deus pergunta a Caim por que é que  ele anda cabisbaixo.? (vv. 6-7). E conclui que ele deve estar planejando algum mal (pecado). O pecado domina aquele que anda de cabeça baixa! (ver. 7). Caim vai ser dominado pelo pecado. O vers. 8 assinala a traição e a morte premeditada. O mais forte prevalece sobre o mais fraco, o injusto sobre o justo.
            Devemos notar aqui que a luta entre irmãos no começo da história de um povo é um tema comum na literatura universal. Os dois casos mais famosos e míticos são esses dois: Caim e Abel e Rômulo e Remo (na história de Roma). As lutas têm a finalidade de mostrar qual cultura é a mais importante: é agricultura ou o pastoreio?

            VV. 9-12: culpa e castigo. Esses versículos trazem o diálogo entre Deus e Caim. Deus pede-lhe contas. A resposta de Caim é a de todo assassino: “Não sei quem matou. Por acaso sou guarda?” . Isto é: não fora ele.
            Javé entra na história agora como vingador do sangue. Na cultura oriental do tempo, todo assassino devia ser assassinado! A vingança era instrumento legalizado nas culturas primitivas. Mas aqui, Deus não se vinga matando Caim, como exigia  a tradição. Pena de morte, não!  Essa é a diferença. Deus dá chance ao criminoso; não o mata mas  o condena e o expulsa da terra fértil. O que significa que todo assassino deve ser excluído da comunidade e penalizado duramente.  Aterra, para Caim, será amaldiçoada duas vezes agora: uma, pelo pecado de Adão (Gn 3,17) e a outra, pelo seu crime. Toda culpa merece castigo.
            V. 13.Quem matar Caim será vingado sete vezes. E Javé colocou um sinal em Caim...”.
            Como Adão e Eva  que se esconderam dos olhos de Deus quando pecaram, assim também Caim esconde-se por medo de ser morto (vv.13-14). O esconder-se de Adão e Eva é uma figura de todo ser humano,  de qualquer tempo, que faz o mal e tenta ocultá-lo. O primeiro casal fez isso  também, diz o texto; e Caim repete a nível de solteiro o mesmo que fizera o casal original.. Um e outro episódio não estão se referindo  a um primeiro casal que errara nas origens e nem a uma pessoa em particular (Caim) que errara assassinando.   O texto faz referência, sim,  á maldade como tal, à violência e conflitos  presentes em todos os âmbitos da vida humana, presentes também na vida  e no tempo dos redatores. O relato chama a atenção para a violência. Se for feita justiça com as próprias mãos, a violência jamais acabará.  É o que diz Caim nos vv. 13-14.. Ele é modelo de todo assassino: fugindo sempre e com medo, pois tem consciência do  mal que  fez; precisa viver  à margem da sociedade.
            A proteção de Deus a Caim é um modo de o autor falar que Deus não quer violência;  ele (Deus) podia matar Caim,  vingando Abel, mas não o faz, pois vibngança atrai vingança (v. 15) = “sete vezes”).

            O sinal em Caim.  Todo assassino tem medo de morrer. O assassínio de um irmão é um sinal negativo permanente  que marca a vida de um assassino. Deus põe esse sinal na vida de todos que matam (pois Deus defende a vida). O sinal faz sofrer e faz lembrar que ninguém deve matar, nem mesmo um assassino, pois com isso se estaria instituindo a violência, a vingança, a pena de morte. Quem mata o matador comete a mesma violência e o mesmo delito que ele cometera: elimina a vida, dom de Deus. Esse é o sinal de Deus: defesa da vida.
            O texto termina dizendo que Caim foi para a Terra de Nod. Esse nome é inventado a partir da palavra Nad, em hebraico, que significa vagar, andar pelo mundo, alongar... E o significo é esse: ele Caim não terá mais sossego. Todo assassino viverá uma vida errante, pois é expulso da fraternidade, da família.
            [Dizem historiadores que a tribo dos Cainitas, descendentes de Caim, era uma tribo feroz e por isso trazia um sinal de sua ferocidade : tatuagem  ou outra marca.  O texto talvez tenha usado isso para falar da marca que Deus pôs em Caim).

            VV. 17-26.  O progresso e a violência.
            Esses versículos constituem um conjunto de histórias antigas ajuntadas aqui com uma finalidade: mostrar que nas cidades sempre haverá clima de auto-suficiência, de rivalidades e competição. Por isso diz o texto que a primeira cidade foi fundada por Caim, violento e assassino. Cidade é sinônimo de violência.
            Os descendentes de Caim começam a construir as civilizações e o progresso. Aparecem as profissões e invenções. Com elas, também novos conflitos. Da descendência de  Caim surgem outros desvios e vícios: a poligamia (4,19.23) que contraria a vontade de Deus (Gn 2,24) e a vingança desenfreada, muito além do simples “olho por olho”.
            As palavras de Lamec (vv.23-24) são as de um debochado que se orgulha de ter duas mulheres e não uma, e de se vingar muito mais do que a lei do talião permite. Ele não se vinga apenas sete vezes (vingar sempre)  como permitia a lei do talião, mas sim setenta e sete vezes , isto é,  sem limites de vezes e de pessoas. Lamec é apresentado então como o tipo do cidadão arrogante, prepotente, vingador, machista: “Escutem, mulheres de Lamec...”
            Mas, mesmo nas cidades, onde há violência e vingança, domínio e exploração há sempre pessoas justas, sensatas, de Deus. É  que  o texto sobre Enós: “Ele foi o primeiro a invocar o nome de Deus” (vers. 26b). Ele foi o chamado na Bíblia mais tarde “o resto fiel” que observou e levou à frente o projeto de Deus. Nem tudo está perdido. No meio da tanta blasfêmia e maldade de Caim e Lamec, surgiu alguém que  começou a orar. Os outros inventam instrumentos e profissões. Enós “inventa” a espiritualidade.

            Capítulo 5 :  A salvação de Deus é realizada na história
            Esse capítulo é feito de genealogias. Em parte ele continua o capítulo quatro repetindo alguns nomes como Set, Enós, Enoc, Lamec e nomes parecidos (Cainã 5,9 com Caim 4,1.17).
            O início desse capítulo liga as  genealogias à criação repetindo no vers. 1 o versículo 27 de Gn 1: “Deus criou Adão e criou-o à sua imagem e semelhança e os criou homem e mulher”.  O sentido do versículo é  teológico:  as genealogias representam a raça humana de todos os tempos; se Deus fez o homem à sua imagem e semelhança, essa imagem e semelhança estão impressas em todos os homens de todos os tempos . O “Adam” do vers. 1 é o nome de todo indivíduo da espécie humana, homem e mulher. Ele foi criado por Deus e transmitirá pelas gerações a todos os seus descendentes a originalidade com que foi criado: “è imagem e semelhança de Deus”. A salvação de Deus está presente na História.

            A idade dos patriarcas
            O Antigo Testamento entendia a felicidade como “vida longa”. Ser feliz é viver bastante.Por isso  a idade dos patriarcas do início da História são sempre muito avançadas, chegando quase a um milênio! É de se notar que à medida que o mal cresce no mundo o homem vive menos (6,3: cento e vinte anos). Antes do dilúvio, porém, quando o mal ainda não se  alastrara, o homem vivia muito: de 700 a 1000 anos; depois do dilúvio, quando os homens voltaram a praticar o mal, eles vivem de 200 a 600 anos; depois de Abraão vivem de 100 a 200 anos, e mais tarde, de 70 a 80 como diz o salmo 90,10. (Cf. Como ler o Gênesis, p. 28)
            Os números são simbólicos.  Significam: viver muito, viver bastante, vida longa, alcançar velhice. Como foi dito, segundo os antigos,  ter “ vida longa” significa ser abençoado por Deus. Conforme o profeta Isaías (65,20) na era messiânica, morrer aos cem anos é morrer muito jovem (cf. Provérbios 3,16; 9,11; 10,27).
            E podemos dizer que há um caráter mítico nas cifras altas, conforme o costume babilônico que ensinava que ter idade avançada é representar aqui a eternidade das divindades.
            Vers. 21: Henoc
            De Henoc, porém, é dito que não morreu, mas “andou com Deus”. Segundo a mentalidade do Antigo Testamento ele deveria viver mais do que todo mundo pois ele fora o único a invocar a Javé, a orar (4,26). Mas duas vezes é dito  que  ele “andou com Deus” (5,22.24). A expressão quer  indicar,  que o texto,  que ele era íntimo de Deus, que ele morreu como justo, foi canonizado em vida!  A mesma coisa vai ser dita depois sobre Noé: ele também era justo e íntegro, por isso”andou com Deus” (6,9). A recompensa para Henoc, não foram mais anos de vida  na terra mas uma vida eterna junto de Deus.
            Dele é dito que foi arrebatado (5,24) A idéia de arrebatamento de um justo é comum nas tradições religiosas do Antigo Oriente. Nas tradições religiosas da  Mesopotâmia é dito que o herói do dilúvio babilônico  chamado Atra-hasis foi arrebatado  pelos deuses. Também Elias, o profeta de Israel,  foi arrebatado aos céus, segundo a crença popular (2Reis 2,11-12).  O arrebatamento  de pessoas justas é um modo de descrição para mostrar a importância dessas pessoas e a santidade delas. Eram tão importantes na vida religiosa  e na vida do povo que não morreram mas foram diretamente levadas pelos anjos  para morarem  com Deus.
            A tradição hebraica lembra sempre de Henoc e de Elias nos seus  escritos e nas suas liturgias. Eles foram tão justos e santos que voltarão no fim do mundo, no julgamento final. Henoc é muito lembrado nos escritos apócrifos. Há vários livros atribuídos a ele ou sobre ele (Henoc 1; Henoc 2 etc..). Ele é citado também no Novo Testamento na carta de Judas versículos 14-15. e na carta aos Hebreus 11,5-6. Elias  é lembrado na celebração pascal: os judeus reservam uma cadeira especial para ele  na ceia da Páscoa  pois diz a tradição que ele voltará um dia, durante a Ceia pascal. Virá para restaurar Israel.
            O final do capítulo 5 (vv.29-32) diz respeito a Noé, o herói do dilúvio, logo a seguir.
Diz o  versículo 29: “este nos consolará dos trabalhos e  do cansaço  de nossas mãos, causados pela terra que Javé amaldiçoou” . O que significaria isso?
            O nome Noé (em hebraico Noah) origina-se do verbo NaHaM que significa consolar. Entende-se com isso que Noé consolará seus pais e o seu povo pela sua justiça já antes do dilúvio. Ele “andava com Deus”, isto é, era amigo de Deus e logo após o dilúvio, oferecendo sacrifícios a Javé, alcançou de Javé a bênção para a terra que tinha sido amaldiçoada antes (3,17). Isso será uma consolação para a humanidade. Após o sacrifício de Noé, Deus garante que não mais amaldiçoará a terra (8,20-22).
            Noé consola  ainda seu povo porque inventou o vinho que é alívio para o homem.. (cf Gn 9,20; Salmo 104,15; Jz 9,13; Jr 16,7; Prov. 31,6-7).
            Noé é consolo porque ele faz a renovação da Aliança com Deus após o dilúvio, uma aliança que é Vida; ele se torna o antítipo da proposta serpente que foi o de introduzir o pecado (9,11).
            Noé gerou três filhos: Sem, Can e Jafé. A descendência  dele não segue somente  pelo primogênito, mas pelos três filhos. Essa  afirmação prepara o caminho para a lista de genealogia que aparecerá no capítulo 10.

            Capítulos  6 a 8: A história do dilúvio. A auto-suficiência castigada
            O capítulo seis começa com uma afirmação estranha: o relacionamento dos “filhos de Deus” com as “filhas dos homens (6,1-2).. O sábio comentarista Pe. Luis Alonso Schoekel, na sua Bíblia do Peregrino, diz que esses versículos são um enigma e que ninguém é capaz de saber o que significam. Ignoramos, diz ele,  completamente o que querem dizer, de onde surgiu essa tradição, pra que. Em todo caso há alguma semelhança com mitologias antigas que falavam de divindades subordinadas, seres divinos e sobre-humanos, meio deuses meio homens (Salmo 29; Jó1,6). Mas mitologia é mitologia, aqui o texto é considerado”Palavra de Deus”.
            O texto faz menção aqui de gigantes. A tradição sobre gigantes é mitológica e faz parte do imaginário popular, fantasioso e folclórico de todos os povos. Os gigantes sempre foram objetos de lendas e tradições; muitos “causos” se contavam sobre eles. O livro dos Números refere que Moisés enviara  exploradores  para observar e espionar a terra de Canaã e nbotar se os homens de lá eram fortes ou fracos. Os exploradores talvez por medo de terem que enfrentar os cananeus exageraram no relato que fazem a Moisés dizendo: “aí nós vimos gigantes, os filhos de Enac, que são gigantes mesmo. Tanto que para nós próprios como para eles, nós parecíamos gafanhotos” (Nm 13,33; Dt 2,11). (Enac  era considerado pai dos habitantes de Hebron , que  eram considerados gigantes). Esses gigantes são chamados nefilim na Bíblia  (Nm 13,33; Dt 2,2o-11; 3,11). E a Bíblia procura, parece, dar uma explicação sobre a origem deles (6,4). E a dá de forma lendária dizendo que os gigantes eram fruto da relação entre os filhos de Deus (que teriam traços humanos também) e as filhas dos homens. O apócrifo 1Henoc  diz que os anjos são espíritos de luz e de fogo. Têm corpo, mas espiritualizado. São visíveis e invisíveis. Por isso podiam se relacionarem com as mulheres (1Henoc 106ss s e 6,1).
            Uma interpretação teológica do texto seria a de que o autor está quer dar o motivo por quê se dará  a corrupção geral, que vai ocasionar o dilúvio. A razão, diz ele, foi a auto-suficiência dos homens que queriam elevar-se tanto, agigantar-se tanto a ponto de se considerarem semi-deuses, capazes de criarem uma super-humanidade. O fato de os filhos de Deus, ou super-homens, se unirem com todas as mulheres belas da terra levou a humanidade à degradação moral absoluta, desfigurando o projeto de Deus. A narração quer mostrar o pecado dos homens (não sexual), mas de prepotência, querendo ser deuses.  À medida que se fazem super-homens, semi-deuses, se fazem também opressores. E quando os opressores chegam a limite máximo de prepotência, Deus sempre intervém – através de acontecimentos, como diz o profeta Isaias (Is14). Deus intervém com o dilúvio que extermina tudo, exceto Noé e os seus,  que começarão uma nova humanidade -  não mais corrompida como a anterior.
            A narrativa sobre os gigantes parece ter mesmo um caráter mítico.

            O dilúvio (6,1-8)
            Em quase todas as culturas primitivas encontram-se narrações sobre o dilúvio. As mesopotâmicas são as que mais se assemelham às bíblicas. A mais próxima da Bíblia é o Poema de Gilgamesh Entre ambas há muitas coincidências e muitas diferenças.
            Coincidências: no dilúvio, apenas uma pessoa (babilônico) ou uma família( bíblico) se salvam. Os deuses (babilônico) ou Deus (bíblico)  anunciam a catástrofe a um homem para que se prepare; em ambas há uma ordem para construir uma barca (arca), salvar animais; em ambas há morte de todas as pessoas  que não estão na arca (barca); a embarcação pára sobre um monte; em ambas  é dito que se soltam corvos e pombas ao final do dilúvio; há o sacrifício a Deus ou aos deuses; no final o herói é abençoado (em ambas)
            Diferenças:  A narração de Gilgamesh faz parte de um poema; a bíblica é independente (7-9); a de Gilgamesh é feita em poesia-épica; a de Gênesis é feita em prosa.  Gilgamesh é linguagem culta; a bíblica é popular. A visão religiosa de Gilgamesh é politeísta; a bíblica é monoteísta; na  versão bíblica é Deus quem castiga o homem por causa da corrupção geral; na babilônica são os deuses que castigam, sem alguma explicação; a narração bíblica é otimista: o homem tem futuro em aberto; a babilônica é pessimista: não há esperança para a humanidade..
            Todos esses detalhes levam  à conclusão de que as duas narrações dependem de uma ou mais versões babilônicas anteriores.
            Devemos notar que ao relato do dilúvio é uma colcha feita com duas narrações: a popular  e a sacerdotal . Por isso o relato traz versões diferentes para um mesmo fato. Por ex. conforme a redação popular (Javista) foi Noé quem abriu a clarabóia e verificou que já estava  seca a terra e saiu da arca (8,6-12.13b); conforme a narração sacerdotal foi Deus quem mandou Moisés sair (8,15-17). Também o tempo do dilúvio me diferente. Conforme a tradição popular  o dilúvio durou 101 dias (40 + 40  + 7 +7 + 7)  ( cf 7,4; 7,12; 7,10; 8,10; 8,12); conforme a tradição sacerdotal durou um ano solar: do dia 17 do segundo mês (do ano 600 da vida de Noé) ao dia 27 do segundo mês do ano 601 (da vida de Noé) [cf 7,10-11 e 8,14).
            Há alguns anacronismos (coisas fora do tempo): na arca entram animais puros e impuros (7,1-2): é anacronismo porque essa distinção entre animais será feita mais tarde com o Levítico. O mesmo se pode dizer do sacrifício que Noé ofereceu a Deus. As leis sobre sacrifícios serão dadas mais tarde no Sinai a Moisés.

            O motivo do dilúvio
            As narrativas religiosas procuram dar uma motivação teológica para a imemorial inundação acontecida há milênios na região Caba-Babilônia.
            Para o autor bíblico o motivo foi a corrupção geral da humanidade. O mesmo Deus que  a criara poderia destruí-la. Para ele a corrupção afetava toda a raça humana conhecida por ele; por isso, para ele, o dilúvio foi universal.
            Para legitimar o  castigo o autor diz que Deus se arrependera de ter criado o homem e que ficara magoado (6,6). Na Bíblia aparecem outros trechos sobre o arrependimento de Deus : Deus se arrepende da ameaça contra Israel (Ex 32,14), contra Judá (Jr 26,3;Jl 2,13), contra Nínive (Jn 3,9-10).

            A arca
            A narração fala em linhas gerais sobre a  construção da arca: uma barca enorme, retangular, com três pisos, divididos em quartos e uma cobertura (6,13-16) A arca tinha 150 metros de comprimento, 25 de largura e  15 de altura, com uma clarabóia de meios metro (6, 15-16)    [Algumas Bíblias falam em côvados e não metros. O côvado media 44,5cm].
            O número quarenta que aparece algumas vezes no relato (quarenta dias, quarenta noites...) é simbólico, significando muitos dias, demasiado, bastante, imenso [Israel caminha  40  anos  pelo deserto; Moisés fica 40 dias no monte (Ex 24,18 e 34,28); Elias caminha 40 dias (1Rs 19,8); Jesus jejua 40 dias (Mt 4,2ss), etc.]

            A inundação
            O texto bíblico diz que choveu durante 40 dias e 40 noites e que as águas  subiram 7 metros e meio acima  dos montes mais elevados, destruindo toda a criação.
            Depois do dilúvio, quando as águas secaram (8,1-3) a arca pousou sobre os montes de Ararat (8,4).  Era a região montanhosa conhecida naqueles tempos.  Mas a narração, como se sabe, é simbólica não geográfica. Poderiam ser as montanhas do Cáucaso também ou outras. (Mas isso não para se discutir, pois dentro da narrativa do dilúvio a barca devia parar num lugar!).
            As aves que são solta da barca também fazem parte do quadro narrativo do dilúvio,. tanto na narração bíblica quanto na narração mesopotâmica. O corvo saí e voltou algumas vezes porque as águas não tinham baixado; quando secaram, ele não voltou (8,6-7). A pomba voltou com um ramo verde, significando que as árvores já estavam à vista. [Tudo isso faz parte da narrativa simbólica do dilúvio, que foi uma realidade histórica mas  interpretada teologicamente].

            O sacrifício de Noé
            O sacrifício de Noé a Deus é um holocausto, isto é, de vítima abatida e consumidas pelo fogo num altar (Lev. 1). Esse holocausto não foi um sacrifício de comunhão, do qual ele poderia participar. Deus aceita o sacrifício de Noé; isso é dito pela expressão “ agradável odor” ou “perfume” (8,21).
            Dês abençoa a humanidade em seguida (8,21). A bênção aqui é o contrário da maldição dada em 6,5-8, quando Deus viu a maldade do homem, arrependeu-se de tê-lo feito e disse: “Vou exterminar da face da terra os homens que criei porque me arrependo de os ter feito”. Aqui, Deus diz: “Nunca mais amaldiçoarei a terra  por causa do homem, porque os projetos do coração humano são maus” (8,21).. Esse final é repetição da maldição que está em 6,5. Como lá o homem era maldito porque seu coração era mau, agora ele é abençoado apesar de seu coração tender para o mal. Deus será paciente com o homem; Deus tem  sempre paciência com o homem (Mt 5,45; Rm 3,26)

            Capítulo 9: Deus faz aliança
            Com o fim do dilúvio começa nova humanidade. Também nas narrativas babilônicas marca  a passagem  entre duas fases da humanidade.
            Nessa nova época Deus dá ao homem permissão de comer de tudo, exceto o sangue. Até aqui, homens e animais eram vegetarianos, segundo Gn 1,30. Nas narrativas extra-bíblicas (como a babilônica e também na obra de Hesíodo: “Os trabalhos e os dias” em que trata das diversas épocas do mundo)  a alimentação com carne veio depois da alimentação com vegetais (“Para compreender....”, p. 137). O que não significa que o homem e animais tivessem sido vegetarianos no início. E nem significa que no início havia paz entre homens e animais. (O dilúvio ocorreu por causa da corrupção e da violência). Aqui, quer fazer uma concessão e sublinhar uma proibição. Concede que ao homem , como senhor da criação pode usar dela para alimentar-se; e fazer uma restrição: não comer nem usar o sangue. (A proibição de usar o sangue vai aparecer, porém, bem mais tarde, no Lev. 7,26, 19,26 etc.)..
            O  capítulo começa com a bênção de Deus: “Sejam fecundos, multipliquem-se e encham a terra. Todos os animais da terra  temerão e respeitarão vocês: as aves dos céus, os répteis do solo e os peixes do mar estão no poder de vocês. Tudo o que vive e se move servirá de alimento para vocês... E a vocês eu entrego tudo, como já lhes havia entregue os vegetais” (9,1-3).
            A diferença  entre a bênção de 1,28 e esta dada aqui, está no vers. 3 onde Deus dá como alimento ao homem não somente os vegetais (como em 1,28) mas também os animais, aves, peixes (9,3), como foi lembrado acima.
            Ao proibir o sangue como alimento, os autores bíblicos certamente estão fazendo uma crítica velada ao sistema alimentar que exige a matança de animais.  Se Deus quer a vida de todo vivente que ele criou, por que matar para se alimentar?  O paraíso projetado pelo autor bíblico seria diferente, sem morte, sem derramamento de sangue (Gn 1,29-30 e Isaías 11,6-9).
            VV. 4-5 –  Nesses  versículos vem a proibição de comer carne com o sangue (dam);  não é permitido comer animal não sangrado. O sangue é vida (nephesh). O Deuteronômio 12,20-25 e Lev. 7,26-27; 17,10-14 são os textos que regulamentam até aqui esse costume alimentar judaico.
            É proibido também tirar a vida (o sangue) do ser humano. Deus é  o único Senhor da vida dos homens.  Ele pedirá contas a quem matar um ser humano, pois estará matando um irmão – como o fez Caim com Abel.
            O texto diz que Deus pedirá conta até aos animais que matarem um ser humano. O Código da Aliança (Ex 21,28-32) prescreve que o boi que matar um homem seja apedrejado.
            O homem é a imagem de Deus, por isso deve ser respeitado. Para que isso seja cumprido, Deus permite que seja assassinado o homem que assassinar um semelhante (v.6).
           
            VV. 8-17 : A aliança com Deus
            Aliança, berît em hebraico, é o contrato entre o homem e Deus  Nesse trecho a palavra Aliança aparece três vezes. E há uma sucessão de alianças no Pentateuco. A primeira é esta, depois vem a de Abraão (cap. 17 de Gn), depois a do Sinai (Ex 19-20), Josué (24) etc.
            Nesta Aliança, embora apareça Noé como parceiro de Deus, é somente Deus quem se compromete (vv.8-11)
            Em toda Aliança com Deus há sempre um sinal que a caracteriza. Aqui é o arco –iris, com Abraão é a circuncisão e no Sinai é o sábado.
            Nesta Aliança Deus se propõe a defender a criação; nenhum dilúvio, nenhuma catástrofe poderão prejudicar a criação por causa dos pecados do homem.
            O arco-iris é o sinal de Deus na aliança com Noé. Tem dois sentidos a figura do arco-iris: primeiramente : ele é o sinal do vencedor (arco que dispara a flecha); depois, o arco-iris é sinal de que as chuvas pararam e o sol voltou a brilhar. O arco-iris lembrará que Deus nunca mais vai deixar as águas inundarem a terra; há um termo, um limite. O sinal é o arco-iris.

            ADENDO: O dilúvio existiu mesmo?
            Podemos dizer que o dilúvio existiu de fato. Foi uma imensa inundação  acontecida nos primórdios da humanidade. A Bíblia viu esse fenômeno como um castigo de Deus para a humanidade depravada e viu também esse acontecimento histórico imemorial como ocasião para reafirmar a aliança que o homem devia manter sempre com seu Deus. A Bíblia lê o fato teologicamente. Na Bíblia o dilúvio é um relato etiológico: procura dar a causa,  o motivo o porquê de  determinado fato acontecido na história e do qual todas as pessoas guardavam lembrança na memória coletiva. O  núcleo histórico da tradição sobre o dilúvio constitui patrimônio cultural comum dos dois povos vizinhos: israelitas e mesopotâmicos. É uma tradição cultural semita. Por isso mesmo os dois povos têm narrações sobre o dilúvio e muito semelhantes.  A paleontologia e a etnografia parecem confirmar cientificamente a existência de inundações imensas acontecidas entre os anos 3.700-2800 aC na Mesopotâmia. O dilúvio seria uma dessa.
            O relato tem fundo histórico mas a narração é feita dentro de uma ótica etiológica e teológica:  o pecado é sempre rompimento da aliança com Deus. É sempre punido:  que a nível pessoal (Adão e Eva),  quer  a nível social  (Caim e Abel);  quer a nível de toda a humanidade, coletivo (o Dilúvio).
                                                        
            Capítulo 10: Os povos da terra

            Esse capítulo trata do povoamento da terra. É uma geografia política. O povoamento da terra e a dispersão seguinte são apresentados a partir dos filhos de Noé: Sem, Cam e Jafé.
             “E a partir deles foi povoada a terra inteira” (9,19). O texto quer explicar a diversidade das raças, povos, nações e línguas (vers. 32).  Quer ainda afirmar que Abraão (que virá em seguida) está ligado à História, pertence a um povo. Ele não é um ser mítico, provindo do mundo dos deuses – como eram considerados os patriarcas dos povos antigos.
            Segundo o texto Sem é abençoado porque ele será pai do povo  de Israel (semitas). Cam, será o pai do povo cananeu, adversários do povo de Israel. E Jafé, pai dos povos da região do Mar Negro (gregos). (A maldição que aparece nos vv. 25-27) parece ser glosa posterior, segundo Mckenzie (Dicionário Bíblico, verbete Jafé) [A equivocada maldição sobre a raça negra, como inferior,  foi buscada nesses versículos, mas abusivamente. Pois o texto não fala isso].

            Capítulo 11: a pretensão humana. A torre de Babel
            Com esse capítulo a História das origens  chega a seu ponto final. É também o ponto máximo da auto-suficiência e do orgulho humanos, que começaram com Adão e Eva (“sereis como deuses” 3,5).
            A humanidade constrói uma cidade. E cidade é símbolo de dominação, poios monopoliza a vida e a liberdade das pessoas. A cidade sempre explorou o campo – do qual sempre dependeu. A cidade e a civilização acabam impedindo que o  projeto de Deus – que é união e liberdade e identidade para todos – se realize.
            A Bíblia quer mostrar que é preciso destruir sempre uma civilização auto-suficiente e injusta, opressora, e construir uma nova civilização fundada na justiça e no direito.
            Para ensinar isso o autor bíblico se vale  da história das torres da Babilônia.
            “Para os antigos, o céu era a moradia de Deus; a terra era a moradia dos homens. Construir uma torre que chegasse até o céu” (11,4) era a pretensão da cidade para mostrar que era auto-suficiente e igual a Deus. O homem quer ser como Deus (2,5)
            Mas enquanto a torre dos homens sobe, diz o texto, Deus desce para ver a torre (11,4-5) Contraste literário para mostrar que por mais que o homem ou uma ideologia queira ser onipotente, crescer, subir, dominar, nunca irá além de sua pretensão.
            Deus confunde os construtores, isto é, Deus dá a todos a  liberdade, a própria identidade.  Construir uma só cidade é ato de globalização, que destrói a identidade das pessoas e povos. Não é possível falar somente uma língua, a língua do interesse, da ambição, da economia. Cada pessoa, cada povo tem direito à sua auto-determinação. Isso é obra de Deus, projeto de Deus. À medida que o povo participa de uma liberdade, economia, política, vida social que tragam vida para todos,  ele estará realizando o projeto de Deus. Isso confunde os projetos da “cidade opressora”. Deus desce para que o homem possa subir.
            O texto faz também alusão à etimologia da palavra Babel. O redator associa a palavra Babel (em acádico: porta do céu) com o verbo hebraico balal (confundir), para dizer que Babel (Babilônia) significa confusão.

            2.ª PARTE.  Gênesis 12—25,18 : os Patriarcas
            Patriarca é uma palavra grega que significa: primeiro pai ( patér= pai e arché= princípio, começo). Os patriarcas bíblicos vêm a ser os primeiros  pais do Povo de Deus.
A historia dos Patriarcas abrange boa parte do  livro do Gênesis: do capítulo 12 ao 5capítulo 36,42.  E está assim subdividida:
a) Gênesis 12,1—25,18        : História de Abraão
b) Gênesis 25,19—36,42      : História de Isaac e Jacó
c) Gênesis 37,1-50,20                       : História de José. É a terceira parte do livro e constitui pontes (passagem) da história para o livro do Êxodo.
            O tempo que abrange essa História dos Patriarcas vai de 1850 a 1650 aC aproximadamente. Começa com saída de Abraão de UR e termina com a história de José no Egito. Depois de José os hebreus se instalam  no Egito e  acabam provocando o chamado êxodo (ou saída do povo) em 1250 aC.



Esquematicamente  a história poderia ser apresentada assim:
Retângulo de cantos arredondados: Sai de Ur com 75 anos. Quando tem 85, nasce-lhe Ismael   (16,15) e aos 100 anos, nasce-lhe Isaac (21,5)Sara morre com 127 anos (23,1); Abraão viveu 175 anos (25,7).
ABRAÃO
(1850 aC)
Retângulo de cantos arredondados: ABRAÃO
(1850 aC)
        

Retângulo de cantos arredondados: Casou-se aos  40 anos (25,20)Teve dois filhos com Rebeca: Esaú e Jacó (25,25-26)

 (1850 aC)
Retângulo de cantos arredondados: ISAAC
(1785 aC)




Retângulo de cantos arredondados:  12 TRIBOS
(1700 aC)
Retângulo de cantos arredondados: JACÓ
(1740 aC)
Retângulo de cantos arredondados: ESAÚ
(1740 aC)
                 PRESENÇA DAS TRIBOS NO EGITO: 430 anos (Êxodo 12,40)

                                   -------------------------------------

a)      ABRAÃO (Gênesis 12-25,18)

               Segundo os textos, Abraão vem de Ur, da Caldéia (hoje Iraque). Seu contexto cultural e histórico é o do antigo império babilônico. O ano é 1850 aC. aproximadamente.
               Abraão é  o pai por excelência do povo judeu. Nele fundam-se as tradições do povo escolhido. A figura histórica de Abraão vem descrita no livro do Gênesis.  Houve (e há) discussões  acadêmicas sobre a sua historicidade, uma vez que fora do livro do Gênesis não haveria documentos profanos  que falassem dele.  Hoje em dia, novas descobertas, como a de nomes como os dos patriarcas, confirmam a existência deles – como diz o  exegeta Claus Westermann,  (Genesis12-50, em Comentário  Bíblico do Antigo Testamento, vol 48, 1975, p. 55-78). Mas a questão, academicamente, fica em aberto.
               De fato, a história dos patriarcas de Israel está envolta numa nebulosa história cultural do Antigo Oriente tal como é a história dos chamados “Pais do povo”,  e as história religiosas sobre os “deuses dos pais”. Toda nação tem seu “pai do povo” (patri-arca) e o seu “deus particular” (familiar ou nacional)
                        “Se os patriarcas sobreviveram no âmbito das tribos israelitas como depositários da revelação divina e como fundadores dos cultos ligados aos seus nomes e praticados em seguida pelos seus descendentes, é evidente que eles são personagens históricas que realmente existiram no tempo... O material comparativo apresentado por ALT (historiador) se encontra em inscrições gregas e nabatéias, de modo especial da Transjordânia do Norte. Por isso estão superadas e não se deve falar mais disso, as interpretações anteriores sobre as figuras dos patriarcas, segundo as quais eles eram personificações das tribos, ou mesmo divindades primitivas, ou ainda figuras legendárias. Todas essas interpretações não têm fundamento algum e são mesmo arbitrárias (M NOTH, Storia d’Israele, Brescia, 1975, p 153-154).

[Alguns autores modernos, porém, discutem a historicidade dos patriarcas. Apresentam alguns argumentos interessantes, nem sempre convincentes e também  muita arbitrariedade. Um aspecto negativo da contestação desses autores  é o de desmerecer o trabalho dos historiadores anteriores. ]

               O Gênesis mostra Abraão saindo de sua terra por determinação de Deus. Abraão saiu em viagem migratória, coisa comum naqueles tempos Na longa caminhada dão-se os acontecimentos narrados pelo livro. Houve todo um processo de gestação na decisão de Abraão: sair migrar, refletir sobre o politeísmo, monoteísmo, terra, filhos, opção, aliança com Deus. Tudo isso ocorreu natural e historicamente, mas à luz da graça de Deus que iluminou esse homem na sua caminhada e nas suas decisões, principalmente a de fazer aliança com o Deus que descobrira que era um Deus da Vida.
               Importante na vida de Abraão é a aliança que fez com esse Deus: Deus se compromete a fazer dele o pai de seu povo e ele deverá confiar nas promessas de Deus. Nessa Aliança só Deus passa por entre os animais sacrificados, como a indicar que somente ele é capaz de cumprir o que promete. Portanto cumprirá o que prometeu a Abraão, pois Deus é fiel. Abraão será de fato pai de um grande povo (Gn 15) Por isso Deus lhe muda o nome: não será chamado  Abrão mas Abraão, nome  que na etimologia popular significaria pai de muitos povos ( em hebraico: Ab = pai; ra = ver; am = povo). O nome em si significaria em hebraico: o pai é exaltado. Mas de fato  a mudança do nome parece não tem maior importância. [Sara= nome feminino hebraico = a soberana. O  sufixo ai  acrescentado  ao  nome de Sara (=Sarai) em Gn 17,15 é  apenas uma tradição bíblica:  alterar o nome da pessoa quando ela se compromete com Deus para uma nova missão. O sufixo ai é também  designativo de divindade feminina em ugarítico.]

               b)  ISAAC-ESAÚ-JACÓ (Gênesis 25,19—36,43)
               A história desses patriarcas vem narrada em  Gn 25,19—36,42. Isaac é pai de Esaú e Jacó. Por direito de primogenitura Esaú deveria ser o herdeiro de Isaac e ter seus descendentes como principais troncos na árvore genealógica. Mas isso não aconteceu. Ele foi sacado da história e em seu lugar ficou seu irmão mais novo Jacó. A história bíblica conta que o motivo da cessão dos direitos de primogenitura dele para o irmão foi uma troca que fez com o irmão: por estar com fome pediu a  Jacó  o cozido  que estava preparando. Jacó  disse que lhe daria se ele lhe  vendesse o direito de primogentiura. E assim fizeram (25,31-34).
               Por que Esaú foi descartado? Certamente não foi por causa do prato de lentilhas. O motivo ninguém o sabe. O certo é que Esaú  saiu da família, abandonando-a para ir viver sua vida. E acabou formando  o seu povo, os edomitas. Edomita vem da palavra hebraica ‘edom, que significa “ruivo”. Esse era de fato o apelido de Esaú. A palavra tem relação com sua cor avermelhada (Gn 25,25) e com a cor das lentilhas (que tem cor marron ou avermelhada) – pelas quais cedera seus direitos.
            Esse relato de Gênesis é etiológico. O autor tenta explicar o por quê Esaú abandonara a família e o clã. Certamente houve  desentendimento entre os irmãos e a família. Mais tarde esses dois povos (isto é, os descendentes de Esaú e os de Jacó) vão ser inimigos e vão combater-se mutuamente (Números 20,14-21). [Em Gn 32,4-22 e 33,1-20  é lembrado o “complexo de culpa” de Jacó  por ter enganado o irmão]
            Jacó tornou-se pelo correr dos tempos o herdeiro de Isaac e de Abraão. A autenticação dessa escolha é dada pelo Gênesis no relato do sonho de Jacó  (28,10-22) . Ele vê uma escada que ligava a terra ao céu; Deus estava no alto da escada e lhe fazia uma promessa  e lhe dava a bênção.  (Notar que a bênção que Deus concede a Jacó e a promessa que lhe faz  são as mesmas já feitas a Abraão. O sentido do sonho é o de legitimar  a liderança de Jacó].
            Nos capítulos 29 e 30 vem narrada a constituição da família de Jacó: com suas quatro mulheres teve 12 filhos e uma filha (30,21).
            No capítulo 32,23-33 vem descrita a luta de Jacó com o anjo. É uma narração etiológica também, isto é, uma narração feita para explicar um por quê; no caso aqui é para explicar por que o povo hebreu passou a chamar-se  israelita e por que aquele lugar de culto conhecido por todos chamava-se Fanuel (palavra hebraica que significa: “ face de Deus”,   “ diante de Deus”).
            Com essa história narrada em Gn 32-23-32 o redator dá a resposta. Israelita vem da palavra Israel que na etimologia popular significava “aquele que luta  com Deus”, ou o homem que viu Deus = Is-Ra-El.   ( Is é homem; R’ah  é ver e El é Deus) . Que  significaria: Jacó  travou uma luta muito grande no seu interior para aderir a Deus e ser-lhe fiel como seus pais (Abraão-Isaac) Somente depois de muita luta é que conseguiu aderir a Deus e ser abençoado por ele como seus pais o foram.. A explicação quer dizer que Jacó é o ancestral dos filhos de Israel. E Fanuel é conseqüência da experiência de Jacó de ter visto a Deus, encontrado Deus face a face (penu-el= face de Deus). [No  final do texto é dito que os israelitas não comem o nervo ciático porque Deus feriu Jacó nesse nervo. Mas não há na Bíblia nenhuma proibição a respeito].

 AS DOZE TRIBOS
            A   história das  Doze tribos de Israel é bastante complexa (Há um livro referencial sobre esse tema: “As tribos de Javé”, da atual PAULUS, 1986. Autor: Norman K. Gottwald, com 930 páginas!).
            Segundo a Bíblia as tribos são formadas por descendentes de Jacó, seus doze filhos, que conquistaram a Terra Prometida. Elas são consideradas como constitutivas do Povo de Deus; foram inseridas em genealogias que as apresenta como descendentes de um único epônimo: Jacó-Israel. (epônimo= aquele que dá ou empresta o próprio nome para alguma coisa; no caso, as tribos de Jacó, ou Israel).  Os nomes das tribos  não coincidem com o nome das tribos que ocuparam a terra. Certamente houve muita rixa entre as tribos, exatamente porque esses irmãos, filhos de Jacó,  não eram todos filhos do mesma mãe . Jacó teve quatro mulheres (Gn 35,23). Ademais, o número Doze é também simbólico. Por isso poder-se-ia  explicar a bifurcação da tribo de José em duas outras: Efraim e Manassés, quando José ficou no Egito e Levi deixou de ser tribo proprietária de terras, porque fora encarregada do culto e a sua herança não seriam terras mas o próprio Senhor (Deuteronômio 18,1-2). Saíram dois, entraram dois para recompor o número simbólico: Doze.
            Por outro lado, a tribo de Manasse (que já era apêndice da tribo de José) bifurcou-se em duas: oriental e ocidental, mas era considerada uma tribo só. Essa tribo acabou usando o nome de Maquir, que era o filho mais velho de Manasses (Juizes 5,14 e Josué 17,1).
            Acrescente-se ainda que a tribo de Ruben praticamente desapareceu da história e as tribos de Simeão e Judá se fundiram numa só. Apesar disso, o número continuou sendo doze. [Puro simbolismo de plenitude no sistema sexagesimal sumério. Tem a mesma importância  do numero 10 no nosso sistema decimal].
            Nem todas as tribos desceram para o Egito no pré-êxodo e nem todas as que para lá foram, voltaram com o êxodo! Já havia entre elas rixas antigas (Juizes 1-6); isso pode ser percebido no episódio de José, vendido pelos irmãos (Gênesis 37). Esse episódio, dizem os historiadores, talvez tenha sido inventado para explicar as rixas entre as tribos, como também para explicar por que os filhos de Jacó desceram para o Egito e lá conseguiram o que queriam (Porque José estava lá e os ajudaria). Notar que o herói da história, José, desaparece como tribo.  Também desaparece ou perde quase toda a importância o grupo de Rúben, que era  o filho mais velho ,de Jacó e que era muito ligado a José. (Na história de José, é Ruben quem tenta salvá-lo de ser morto pelos irmãos. (Gn 37,18-28).
            As tribos também não tinham uma pureza racial absoluta. Todas elas sofreram influências dos povos vizinhos e absorveram muito da cultura e religião desses povos, bem como houve entre eles certa miscigenação racial.
            Tradicionalmente, porém, as tribos são doze. Depois de  descerem ao Egito (tempo de José), voltaram para a Palestina com a  morte do pai (Gn 50,7-14) e finalmente se instalaram no Egito onde prosperaram e constituíram grande povo a ponto de causarem preocupação ao Faraó que logo reagirá causando o confronto e o êxodo do povo de Deus.

            c)  JOSÉ (Gênesis 37,1—50,26)
            A história de José vai do capítulo 37 ao 50 que é o final do livro do Gênesis. Nos capítulos 37 e 38 é forte a presença de Judá. Ele se torna o mais importante entre os filhos de Jacó. O Gênesis começa a mostrar com esses capítulos que Judá é o continuador e depositário das promessas feitas aos patriarcas. Numa linha de seleção, Esaú foi excluído e em seu lugar entrou seu irmão Jacó. Agora são excluídos Ruben, que era o primogênito de Jacó e mais Simeão e Levi. Para cada um deles o autor (ou tradição J) dá uma justificativa pela exclusão: de Rúben é dito que foi excluído porque manteve relações sexuais com uma concubina de seu pai Jacó (Gn 35,22 e 49,4); de Simeão e Levi é dito que foram excluídos porque foram violentos, traiçoeiros e vingativos enganando os ingênuos siquemitas, que acreditaram neles – no episódio que envolveu a irmã deles Dina (Gn 34,25-31). Desse modo a progenitura ou os direitos dela passam agora para o quarto filho, Judá, que vai ser a tribo mais importante. Será a tribo da qual nascerão Davi e o Messias prometido..
            Esses episódios são uma releitura dos acontecimentos, feita bem depois de os fatos terem ocorrido. A releitura justifica o que ninguém sabia explicar pela história. Esses textos foram então construídos sobre informações da tradição sobre os filhos de Jacó e sobre Davi que era da tribo de Judá e grande rei de Israel. No fundo há a verdade história, - que é elaborada pelos escritores.
            De uma  maneira ou outra José se torna importante na história das doze tribos. Ele é apresentado pelos textos como instrumento de Deus para salvar a própria família, para explicar a instalação dos hebreus no Egito e o conseqüente êxodo.
            Muitos críticos afirmam que a  história de José é uma releitura de fatos ocorridos com as tribos, principalmente o fato de algumas tribos terem ido e se instalado no Egito e terem tido sucesso por lá.  José era o filho preferido pelo pai, mas odiado pelos irmãos. Talvez a partir dessa informação da tradição o autor ou a tradição J tenha montado a “história de José”.  De fato, o êxito de José é fulminante no Egito. Tudo dá certo para ele; nada dá errado! Os filhos de José passaram a constituir tribos em lugar dos filhos de Jacó (José e Levi). Como explicar isso? A “história de José” dá então as explicações. [Simeão constituiu uma tribo mas foi absorvida pela tribo de Judá].
            A “história de José” dá então as razões por quê os israelitas  (algumas tribos) se instalaram no Egito;  diz por quê foram perseguidos e porque aconteceu o êxodo.
            Parece ter sido essa a intenção do autor ou da tradição J ao escrever a história..

            3.ª PARTE.  : A história de José e de seus irmãos (Gênesis 37,1-50,26)

            Temas dos capítulos:
            Cap. 37.  Preferência do pai de José e inveja dos irmãos
            O capítulo fornece elementos para o desenvolvimento da história:
-          José é o preferido do pai. “Roupa de manga larga” é roupa de festa e de lazer. Isto significa: ele, José, não precisa trabalhar como os outros seus irmãos
-          José acusava os irmãos (37,2)
-          Os sonhos de José contados, irritam os irmãos, pois mostram que ele, José,  seria sempre superior a eles (37,1-11).
            Tudo isso prepara o ambiente para a vingança dos irmãos, que será sua venda ao mercadores  madianitas (37,28-29). José vai para o Egito (37,36).
            Nesse trama da história sobressaem Rúben e Judá (37,21 e 37,26). Eles tentam salvar o irmão.(Essas duas tribos vão ter muita importância mais tarde). Constam ainda na trama a nacionalidade dos mercadores, que são diferentes – conforme  as duas tradições que corriam:  segundo uma, eram “ismaelitas” (vers. 25b); segundo a outra, eram “madianitas” (vers. 36).

            Cap.38. História de Judá e Tamar
            É uma história deslocada. Ficaria melhor se colocada depois do capítulo 36. O texto quer mostrar como é que funcionava a lei do levirato (veja Deuteronômio 25,5-10), segundo a qual o irmão do morto devia casar-se com a viúva dele, se o irmão tivesse morrido sem filhos; deveria ter um filho com a viúva do irmão e tal filho seria considerado descendência do morto. Isso era para conservar a herança em família. E mostra ainda a história como uma estrangeira (Tamar) entrou para o povo de Deus. (Notar: Tamar não só entrou assim para o povo de Deus, mas será ainda uma antepassada de Jesus. Cf Mateu 1,3).
            O importante no texto é a mensagem de que a justiça deve sempre ser respeitada. Por isso são condenados no texto os atos de Onam (38,9-10) e de Judá (38,26).

            Cap. 39.  Prisão e exaltação do herói
            O tema desse capítulo é sapiencial, ou seja da literatura dos livros sapienciais  da Bíblia; eles  discutem problemas humanos, existenciais à luz da sabedoria popular. É uma literatura didática ou de instrução. Aqui, no caso,  é mostrado o caso do justo, que é acusado injustamente, mas  que no final  sua inocência é reconhecida e ele é exaltado. Assim acontece com José. Esse tema  sapiencial é também conhecido na literatura egípcia. Há uma história semelhante: a história de Si-Nuhe.
            Um tema comum na literatura sapiencial é o da infidelidade da mulher (claramente machista). Assim pode-se ler em Provérbios 2,16-22; 5; 6,24-26; 7,6-27; Eclesiástico 26,7-12 e outros
            O mesmo tema aparece também nos livros de provérbios egícios, como o livro dos Ditados de Ptah-Hotep e principalmente no livro Romance dos dois irmãos (muito semelhante ao relato de José e a mulher de Putifar - lembrado nesse capítulo. Parece que há até certa dependência dos textos, pois o caso de José também se dá no Egito. . No fundo de ambos está o ditado popular, sapiencial: “Amor rejeitado vira ódio”. (Veja 2Samuel  13,1-32).
            O autor bíblico salienta que um justo acusado  injustamente tem sempre a proteção de Deus. Aqui no texto ele diz 4 vezes que “Javé estava com ele” (vers. 2,  3, 21 e 23 ). Por isso qualquer pessoa pode ser instrumento de Deus para mudar uma situação.