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sábado, 31 de março de 2012

TEXTOS FREI MAURO STRABELI (MARÇO 2012): "HERMENÊUTICA BÍBLICA" - 1ª PARTE do DOCUMENTO:

             Frei Mauro Aristides Strabeli

 

 






 

 

 

 

 

HERMENÊUTICA BÍBLICA

                                             Breves anotações para aulas












 Faculdade de Teologia João Paulo II -  FAJOPA

                                  



                                           MARÍLIA




                                                        2012




APRESENTAÇÃO







O presente trabalho sobre Hermenêutica é breve. Traz apenas elementos fundamentais sobre o tema. É um Curso informativo com abertura para reflexão e debate; foi preparado para o  curso  bimestral sobre Hermenêutica da Faculdade de Teologia de Marília (FAJOPA).
A hermenêutica insere-se no contexto atual da reflexão teológica sobre o pluralismo religioso, chamado por Claude Geffré “horizonte da teologia no século XXI”.  Tem várias vertentes o pluralismo religioso, desde as mais antigas, como a hermenêutica de W. Dilthey, do séc 18, a nova hermenêutica de Fuchs e Ebeling  (1960) até às contemporâneas com Bultmann, Gadamer, Paul Ricoeur.
Sobre esse tema, que oferece grande espaço para discussão e aprofundamento podem ser consultados os livros: Claude Giffré. Crer e interpretar: A virada hermenêutica da teologia, (Vozes, 2004); Anne-Marie Pelletier, Bíblia e hermenêutica hoje, Loyola, 2006; Elizabeth Parmenter, Interpretações cristãs da Bíblia. Loyola, 2010 -   além dos artigos pertinentes nas revistas de Teologia.
Esse pequeno estudo vai trabalhar mais a hermenêutica bíblica, embora faça algumas referências no campo da filosofia - mas tão somente como parte do “estado da questão” sobre hermenêutica.



                                                Marília - 2012

                                                Frei Mauro Aristides Strabeli
                                                strabeli@uol.com.br

           












                                              
                                   I.ª PARTE: EXEGESE E HERMENÊUTICA
                       

1.      Hermenêutica e  linguagem

 ( SCHÖKEL, L.A.  Hermeneutica de la Palabra, Madrid,  Cristiandad, 1980; CROATTO J.S., Hermenêutica Bíblica, Paulinas, 1986;  RIBLA, Interpretação bíblica em busca de sentido e compromisso n.53, 2005).
Não se pode pensar que a hermenêutica é uma ciência específica e exclusivamente bíblica. Talvez esse modo de entendê-la tenha se originado no fato de a hermenêutica ter tido desenvolvimento maior no campo bíblico.  Por ser a Bíblia considerada livro inspirado, muita gente julgava que seria necessária uma hermenêutica especial para poder entendê-la – coisa que não seria necessária  para  se entender os  autores profanos. Mas isso não é verdade porque também os autores profanos precisam ser interpretados, cada um com uma hermenêutica adequada, pois a escrita é uma fala em prosa. E paradoxalmente quem não precisaria de hermenêutica para ser interpretado seria Deus, pois sua palavra é absolutamente unívoca, dispensaria interpretações. Mas a Bíblia necessita de interpretação porque é Palavra de Deus, sim, mas em linguagem humana. Daí que tanto a Palavra de Deus quanto as obras literárias humanas necessitam de uma adequada interpretação.
Uma primeira tarefa para a compreensão da hermenêutica bíblica é situá-la no contexto natural e amplo da hermenêutica geral, isto é, nos campos da linguagem e da literatura. Por que é preciso interpretar? Porque o homem usa métodos de linguagem. A linguagem é por si mesma um código que precisa ser decifrado.

            A linguagem: falar

A linguagem, diz Schökel, é um recipiente que recolhe a realidade do mundo e a transmite influenciando-a. A linguagem é uma ação hermenêutica com diversos graus: falar é interpretar como numa corrente contínua; dialogar é interpretar como numa corrente alternada; e do  mesmo modo o escrever e o ler (op. cit. p. 85)
Na linguagem, o mundo exterior se humaniza, recebe forma humana, atualiza sua inteligibilidade. O homem interpreta o mundo ao transformá-lo em linguagem O homem interpreta suas experiências ao transformá-las em linguagem; é uma espécie de criação Tal interpretação varia de uma língua para outra. Todo ser humano é capaz de interpretar o mundo e a si mesmo; cada língua é uma espécie de sistema de interpretação socialmente partilhado; o indivíduo faz sua interpretação pessoal dentro do sistema de sua língua. Como ser humano a pessoa pode e precisa interpretar o mundo; e por ser educado numa língua, tem a mente configurada por uma organização do seu grupo social. Ao aprender outra língua vai alargar o campo de recursos mentais de interpretação; pelo seu temperamento e formação a pessoa vai fazer sempre sua interpretação pessoal das coisas e dos fatos. Falar é interpretar. A língua é já uma função  hermenêutica.




             A linguagem: entender

Entender é a segunda operação interpretativa.. No falar a pessoa expressa sua experiência tornando-a comunicável; o ouvinte recebe o discurso (a fala) e realiza um processo de subjetivação, traduzindo a fala para si. Tal processo tem vários graus: a percepção sonora, os fonemas, a palavra, a frase.
Isso quer dizer que o entender é um processo ativo de interpretação que responde ao processo do falar. Há então uma dupla operação interpretativa: a do que fala, comunicando sua experiência, e a do que ouve,  que não deforma a mensagem ao assumi-la.
Entender é uma operação interpretativa.

              A Sagrada Escritura

A Sagrada Escritura é a revelação de Deus em linguagem humana e por isso mesmo traz em si o mesmo problema hermenêutico de qualquer outra linguagem. E mais ainda: é uma linguagem diferente e passada. A Escritura é literatura e como tal levanta o mesmo problema hermenêutico das obras literárias. E muitos outros, porque a Sagrada Escritura fala de realidades transcendentes, fala do Mistério inefável. Um único autor que fala por meio de muitos autores humanos e em dois Testamentos que formam uma unidade maravilhosa e difícil. Tudo isso torna mais agudo ainda o problema hermenêutico. E ao mesmo tempo a Sagrada Escritura contém uma tradição contínua e homogênea. É um livro antigo que pretende ser atual; encarnado num tempo, pretende falar a todas as gerações; limitada numa linguagem e horizonte culturais próprios e pretende ser universal. São tensões que não se podem evitar. E não basta apelar para a onipotência divina, a eficácia divina da Palavra, porque o caminho de Deus é a encarnação. Por que é preciso interpretar a Palavra de Deus? Porque, como está dito acima, a Palavra de Deus se expressa na linguagem humana e por isso mesmo constitui-se um “problema hermenêutico”.
Por isso é necessário estudo sério da Palavra de Deus: filológico, histórico, crítico, literário, cultural, exegético etc. como suporte para uma possível hermenêutica.
2.      Exegese e Hermenêutica

Não existe consenso para se definir as palavras exegese e hermenêutica. Mesmo porque elas têm muitas facetas e portanto diversos sentidos.
A palavra exegese é composta pela preposição grega  (eks), que significa de lá pra cá, mais o verbo grego ago) que significa guiar, conduzir. De modo que exegese é a arte de conhecer o sentido exato do texto. É um mergulhar no texto e sair dele (ex) trazendo o sentido puro nele recolhido. (Exegese = o que é que o texto me diz)
Mas para buscar o sentido escondido no texto é preciso entrar no texto. É preciso fazer uma eisegese (eis = para dentro + ago: conduzir; daí, = introduzir, entrar). Quem faz essa tarefa é o leitor; ele entra no texto com perguntas e dúvidas, que nem sempre são as do autor
do texto. Esse ato chama-se re-leitura, ou leitura interpretativa ou hermenêutica.  Essa tarefa amplia o sentido do texto.
,A palavra hermenêutica vem também da língua grega; vem da palavra  hermenéia, que significa interpretação. A hermenêutica é a ciência ou a arte da interpretação dos textos.
Tradicionalmente essa arte de interpretar era entendida como uma ciência que dissecaria o texto munida com inúmeros instrumentos de trabalho.    
A tarefa hermenêutica começaria com o exame atento do texto. No caso da Bíblia, eram indispensáveis um bom dicionário bíblico, um bom léxico, gramática, pesquisa filológica etc. Depois era necessário colocar o escrito bíblico no seu tempo histórico, sem o que não seria possível compreender seu sentido genuíno.
Importante ainda era o estudo do estilo do autor, as formas literárias usadas por ele. A finalidade era a de descobrir a verdadeira intenção do autor (cf. Fuchs, op. cit  p. 21-22)
A preocupação da hermenêutica tradicional  era  a de constatar o que estava por detrás do texto (história, autor) e não aquilo que o texto diz!
A nova hermenêutica dá um passo à frente e analisa o texto a partir do leitor. Este é um ser no mundo, é situado, tem pois uma pré-compreensão do texto. Doutro lado o ser que interroga o texto está também no mundo, como diz Heidegger. Está dentro de uma tradição, de uma cultura, pertence á História, diz Gadamer. A distância entre o texto e o leitor (intérprete) exige uma “fusão de horizontes”, segundo Gadamer, isto é, uma mútua relação entre o horizonte do texto e o do leitor.
Como é possível uma interpretação adequada?

3.      Conhecer primeiramente os sentidos da Escritura

                                   Na interpretação da Sagrada Escritura, os Santos Padres (primeiros teólogos da Igreja)  e os intérpretes da Idade Média distinguem dois sentidos  fundamentais no texto: o literal e o espiritual também chamado típico.                                
                              A Exortação “Verbum Domini” acentuando a importância dos Santos Padres na interpretação das Escrituras diz que o exemplo deles pode ensinar aos exegetas modernos uma abordagem verdadeiramente religiosa da Sagrada Escritura, e também uma interpretação que se atém constantemente ao critério de comunhão  com a experiência da Igreja, que caminha através da história sob a guia do Espírito Santo” (n.37).
                                   A tradição patrística e medieval reconhecia os vários sentidos da Escritura, começando pelo literal, isto é, “o expresso pelas palavras da Escritura e descoberto pela exegese segundo as regras da reta interpretação”.  Santo Tomás de Aquino afirma: “Todos os sentidos da Sagrada Escritura se fundamentam no literal”. Há unidade e articulação entre o sentido literal e o espiritual. Este se subdivide em três sentido que descrevem o conteúdo da fé, da moral e da tensão escatológica.
                        Existe até um dístico (sentença em dois versos) atribuído a Agostinho da Dácia, que traduz esses sentidos:
Littera gesta docet        = A letra ensina-te os fatos passados
Quid credas, allegoria  = A alegoria aquilo que deves crer (fé)
 Moralis, quid agas       = A moral o que deves fazer (a moral, o agir)
Quo tendas,  anagogia = A  anagogia para onde deves tender (espera final)
[Alegorai = comparação; tropologia  =  volta, retorno, conversão   e  anagogia, = subir, elevar].
                                    O  sentido literal: como foi dito, é o sentido imediato, aquele que o autor quis dar ao seu texto. É o que a palavra diz. (Santo Tomás: “quod res significantur per verba” = aquilo que é significado pelas palavras ). Ligados a esse sentido estão o símbolo e a alegoria.
                                   O sentido espiritual é aquele que Deus quer significar através das coisas expressas pela palavra do agiógrafo. (Santo Tomás: “quod res sunt figurae aliarum rerum”, isto é, ações, eventos, pessoas, coisas, que podem significar outra realidade. Por ex. a serpente de bronze (Nm  21,4-9)  = figura de Jesus crucificado (João 3,14); Adão é figura, tipo de Cristo (Rm 5,12-17).  Fatos do AT são figuras de realidades do NT (1Cor 10,6-11 = os fatos passados com o povo de Israel diz Paulo “aconteceram como um exemplo para nós”); Cl 2,16 = tudo isso é sombra daquilo que devia vir;  Hb 10,1= a lei possui  apenas uma sombra dos bens futuros) etc.
 “A Palavra do próprio Deus nunca se apresenta na simples literalidade do texto. Para alcançá-la é preciso transcender a literalidade num processo de compreensão, que se deixa guiar pelo movimento interior do conjunto, e portanto deve tornar-se  também processo de vida”. A interpretação não é pois meramente intelectual mas também vital que requer o pleno envolvimento na vida eclesial enquanto “vida segundo o Espírito” (Gl 5,16). A letra mata, mas o Espírito vivifica (2Cor 3,6). O Espirito que liberta da letra não é simplesmente a própria idéia do intérprete ou sua visão pessoal. Cristo é o Senhor que indica a estrada (Bento XVI). Nesse sentido todo o Antigo Testamento é um caminho para Jesus Cristo.
O sentido pleno. Esse sentido vem a ser o “sentido novo” de que falavam os Santos Padres e que hoje convencionou-se chamar de sentido pleno. Ele seria a “reserva de sentido” de que falam os hermeneutas hoje, isto é,  a plenitude de um texto não é alcançada  por um estudo estritamente exegético (autor, inspiração) mas de uma “luz que vem de outros lugares, de textos  inspirados posteriores  que formulam o mesmo pensamento de modo mais rico, ou de uma penetração mais profunda da tradição eclesiástica (magistério e o  progressio dogmatum) no conteúdo do texto antigo. Por isso, o sentido pleno de um determinado texto não é propriamente um sentido  inspirado da Bíblia mas é fruto de uma comparação entre diversas formulações  semelhantes ao mesmo tema; é uma conclusão da teologia bíblica, que ultrapassa a interpretação do texto propriamente dito. Por ex. as narrativas da criação do mundo, das pragas do Egito, de textos de S. Paulo. A teologia, o Magistério aprofundam aquilo que as palavras dizem. Ultrapassam a letra. Essa ultrapassagem do texto constitui o sentido pleno.
4.      A exegese e a hermenêutica têm uma história

Depois do período patrístico a leitura da Bíblia teve certa relevância na Idade Média com o surgimento das escolas teológico-bíblicas aí pelo século XII.  
No tempo de São Francisco havia dois importantes centros de estudos bíblicos: o da catedral de Laon, na França (dirigido por Santo Anselmo e o de Utrech, na Holanda (dirigido por Lamberto) A mais importante contribuição desses centros foi a criação da glosa, por Santo Anselmo e seus colaboradores. A glosa [do latim tardio: glosa] vem a ser uma pequena explicação,  um pequeno comentário inserido no texto original com a finalidade de explicá-lo ou interpretá-lo. Muitos glosadores aproveitavam-se desse recurso para colocar num texto os seus próprios pontos de vista, a sua interpretação pessoal,  desvirtuando o texto original. A glosa podia ser colocada entre as linhas do texto (era chamada glosa interlinear), ou à margem dos textos (era chamada glosa marginal). Segundo os seus criadores, a glosa era, porém, pequeno texto teológico composto com observações apropriadas, tiradas geralmente dos Santos Padres ou dos comentários bíblico antigos.  E serviam para ajudar explicar, compreender ou aprofundar os textos bíblicos. O uso da glosa teve seu ponto máximo no século XIII (alta escolástica). Era o meio mais comum de se explicar um texto bíblico.  [Por isso S. Francisco exigiu que seu Testamento fosse observados à risca, “sem glosa”, isto é,  sem comentários, sem interpretações].
                                   Na Idade Média existiam também, a par das glosas, as “Questões teológicas” (Quaestiones), que eram tratados sobre temas bíblicos ou teológicos.  As explicações dependiam muito de cada autor.
 As Escolas de Laon e de Paris ensinavam que a lectio  da Escritura não se destinava apenas à oração e à  contemplação, mas dava base para serem formuladas “quaestiones”. Por isso essas Escolas propunham as conhecidas “Disputatio”  ou “Disputationes".  Essa proposta da Escola de Laon e de Pedro Lombardo chama a atenção para a distinção que se devia fazer entre exegese e teologia. Esse trabalhão vai alcançar seu ponto alto no século XIII.
            Nesse tempo aparecem as “Coleções de Sentenças”, que foram um avanço na exegese medieval. O maior representante dessa fase foi o citado  Pedro Lombardo, com seu “Líber Sententiarum” -  uma compilação de questões teológico-bíblicas discutidas. O livro trazia  também respostas. Foi escrito por volta de 1150.
É desse tempo também a Escola de Paris, sob a direção do mestre Hugo de São Vitor.  Ele escreveu a obra Didascalicon, na qual põe as bases para uma nova compreensão da exegese e da teologia. Entre outras coisas sustenta ele a necessidade de se unir a ciência à piedade, usar a dialética e capacitar-se sempre mais para poder responder às necessidades da Comunidade cristã - que não vivia nos claustros, mas no mundo...
A exegese bíblica defendida por essa Escola era a literal, considerada como ponto de partida para uma reta interpretação da Escritura;  depois  se acrescentava  a interpretação alegórica. Para Hugo de São Vitor a alegoria devia ter à base uma correta compreensão do texto literal. Ele ensinava que os alunos deviam aprender tudo o que pudessem, pois o saber não é supérfluo, e um conhecimento “mais ou menos” das Escrituras ou da teologia, é coisa lamentável (cf G.A.C.Hadfield, “Interpretation”,The Interpreter’s Dictionary of Bible, Supplementary volume, 449-453).
Pode-se dizer que o século XIII foi o século dos estudos bíblicos na Idade Média; nesse tempo surgem grandes mestres da teologia e da Escritura e as conhecidas Escolas bíblicas. O estudo bíblico que até então era privilégio de mosteiros e calcado sobre a interpretação alegórica, deixa os mosteiros e começa  a ser popularizado pela pregação. Os Concílios de Latrão III (1179) e IV (1215) dão grande impulso ao movimento popular de interesse pela Escritura;  havia grande interesse nos grupos populares de  viverem  radicalmente, literalmente a Palavra de Deus. É um verdadeiro “literalismo evangélico”, diz Lubac (cf LUBAC, H. In: Dizionário Francescano,  Padova, Messaggero, 1983, verbete “Parola di Dio”)
O literalismo evangélico levava a ler a Bíblia procurando nela um pensamento que iluminasse a vida, doutrina, a moral; não se procurava conhecer o que o autor quis dizer para seu contexto. Corria-se o perigo do subjetivismo. Lia-se na Bíblia aquilo que se queria. Isso nunca iluminou a vida. Essa leitura ingênua estava sujeita à manipulação atribuindo aos autores coisas que eles nunca quiseram dizer. Tudo isso motivou o surgimento da crítica literária e histórica. Ela não nega o que está na Bíblia, quer apenas examinar para compreender.
                                   Outros  sentido conhecidos:
O sentido tropológico - tem por objeto ou finalidade a vida moral, a conduta dos fiéis.  Tropologia não é fazer sermãozinhos moralizantes superficiais a partir dos textos bíblicos, mas buscar o sentido que a Escritura dá ao agir cristão, à vida espiritual do fiel., ou também,  que reflexos morais a economia da salvação começada no AT e desenvolvida no NT (como a vida moral do povo de Israel, a vida de Cristo e da Igreja) pode exercer na vida cristã.
O sentido anagógico – já ensinado por Orígenes, São Jerônimo e S. Gregório Niceno.  Ele eleva ao infinito a mente do intérprete.. Ele pode ser especulativo-doutrinal quando trabalha a escatologia, e  contemplativo quando conduz a alta mística. É chamado o “sentido das coisas invisíveis”, que faz ver a Jerusalém celeste e a vinda da gloriosa de Cristo (ZEVINI,G.   Incontro con la Bibbia, Roma , LAS,1978).

Essa tradição hermenêutica deixava já perceber que um texto do AT não se esgotava na sua primeira intenção (o escrito), mas dizia algo mais (cf.  Croatto, op. cit  pág. 9-11).
Todas essas abordagens foram e são importantes; porém, não esgotam as possibilidades de uma autêntica hermenêutica.
Recentemente as ciências da linguagem, da lingüística e da semiótica narrativa trouxeram novas e significativas contribuições para os estudos bíblicos. Esse instrumental é chamado análise estrutural.  A semântica analisa a evolução e o desenvolvimento de uma palavra; a semiótica analisa seu sentido como estrutura. Estuda a estrutura do texto, tanto a narrativa (ações, funções) como a discursiva (temas, sentido o texto) e ajuda a descobrir o sentido exato de um texto.. [Um aspecto negativo nesse método é o aspecto reducionista que esquece a vida do texto, sua história, contexto...].
Diz Croatto:  “Para compreender hoje a hermenêutica em toda sua riqueza e valor metodológico é preciso  fazer um desvio pelas ciências da linguagem. Uma vez que a hermenêutica tem a ver com a interpretação de textos – ou de acontecimentos codificados na linguagem – é mister situá-la sobre o fundamento da semiótica, a ciência dos signos, cuja expressão mais compreensiva é a linguagem em seu sentido restrito” (op. cit pág. 15-16)
Tratar de exegese e hermenêutica é, pois,  entrar num campo de grandes problemas técnicos, de ordem filosófica, teológica sociologia e bíblica.
O chamado “problema hermenêutico” (= o que vem a ser “interpretar”) é ainda hoje um tema de estudos e pesquisas que não pode ser desprezado ou ignorado. É ele a palavra-chave de toda a filosofia e teologia.
O interesse que há décadas passadas se tinha pela gnoseologia crítica, gnósis= conhecimento; gnoseologia= teoria do conhecimento)  e pela epistemologia, (epístamai = saber, conhecer, lógos, =  estudo; epistemologia =estudo crítico dos princípios da ciência) está hoje dirigido para a hermenêutica, porque, com a evolução da cultura filosófica moderna, a atenção foi voltada para o campo das análises: a da alma (=psicanálise), a dos significados (fenomenologia), a da infra-estrutura econômico-social (=marxismo, estruturalismo) e sobretudo pela análise da linguagem (filosofia analítica, semântica= sémeion, sinal], semiologia=símbolo, signo),  e hermenêutica etc]. E todo esse interesse filosófico refletiu-se na teologia.
Três grandes nomes (Marx, Nietzsche e Freud) ensinaram que a linguagem pode ter um significado oculto que deve ser descoberto através de um trabalho de decodificação. Esse trabalho é a hermenêutica que faz. Talvez os citados pensadores tenham exagerado na interpretação dos fenômenos sociais  (Marx), dos valores morais (Nietzsche) e da sexualidade (Freud). Marx tentou reduzir todos os problemas sócio-econômicos à estrutura econômica injusta; Nietzsche reduzindo os valores morais à inveja da força e do poder dos outros e Freud considerando os valores éticos como frutos de recalque sexual imposto pela dominação familiar.
Seja como for, eles deram origem a uma “ciência do significado”, que busca a autenticidade de uma linguagem Desse modo, um psicanalista é levado a interpretar a história de um ponto de vista pessoal; um marxista analisará os eventos sob o prisma da “luta de classes” e um estruturalista verá toda realidade filosófica ou social como expressão de estruturas inconscientes da coletividade.
Por isso a Hermenêutica é hoje uma arte de decodificação: procura descobrir os significados ocultos dentro da trama lingüística. E isso é muito relevante hoje, quando há profunda exigência de lealdade, sinceridade e verdade. A hermenêutica tem então uma importância muito grande não somente sob o aspecto cultural ou de metodologia científica, mas também sob o aspecto prático-pastoral.
Esse aspecto é de interesse para todo sacerdote ou agente de pastoral uma vez que todos os problemas que dizem respeito à ação pastoral da  Igreja no mundo de hoje (a doutrina, a liturgia, a missão etc. e principalmente a pregação e a catequese)  estão ligados a um “problema de linguagem”. Nossa linguagem teológica, moral, catequética, bíblica etc. é incompreensível para a maioria dos fiéis Não sabemos transmitir para as pessoas de hoje os grandes temas da fé cristã, como por ex., sobre a existência de anjos e demônios, sobre céu, inferno, purgatório, ressurreição, vida eterna, comunidade... Como fazer o povo entender e tornar essas verdade valores operativos em suas vidas? (cf. Paolo Valori,Problemi filosofici della ermeneutica”  em Esegesi ed ermeneutica, (Atti della XXI Settimana Bíblica) Paideia, 1972, p.21-24).

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(No texto abaixo, palavras do Presidente do Pontifício Conselho para a Cultura, sobre Comunicação e linguagem:
CULTURA DA COMUNICAÇÃO E NOVAS LINGUAGENS"
◊   Cidade do Vaticano, 02 nov (Rádio Vaticano) - “Cultura da comunicação e novas linguagens”: esse é o tema da Assembléia Plenária do Pontifício Conselho para a Cultura, que se realizará entre os dias 10 e 13 de novembro de 2010 no Vaticano, e que será apresentada amanhã, quarta-feira, na Sala de Imprensa da Santa Sé. Presente na coletiva de imprensa o Presidente do organismo vaticano, Dom Gianfranco Ravasi, e o responsável pelo Departamento “Arte e Fé” do mesmo dicastério, Iacobone Pasquale. Sobre o tema central da Plenária eis o que disse à Rádio Vaticano o Presidente Dom Ravasi.
R. - É antes de tudo o tema preliminar de cada primeiro encontro com o mundo da cultura: se não se encontra o tecido comum, isto é o vocabulário, a gramática, ou até mesmo o estilo com o qual nos relacionamos com os outros, então é impossível passar aos conteúdos. A nossa, portanto, não é simplesmente uma reflexão sobre a comunicação social, como ocorre também em outros organismos da Santa Sé; é, ao invés, estudar a comunicação em um nível superior, teórico, estrutural, de modo que se possa, em seguida, passar aos conteúdos do próprio diálogo, uma vez encontrada a sintonia n nas linguagens.
P. – Pode-se falar de uma dificuldade que existe hoje no mundo eclesial para adotar um código comunicativo compreensível, seja dentro da Igreja, seja na comunicação com o mundo exterior?
R. - Esse talvez seja o problema central. O movimento, antes de tudo, é centrípeto: isto é, ir para dentro, em direção de nós mesmos, porque muitas vezes – também para nós - a linguagem interna na comunidade eclesial é quase que completamente sem voz. Pensamos – por exemplo – na linguagem teológica tão sofisticada, que não encontra mais referências em uma população católica, crente, praticante, que está dentro da igreja e no domingo ouve uma homilia, mas que tem no seu interior - como linguagem - a linguagem televisiva, a linguagem da internet, a linguagem cotidiana. É preciso também um movimento centrífugo, isto é, para fora, em direção à periferia, porque nossa comunicação deve ter uma sua lógica, uma sua coerência, um vocabulário próprio, mas ao mesmo tempo deve tentar lançar a sua linguagem a um horizonte novo, com novas linguagens. Nunca devemos nos esquecer do trabalho que, por exemplo, fez São Paulo, quando ele passou de uma cultura que era profundamente semítica a uma cultura ligada, ao invés, ao mundo mediterrâneo da época, que tinha a marca do helenismo, da cultura romana. Por isso faremos a inauguração de nossa Plenária - algo que nunca acontece - no Capitólio; na Prefeitura de Roma, abrindo-a idealmente a um areópago como o da cidade, neste caso a cidade de Roma, de modo tal, de ter já na abertura, a possibilidade de falar mais amplamente possível. (SP)
                         
                                  
                 Hoje há muitas correntes hermenêuticas tanto no campo católico como no protestante e também entre agnósticos. São conhecidos os nomes de teólogos e filósofos como  Karl Barth, Ernst Fuchs, Ebeling, James M. Robinson, Wittgenstein, Heidegger, Bultmann, Gadamer, Paul Ricoeur, G. Gutierres, L. Boff, C. Boff, Fernando Bello, J.Severino Croatto, Juan Segundo, J. Pixley etc.
Hermenêutica bíblica vem a ser uma maneira de interpretar a Sagrada Escritura. Há muitas. Todas elas pretendem buscar o sentido original que o autor do texto quis expressar quando escreveu. Umas focalizam as palavras que estão aí no texto, independentemente do que são capazes de dizer ao leitor de hoje. Essa busca do sentido visado pelo autor no seu contexto histórico é chamada exegese (em grego: ecs-égesis)  que quer dizer explicar, explanar. A busca de um sentido da palavra para nós hoje, atualizando a palavra, chama-se hermenêutica (do grego:hermenéia) que quer dizer interpretação.
Independentemente de credos religiosos diferentes, exegetas e hermeneutas católicos e protestantes desenvolvem uma sadia exegese histórico-literária procurando o sentido exato que está por detrás da palavra, do texto, as circunstâncias que condicionam o sentido da palavra quando ela foi escrita, sua história; a hermenêutica considera o que fica à frente do texto: o que ele pode dizer no hoje do leitor; a hermenêutica atualiza o texto.


5.      Aspecto filosófico da hermenêutica.
      (Breve abordagem)

A hermenêutica é a ciência que fornece instrumentos adequados para se entender algo que pertence à experiência da inteligência inter-subjetiva, a qual é sempre cercada por condicionamentos individuais e coletivos permanentes e históricos.
Todo escrito, toda tradição humana  são cercados por tantos elementos que acabam dificultando sua compreensão, como por ex., a distância temporal entre o texto e o leitor, as dificuldades lingüísticas, as formas de pensar, os gêneros literários.  Isso tudo pode gerar o problema da compreensão
Para evitar isso surge a hermenêutica como a ciência da interpretação atualizada da tradição. Para tanto ela usa instrumental próprio e adequado.
F.E.D. Schleiermacher (1768-1834) – teólogo protestante e filósofo; ele fez a passagem  da hermenêutica bíblica para a filosofia, apresentando-a como prática metodológica de interpretação.
W. Dilthey (1833-1911) foi quem pela primeira vez esclareceu o aspecto filosófico da hermenêutica geral. Para ele, a hermenêutica é uma categoria vital. A experiência de vida de todas as pessoas, seus sentimentos, sua própria compreensão do mundo, social e cultural, se manifesta através de expressões vitais pessoais diárias, ou também artísticas, literárias etc.
O objeto da hermenêutica, segundo ele, são essas manifestações enquanto expressões que exprimem a compreensão do homem no seu mundo vital. No processo histórico essas expressões vitais vão se cristalizando e acabam perdendo contato com a fonte da experiência.  A hermenêutica é o instrumento a ser usado para descobri o sentido primeiro das manifestações originais (fonte) e traduzi-lo tornando-o compreensível para a experiência vital do homem de hoje.
Na linha da hermenêutica filosófica, depois de  Schleiermacher e Dilthey, pontualizaram com autoridade alguns pensadores:
a) M. Heidegger - Suas premissas partem da  ontologia. O ser que interroga é um ser-em, isto é no mundo, é situado, o qual se pré-compreende no ato de interpretar. Há um “estar em” (n) o mundo que condiciona toda sua interpretação. Isso já contraria a pretensão do sujeito de ser medida pela objetividade, pois pertence à essência do sujeito ser habitante deste mundo, que o circunscreve e condiciona. Sua hermenêutica é existencialista: o lugar privilegiado onde o ser se manifesta é na pessoa humana, não nas suas experiências.
b) H. G. Gadamer -  Ensina que o homem está dentro de uma tradição; o compreender é o resultado finito daquela tradição como forma de pertença à história. A distância histórica entre o texto e o intérprete exige uma “fusão de horizontes”, que é possível porque se está no interior da história. (cf. Croatto, op. cit. pág 10-11) Por outras palavras, a hermenêutica é compreensão, mas tal compreensão acontece quando o leitor, vivendo o seu presente, mas herdeiro de preconceitos passados que lhe foram transmitidos pela história e cultura, se encontra com o texto. O “horizonte do texto” e o “horizonte do leitor” se fundem em um novo horizonte, de maneira que aquilo que era pré-compreensão se modifique e se torne compreensão. Essa compreensão não é, porém, absoluta, porque ela é um elo na cadeia das várias compreensões históricas do passado..
c) Habermas – critica Gadamer pelo seu apego à  tradição. Esse apego à tradição aprisiona a sociedade num tradicionalismo irreal que não leva em conta os conflitos reais, as psicopatologias e fecha o caminho para uma compreensão moderna e livre da interpretação.
Todos esses aspectos filosóficos influenciaram a exegese bíblica. E foi Rudolph Bultmann o primeiro teólogo que uniu a hermenêutica filosófica à bíblica. E daqui surgem depois as inúmeras correntes hermenêuticas contemporâneas.
Segundo Bultmann, não existe uma hermenêutica    especificamente bíblica. Todo texto antigo deve ser estudado com os métodos filosóficos, mas não para se obter uma compreensão englobante do texto, mas para se chegar à compreensão da própria existência à medida que leio o texto. É um diálogo leitor-autor.
                                   Um texto só pode falar algo para nós se for interrogado de modo adequado: partir de uma compreensão que seja distinta dos preconceitos que fecham o diálogo. Essa compreensão, diz Bultmann, é a minha auto-compreensão existencial, incompleta no início mas que vai tornar-se a verdade no diálogo (texto / leitor).
                                   É por isso que quando lemos a Bíblia com uma boa exegese filológica podemos compreender a teologia bíblica; mas a Bíblia permanece diante de nós como um objeto, um objeto que não pode interpelar-me porque tem uma linguagem de dois mil anos e até mítica!
                                   A partir, Bultmann constrói sua hermenêutica bíblica desmitizante. A Bíblia, diz, usa linguagem mítica. Mito é o fato de representar como terreno o que é ultra-terreno, como humano i que é divino, como natural o que é sobrenatural. Isso o homem moderno não pode compreender porque sua visão é científica e não religiosa. Por isso os milagres, sacramentos, encarnação, ressurreição etc. não podem ser aceitos pela mentalidade moderna. Mas não podem ser negados também; apenas desmitizados, isto é, traduzidos para uma linguagem inteligível para o homem de hoje. Essa linguagem é aquilo que Heidegger chamava de existencial. (cf. P. Grech, op. cit, pág 41-43).
                                   Concluindo: a trajetória da hermenêutica na filosofia moderna é uma tarefa quase impossível de ser descrita e compreendida. Sobre isso vale muito a frase de G. Gadamer: “ A hermenêutica é a arte de entender-se. Apesar disso, parece particularmente difícil entender-se sobre problemas da hermenêutica...” (GADAMER,G. in AAVV. Ermeneutica e critica dell’ideologia:  Queriana, Brescia:  Queriniana 1979,)

     6. A hermenêutica bíblica
Até aqui foram estudados alguns elementos  gerais
em relação à exegese e à hermenêutica. A seguir apresentamos alguns elementos que constituem a hermenêutica bíblica.
A possibilidade e a necessidade de uma hermenêutica bíblica nascem  do fato de a Escritura ser Palavra de Deus que falou  através de homens e que por isso é necessário  interpretá-la. Antigamente falava-se que os agiógrafos eram “auctores instrumentales” (autores instrumentais, usados por Deus; ou como dizia a poetisa Adélia Prado quando elogiavam a beleza e profundidade de suas poesias: “Quem escreve é Deus; eu só entro com a letra”). Hoje já dizemos que o homem é “verdadeiro autor” (Constituição Dei Verbum n. 11-12). Os dois Testamentos são obra de Deus, neles há intervenção divina, mas ao mesmo tempo a expressão  literária desse falar de Deus é criação  lingüística plenamente humana. E por ser obra humana ela tem uma mensagem a passar e está inserida num contexto histórico, cultural, lingüístico, social, a um tempo e ligada a uma pessoa (o autor). Disso tudo resulta a necessidade de interpretação, hermenêutica. (cf.STOBB, E, H.G. Heinz-Günther-Stobbe, Hermenêutica, In: Dicionário de conceitos fundamentais de Teologia,  São Paulo: Paulus,1993)




7.      Aspectos importantes para uma hermenêutica    bíblica
Mencionam-se hoje esses: a) a reconstrução melhor possível do texto original que servirá de base para a interpretação (trabalho da crítica textual); b) a filologia bíblica (origem da palavra) e a história do conceito, tanto geral como de em relação às peculiaridades lingüísticas e estilísticas de um determinado período, do autor e da obra (crítica histórica, literária e história da redação); c) a arqueologia, a topologia, etnografia, história comparada da cultura e da religião em geral dos dois Testamentos  e dos escritos em particular; d) esforço para se conhecer o autor do escrito, sua origem, e o Sitz im Leben onde escreve e para quem escreve.

 7.1   Princípios hermenêuticos fundamentais

Se Deus fala na Sagrada Escritura através de homens e de modo humano o intérprete deve: a)  Levar em conta a forma de pensamento e o modo de expressar do autor, geralmente condicionado pelo mundo que o cerca e a língua em que escreve (hebraica, grega-helenista, judeo-helenista; b) investigar  atentamente o que os hagiógrafos de fato quiseram dar a entender; para tanto estudar os gêneros literários (já que os textos são históricos,  proféticos, poéticos e outros gêneros); c) o significado do sentido literal (que nem sempre coincide com o significado dos vocábulos imediatos a ele); levar em conta a situação em que o autor está quando escreve e para quem escreve;  d)  considerar o chamado “círculo hermenêutico” pelo qual,  de afirmações particulares e facilmente compreensíveis, se pode formar uma imagem conjunta e por ela esclarecer pontos que são  difíceis.

   7.2– Princípios hermenêuticos teológicos
Pelo fato de os escritos do Antigo e do Novo Testamento  serem palavras de Deus - e por serem textos escriturais primitivos -  testemunhos normativos da revelação, pode-se tirar disso três princípios hermenêuticos teológicos: a)  a Tradição: eles chegaram até nós pelo testemunho vivo da Tradição da Igreja toda; b) a Escritura como um todo unitário; e c) a analogia da fé (Dei Verbum n. 12) ou seja,  todos os escritos bíblicos devem ser interpretados no seu conjunto, mutuamente correlacionados. Isso é a analogia da fé.  Um texto não pode ser pinçado e interpretado. Ele está relacionado com um contexto próximo (livro, capitulo, versículo onde ele está);  e com o contexto remoto (os demais livros da Escritura).  A Tradição é o ponto referencial, o princípio hermenêutico fundante.  Dela depende a Escritura e a analogia da fé.
 A tradição vem a ser o ensinamento religioso, ou o legado da fé,  passado de geração a geração. É chamada, parádosis,  em grego. A parádosis é também fundamento da fé. Ser cristão é  constituir uma solidariedade de fé, no sentido de comunidade, que tem como base uma Tradição a envolver muito mais do que o elemento em jogo nas múltiplas tradições das sociedades.
Dessa maneira a interpretação cristã da Bíblia foi praticada durante séculos pelo Povo de Deus como exercício de uma inteligência fiel e de uma memória fiel. Nessa corrente se inserem os Padres apostólicos e patrísticos. Essa memória fiel da Escritura (Tradição)  é uma versão cristã da tradição judaica, “para a qual não há verdadeira inteligência da tradição escrita que não associe a esta última o legado da tradição oral” (PELLETIER, A.M.,  Bíblia e hermenêutica hoje, São Paulo, Loyola, 2006, p. 154)  As bibliotecas dos mosteiros e conventos da Idade Média, sempre muito cuidadas e abastecidas, são o “testemunho eloqüente deste laço com as obras do passado que acompanhavam e fecundavam a leitura. Comentar excedia amplamente o projeto simplesmente intelectual que seria o de explicar um texto: o empreendimento era muito mais rico: tratava-se, pelo trabalho do entendimento da fé, de experimentar a força e a atualidade da Palavra de Deus e ao mesmo tempo a comunhão que reunia os discípulos de Cristo” (id.ibidem)
A parádosis tem dois aspectos importantes: designa primeiramente a doutrina cristã como conteúdo e como receptáculo da fé  e depois designa também o conceito ativo de transmissão, entrega.
Essa Tradição, densa e fiel, pode se imobilizar ou perder sua força. Ela se torna então “tradições”, que mesmo respeitáveis e úteis passam a ser provisórias e não necessárias. Ou pode ocorrer que a ênfase posta no aspecto estático do conteúdo da fé venha a impedir seu trabalho de transmissão. Passa-se então a guardar um “depósito”, garantido  apenas pela autoridade (Magistério).
A parádosis cristã é essencialmente transmitio, traditio (transmissão-tradição) Por isso somos Igreja hoje, porque a Tradição viva continuou a gerar Igreja ao longo das gerações. Desse modo a fé é fundamentalmente uma questão da tradição, quer dizer, da relação de pessoa a pessoa, associada a um forte pensamento de paternidade, como diz Santo Irineu de Lion: “Quando alguém recebeu a doutrina da boca de um outro, ele é chamado  de filho daquele que o instruiu, e este é chamado de  seu pai” Este é o sentido paulino e cristão fundamental da tradição  que se impôs desde o começo do cristianismo entre outras tantas acepções. (cf. PELLETIER, A.M, op. cit.  p. 153-157).
Resumindo o acima dito: para uma correta hermenêutica não basta a busca do sentido original de um texto; interpretar não é  apenas uma análise crítica, literária, acadêmica do texto.  Esse trabalho é necessário mas é preciso aliar a ele uma práxis, isto é, mergulhar no seu contexto sócio-histórico.  Este será o parâmetro da leitura.  Diz Croatto: “Não se ‘sai” do texto (ex-egese – do grego ago, conduzir, guiar) trazendo um sentido puro nele recolhido, como um mergulhador traz um coral à superfície do mar ou como se tira um objeto do cofre.  Antes, a partir de um horizonte vivencial novo que repercute significativamente na produção de sentido que é a leitura, “entra-se” no texto (eis-egese) com perguntas que nem sempre são as de seu autor”
”A Palavra de Deus é gerada no acontecimento salvífico, interpretado e enriquecido através da palavra que o recolhe e o transmite em forma (ou em diversas “formas” de mensagem. A correlação entre o “efeito histórico” (do acontecimento) e o “efeito do sentido”  (do texto) é muito estreita e se prolonga na relação entre práxis e leitura de uma tradição, texto ou, em nosso caso, da Bíblia. A exegese crítica procura compreender a produção dos textos, enquanto que a leitura teológica que se faz a partir da experiência da fé se concentra no texto produzido, explorando sua “reserva-de-sentido” lingüística e como “palavra de Deus”. No entanto, também aquele se pratica a partir de um determinado lugar (social, teológico), ou seja, a partir de uma   concepção da realidade e,   então, a ex-egese é ao mesmo tempo eisegese” (cf CROATTO,S.  op. cit. pág 59-60)
Os Santos Padres da antiguidade eclesiástica, desde Orígenes (185-254) esforçaram-se para elaborar pontos de vista hermenêuticos.  São de riqueza incalculável os comentários dos diversos Padres apostólicos, tanto gregos como latinos. Muitas e profundas foram as intuições teológicas e pastorais que tiveram e nos legaram em suas obras.  Estão neles as raízes da ex-egese e da eis-egese bíblicas que hoje se faz.
Na época moderna a Reforma, o racionalismo, as ciências naturais e psicológicas deram novos impulsos à hermenêutica bíblica.           
 O primeiro livro a tratar de hermenêutica foi o de J.C. Dannhauer, “Hermeneutica Sacra sive methodus exponendarum Sacrarum Litterarum”, Strasburgo 1654. O passo seguinte foi dado por F.E.D. Schleiermacher (1768-1834) -  considerado  pai da hermenêutica; ele concebeu a hermenêutica como a arte de entender. Para ele, “interpretar é uma arte, uma arte cujas regras só podem ser elaboradas a partir de uma fórmula positiva; esta consiste numa reconstrução histórica (ou comparativa) e intuitiva (ou divinatória) objetiva e subjetiva do discurso ou texto estudado (cf. MANNUCCI, V.  Bíblia: Palavra de Deus,  São Paulo: Paulinas, 1986, pág.327).
Para fazer uma interpretação autêntica é preciso ter uma compreensão divinatória, que é capaz de sintonizar, de entrar na vida da pessoa que escreveu. Isso mais por intuição, não tanto intelectual, mas cordial, afetiva. Juntar a essa compreensão divinatória a compreensão comparativa (ou histórica) que trabalha com notícias, história, gramática, texto etc. e combinar esse dois tipos de compreensão, que se influenciam reciprocamente, formando como que um círculo hermenêutico.
Depois de Schleiermacher, W.  Dilthey (1833-1911) - como foi lembrado acima, pág. 8 – prossegue e aprofunda o caminho aberto por ele. Ele distingue entre ciências da natureza e ciências dos espíritos. Nós explicamos a natureza, mas compreendemos a vida espiritual. “Interpretar os vestígios de uma presença humana oculta nos escritos constitui o centro da arte de compreender”. O conhecer é imanente na vida humana de forma embrionária; a vida é que se encarrega de expressar esses conhecimentos pela arte e pela cultura; compreender a arte e a cultura é fazer hermenêutica. Por isso “a hermenêutica é a ciência e a arte de compreender as expressões da vida fixadas por escrito” (cf MANNUCCI, V. op. cit pág. 328)
 E a partir de Dilthey outros tantos exegetas se preocuparam em dar uma identidade à hermenêutica bíblica, conforme já foi
lembrado acima. E embora lembrados convém sublinhar outros aspectos das interpretações de alguns dentre esses hermeneutas tradicionais.
M. Heidegger – Segundo Heidegger o compreender é o existencial fundamental. A compreensão é o ser existencial do poder-ser próprio do Existir (Dasein) e é tal que esse ser revela a si mesmo como estão as coisas a propósito do ser que lhe é próprio. É uma análise existencial “Compreende-se portanto a influência que a analítica existencial heideggeriana e a hermenêutica com ela relacionada pôde ter sobre a hermenêutica de Bultmann”  (veja p. 10). Heidegger fundamenta a hermenêutica na ontologia: diz ele que antes de quaisquer outros interesses, a existência (Dasein) sempre compreendeu o mundo...
G. Ebeling e E, Fuchs – Eram teólogos luteranos e foram discípulos de Bultmann. Tiveram grande preocupação com o problema da comunicabilidade da revelação cristã ao homem contemporâneo. Com que linguagem deve ser ela expressa hoje? Eles são os fundadores da chamada “Nova Hermenêutica”. Como discípulos de Bultmann eles “concebem  o homem como um poder-ser, que se encontra constantemente diante da escolha que lhe é oferecida pelo futuro e se torna autêntico se assume factualmente a decisão que a sua auto-compreensão lhe oferece. O homem só encontra sua autenticidade na sua relação com Deus e com a Palavra de Deus, ou  então mediante a auto-compreensão que lhe deriva desta Palavra e abrindo-se a um futuro de salvação mediante sua decisão que brota da fé. Somente então acontece um evento salvífico, um evento da palavra, um evento da linguagem”  (MANNUCCI, V. op. cit. pág. 342).
Para eles, o evento salvífico tem necessidade da palavra (linguagem) para acontecer. A palavra humana não é pura e simples transmissão de um conteúdo estático de idéias. Ela remete para uma realidade e comunica essa realidade a quem a escuta, fazendo com que participe dela. A palavra pessoal tem um sentido, orienta  para um fim.
                            Quando a pessoa a acolhe, acontece o evento da palavra. Também a Palavra de Deus tem na Bíblia, não só a função de informar mas também de converter,  de iluminar a existência. A como resposta à Palavra de Deus é o acolhimento dessa Luz que ilumina a sua e toda realidade.
A hermenêutica deve levar a restituir à Palavra de Deus (fixada nos escritos) sua condição de Palavra viva, atual.
Hermenêutica não é interpretar o texto mas  deixar o texto nos interpretar; o texto não tem sua razão de ser em si mesmo, mas no evento da palavra. Nele está a sua origem e o seu futuro. O evento da palavra é o evento da interpretação que se realiza pela palavra. Ou seja: a palavra que aconteceu num determinado tempo e acontecendo deu vida ao texto deve - com a ajuda do texto -  tornar-se novamente palavra e assim realizar-se como palavra interpretadora.
Ebeling aplica aos textos sagrados a hermenêutica existencial de Heidegger.  A interpretação só se completa quando o texto for proclamado pela pregação. A pregação devolve ao texto a sua eficácia e a sua presença vivificadora para o homem e para o mundo.
W. Pannemberg – Talvez por ter sido discípulo de G. Von Rad -  o biblista alemão que descobriu o chamado “Credo histórico” do povo de Israel no texto de Dt 26,5b-10 - ele defende o caráter histórico da hermenêutica. A história é o lugar da revelação de Deus pois Deus se manifesta através de acontecimentos históricos. Todavia a manifestação de Deus não se dá em acontecimentos separados mas sim no seu conjunto, na sua totalidade e globalidade.
A revelação de Deus  já aconteceu antecipadamente em Jesus, porque nele, na sua Ressurreição, Deus realiza a auto-revelação universal e última. No Cristo Ressuscitado os homens podem ver antecipadamente o final da história e nela a manifestação da divindade.
Daqui, Pannemberg tira conclusões para sua hermenêutica bíblico-teológica.
- A hermenêutica é essencialmente histórica.
- Interpretar a história é reconstruir a linha dos fatos, para que eles falem e para que neles e deles transpareça o significado objetivo para a existência de hoje, aberta ao futuro.
- Os fatos presentes como os passados podem e devem ser relacionados com a ressurreição de Jesus se quisermos compreende-los na sua perspectiva histórica. A Ressurreição indica que tudo caminha para  uma plenitude de transfiguração, transformação. Do evento que foi  Jesus de Nazaré nasce a dinâmica de mudança do presente. (cf. MANNUCCI, V.  op. cit , p. 345-346 passim).
Paul Ricoeur – filósofo e eclético pensador francês (+2005).  Partindo dos três famosos e conhecidos pensadores Marx, Freud e Nietzsche – aos quais ele chama de “mestres da suspeita”, ele diz que eles foram destruidores afirmando que nossa consciência é frequentemente camuflada, mascarada, mitificada, falsa e que também o Cogito de Descartes pode ser mentiroso. Mas como toda destruição no dizer de Heidegger é também o “momento de uma fundação totalmente nova”, nós não estamos perdidos. A partir deles a compreensão é hermenêutica. A hermenêutica se torna então uma decodificação, isto é, a descoberta das significações ocultas por detrás dos jogos lingüísticos.  A existência humana se  manifesta por sinais ou dados, expressa-se pela cultura. Pensar, é decifrar esses sinais e por eles compreender a realidade humana (É um tipo de fenomenologia de Ricoeur) [cf. LaCocque, A.; Paul Ricoeur, P.  Pensando biblicamente.  Bauru, EDUSC, 2001,  pp. 7-17; “Paul Ricoeur e Roger Chartier. Diálogo em torno do texto e do leitor”. In: LEONEL, J. História da leitura e Protestantismo Brasileiro, São Paulo: Paulinas,2010, pp 19-42).
A instância hermenêutica nasce da dimensão simbólica das linguagem; nasce como decifração do símbolo. “O símbolo – diz ele -  dá o que pensar” [Le symbole donne à penser”).
Ricoeur aplica sua “dinâmica do símbolo e de sua hermenêutica também à história e aos fatos históricos. Todo fato tem duas forças de direção contrária e complementar: uma que o remete ao seu passado histórico, à sua arqueologia, e a outra que o refere ao futuro, ao seu télos (fim) Ele busca o que vem depois de cada texto, sua telelollogia e sua recepção.
Aqui se constrói um “círculo hermenêutico “, que remete  continuamente de um a outro polo do acontecimento histórico; um ir e vir, do arché,  (princípio) ao télos,  (fim). É a esperança que afirma ao mesmo tempo o sentido e o mistério da história; o sentido dá coragem de viver na história; o mistério -que é o ocultamento do sentido -  não pode conhecer integralmente o sentido.

8. Os métodos da crítica literária e histórica
(cf. Konings, op.cit. pág.235-246)
                       Os métodos da crítica literária e histórica têm suas bases, como foi lembrado, na tradição dos Padres apostólicos. Já Orígenes e Santo Agostinhos escreveram obras que poderiam ser chamadas hoje científicas sobre o estudo das Escritura. Foram eles que perceberam que as Escrituras têm um outro sentido, um sentido novo, ou um “sentido mais” do que o literal: é o sentido “pleno”, isto é,  um sentido que pode ser desenvolvido a partir  de sua potencialidade ou como se diz hoje, da sua “reserva de sentido”.  A crítica tem o instrumental apropriado

                                   8.1  A Crítica textual (cf. KONNINGS, J. op. cit 236 ss)
‘Tem como objetivo reconstituir o texto original. O texto do autor chegou até nós geralmente através de cópias transcritas de cópias. E com grandes riscos. A crítica textual não se preocupa com a interpretação, sentido. Cabe-lhe tentar reconstruir o texto original através da comparação com os diversos textos,  famílias de manuscritos, variantes, recensões,  códices e outros textos antigos como lecionários, missais. A Crítica deve estar sempre atenta às variantes tendenciosas, aquelas que procuram tornar o texto bíblico parecido com os dogmas proclamados posteriormente. Remontar possivelmente aos textos mais antigos. Tentar provar a confiabilidade nos textos de hoje.
8.2  A Crítica histórica
Tem como objetivo reconstituir os fatos narrados com a maior objetividade histórica. Hoje em dia já se sabe que a Bíblia não é um livro de história, embora tenha história. É mais um livro de grande experiência religiosa expressa nos mais diversos gêneros literários. Para seu trabalho a Crítica histórica se vale da arqueologia, de documentos históricos, narrativas, história comparada.

8.3  A Crítica literária
Tem como objetivo descobrir a intenção do autor, o que ele quis dizer, seu estilo, palavras, tempo, destinatário da obra etc.
Esse trabalho da Crítica literária conseguiu mostrar que muitos textos na Bíblia são, compostos por mais de uma pessoa; que há tradições por detrás do texto; mostrou  as diversas fases de certas obras (Pentateuco, pseudografia (de livros, de cartas do NT: por ex.Pedro, e que a carta de Paulo aos Hebreus,  não é carta, nem de Paulo, nem aos hebreus (VANHOYE, A. Testi del Nuovo Testamento sul sacerdozio. Roma, PIB, 1978).
A crítica literária vale-se de fontes arqueológicas, literárias, documentais, de arquivos (A História das formas, da Redação) A comparação de textos , o vocabulário, o estilo, as palavras no seu tempo quando foram redigidos os textos.

8.4              As ciências auxiliares
São aquelas que podem ajudar nesse trabalho de pesquisa literária. E são muitas, como arqueologia, paleografia (antigas formas de escrita) cronologia (ou calendários), filologia, literaturas antigas, lingüística (ou ciência da linguagem como fenômeno universal), química, física etc.  A química  é importante na pesquisa sobre as tintas usadas nos manuscritos antigos; pode ajudar a datá-los; a física nuclear, mediante o teste do carbono 14  pode indicar a  antiguidade de papiros e pergaminhos.
Uma pesquisa histórico-literária é obra para dezenas e dezenas de anos! Nenhum biblista conhece isso tudo e nem é capaz disso. Por isso deve haver um intercâmbio e parceria teológico-bíblico-científico para se fazer correta exegese e conseqüente hermenêutica.

9.  O Cânon das Sagradas Escrituras
(cf MANNUCCI,V. op. cit. pág. 221-135;KONINGS, J. op. cit. pág. 208-220; SIMON-PRADO, Praelectiones biblicae. Propaedeutica. Mdrid.Perpetuo Socorro, 1950, pág. 69-127)

9.1 – O cânon
A expressão “Cânon das Sagradas Escrituras” indica o conjunto ou lista dos livros considerados inspirados e sagrados pelas Comunidades judaica e cristã e como tais aceitos como normativos para a fé.
A palavra “cânon” vem do grego kanón que significa régua de medir. Daqui passou a significar também norma de agir, regra de fé, medida de conduta, coleção, lista.
Há um cânon judaico de livros inspirados; é o cânon do Antigo Testamento. E há um cânon cristão, constituído pelos livros do Novo e do Antigo Testamentos
 A palavra  cânon  designava no início da Igreja “a sublime regra da tradição”, segundo a qual o cristão devia viver  conforme São Clemente Romano (1Cor 7,2;PG 1,224), como também era “a regra da verdade” ensinada pela Igreja, no dizer de Santo Irineu (Adv. haereses 1,9,45; 4,35,4 PG 1,224).
Somente no século IV foi feito por Anfilóquio de Icônio o primeiro catálogo dos livros  sagrados. Ele deu a esse catálogo o nome de “Canon veraz das Escrituras” [Segundo  o Dicionário Patrístico e de Antiguidades cristãs, (Vozes,  2002, pág 99), sua obra literária é controvertida. Nem tudo o que se lhe atribui é dele.]
A tradição apostólica, a constante tradição da Igreja primitiva, os Santos Padres e os escritores até o III.° século são testemunhas da aceitação dos livros canônicos quer do Antigo quer do Novo Testamentos. São exemplos a Didaqué (ou Doutrina dos Apóstolos) e os Santos Padres  São Clemente, papa, São Policarpo, São Justino, Santo Irineu,  São Clemente Alexandrino, Orígenes (+254) e Tertuliano (+225) entre outros, que fazem referências e citam os livros do Antigo Testamento. Depois do século III são importantes os testemunhos dos Santos Padres gregos como Santo Atanásio, São Cipriano, Santo Epifânio, Santo Hilário  bem como os latinos, principalmente São Jerônimo.
Também o Decreto gelasiano (382) traz  um elenco dos livros sagrados do AT e do Novo Testamento. Além de um elenco de livros considerados apócrifos.  Esse documento já faz distinção entre proto e deuterocanônicos. [O Decreto Gelasiano é um documento datado de 382; tem 5 capítulos nos quais trata  de Cristo e do Espírito Santo, do Primado da Igreja de Roma, faz elenco dos livros do Antigo e do Novo Testamentos, lembra de alguns Santos Padres e seus escritos e faz uma listagem de livros apócrifos. É chamado “gelasiano” por causa do
 Papa Gelásio (492-496) que foi considerado reformador. Mas o documento é de várias  épocas, sendo a primeira parte do tempo do Papa Damaso (366-384)].
                                 A tradição transmitida pelo Decreto Gelasiano perdurou até o século XVI quando o Concílio de Trento (1546) elaborou o Cânon definitivo que temos hoje. [Todos esses testemunhos escritos podem ser encontrados hoje em português no Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral, publicado em parceria por  Ed. Loyola e Paulinas, neste ano de 2007. É tradução do tradicional e vigoroso DENZIGER-HÜNERMANN]
                                 Depois do Concílio de Trento, Sixto de Sena (+1549) introduziu a atual terminologia de protocanônicos e deuterocanônicos para distinguir os livros não aceitos pela Reforma de Lutero dos outros livros aceitos.
                                 Essa terminologia sugere que há livros que entraram para o Cânon em primeiro lugar (proto) e outros, depois (dêutero), o que não é exato. Já Eusébio de Cesareia usara, no seu tempo, terminologia mais adequada distinguindo os livros omologoûmenoi (= unanimemente reconhecidos), dos livros antilogoûmenoi (discutidos ou contestados).
                                 Os livros contestados (deuterocanônicos) eram sete do Antigo Testamento e sete do Novo. Do Antigo: Tobias, Judite, 1 e 2 Macabeus, Baruc, Eclesiástico e Sabedoria (além de trechos de Daniel [Dn 13-14] e de Ester  [Est 10,4-16,24] porque escritos em grego; do Novo: Hebreus, Tiago, 2Pedro, 2 e 3 João, Judas e Apocalipse  - esses, porque se duvidava de que os seus autores fossem os apóstolos.
                                 O processo para se estabelecer quais eram os livros considerados inspirados é chamado canonização. E há diferença entre o cânon judaico e o cânon cristão.
                                   9.2 – O Antigo e o Novo Testamentos
                                   É uma divisão da Bíblia cristã porque esta contém os livros do Antigo como os do Novo Testamentos. A Bíblia judaica traz somente o Antigo Testamento, ou seja os livros da Antiga Aliança. Seus livros estão divididos em três categorias: a Torá (ou Lei, ensinamento) São os 5 primeiros livros da Bíblia: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio; os Nebiîm (= profetas) Os profetas, segundo o judaismo, são de dois tipos: os anteriores: Josué, Juízes, 1 e 2 Samuel, 1 e 2 Reis; e os posteriores: Isaías, Jeremias, Ezequiel mais o livro dos Doze profetas menores (= Oséias, Joel, Amós, Abdias, Jonas, Miquéias, Naum, Habacuc, Sofonias, Ageu, Zacarias e Malaquias); e os Ketubîm (= outros Escritos): Salmos, Jó, Provérbios, Rute, Cântico dos Cânticos, Eclesiastes, Lamentações, Ester, Daniel, Esdras e Neemias e 1 e 2 Crônicas.  O Judaísmo designa o conteúdo de sua Bíblia com o acróstico TNK (lê-se Tenak, isto é, Torá, Nebiim, Ketubim. O conjunto da Bíblia é chamado miqrá (do verbo qará = gritar). Miqrá vem a ser a bíblia proclamada (cf RIBLA, n. 40 (2001), pág. 99, nota 2).
A Bíblia hebraica tem  24 livros – conforme o modo tradicional que une os livros duplos como Samuel, Reis, Crônicas, como também une num só os doze profetas menores. Temos então 5 livros da Torá, mais 4 livros dos profetas anteriores, mais  4 livros dos profetas posteriores, mais 11 livros dos  Outros Escritos. Hoje em dia, porém, os judeus adotam o costume cristão de dividir os livros; desse modo a Bíblia hebraica passa a ter 39 livros: 5 da Torá,  6 livros dos profetas anteriores, 15 livros dos profetas posteriores e 13 livros dos Outros Escritos.   Esse é o cânon  da Bíblia hebraica.  É o Antigo Testamento.
O Novo Testamento contém 27 livros: 4 Evangelhos, os     Atos dos Apóstolos, 13 Cartas de Paulo, Carta aos hebreus, as sete Cartas dos apóstolos (também chamadas “católicas” = para todos) e o Apocalipse.
(O Judaísmo não reconhece Jesus Cristo como Messias, Filho de Deus e não aceita também os livros religiosos que trazem a vida, a mensagem e a prática de Jesus).
                                   A palavra “Testamento” não significa aqui uma herança ou um legado deixado por Moisés, pelos profetas, pelo povo de  Israel nos tempos antigos e nem por Jesus Cristo depois. A palavra se refere a um conceito central, bíblico, que é a Aliança (berît)  entre Deus e eu povo, antigamente por meio de Moisés e depois – conforme o Cristianismo – renovada (feita nova) e tornada definitiva por Jesus Cristo.  Por isso os cristãos falam da Antiga e da Nova Aliança.. Os judeus só admitem a aliança entre Deus e o Povo feita por Moisés (cf. KONINGS,J. op. cit. pág 20-21 STRABELI,M. Introdução à Sagrada Escritura. Marília (o autor), 2011  (Material  didático desenvolvido pelo docente).
                                         9.3 A Bíblia hebraica: fixação do cânon
A Bíblia hebraica, como foi visto, é menor que a Bíblia cristã porque não traz alguns livros do AT (adotados pelos cristãos) e nem, os do Novo Testamento.
O primeiro esboço de um cânon do AT foi feito pelo autor do Eclesiástico no prólogo do livro. Ele distribuiu os livros em três grupos: a Lei (Torá), os Profetas (Nebiîm) e os Outros Escritos (Ketubîm)
A Lei, ou Torá, já estava definida desde os tempos de Esdras (Esd 7,1.25-26; Ne 8). Os Profetas,  compreendiam as duas  divisões já assinaladas: os  profetas anteriores e os posteriores. Essa coleção já estava completa quando pelo ano 180 aC  foi escrito o Eclesiástico (séc. II). A fixação do terceiro grupo - os Outros Escritos -  foi mais complicada. O Eclesiástico no capitulo 44, quando faz o louvor a heróis e pais do povo, não faz menção a Esdras, Ester e Daniel. Também o livro dos Macabeus (2Mac 15,9)  que é posterior ao Eclesiástico menciona apenas “a lei e os profetas”. Não cita nenhum dos “Outros Escritos” (Ketubim).

9.4   O cânon alexandrino (cf Mannucci, op. cit pág 112-113 e 224ss)
Tentando resolver esse problema dos livros   deuterocanônicos, tem sido escrito e ensinado tradicionalmente que existiram dois cânones ou catálogos dos livros sagrados: um, alexandrino (da cidade de Alexandria no Egito), contendo os canônicos e os deuterocanônicos; e outro, palestino, mais curto, sem os deuterocanônicos. O cânon alexandrino teria sido elaborado em Alexandria com a versão grega dos Setenta (LXX), iniciada no século III (mais ou menos 250 aC) e terminada já na era cristã. O cânon  palestino teria sido fixado no século I dC (ano 91) no Sínodo de Jâmnia e não incluiria os deuterocanônicos.
                                 Essas informações, poderiam resolver o problema da diferença entre a Bíblia hebraica e a cristã. Mas hoje em dia, essa tese é questionada, muito criticada, pois não se pode determinar a extensão exata da versão dos Setenta e nem o tempo exato de seu processo. A história dos LXX é bastante complexa.   Essa tese parece basear-se, dizem os críticos, numa informação da chamada Carta de Aristéia; este foi um estudioso judeu do século II. Ele faz  um relato sobre a origem da versão dos LXX afirmando que as comunidades hebraicas da Diáspora, não falando mais  o hebraico, mandaram fazer uma versão do Pentateuco para a língua grega. Tal versão foi feita por 72 rabinos, a pedido de Ptolomeu Filadelfo  (283-246 aC) que desejava ter na Biblioteca que fundara em Alexandria do Egito a tradução dos livros sagrados hebraicos E que tal tradução foi feita de fato  pelos 72 rabinos que foram mandados para a Ilha de Faro (ou para o Museu de Alexandria) e colocados em celas separadas. Cada um deles executou a versão em 72 dias e verificou-se no final que todas as traduções eram milagrosamente idênticas ! [Isso é fantasia ou recurso do autor; ele quer mostrar com isso que a tradução dos LXX é inspirada]. De fato, não deve ter existido  um cânon alexandrino, pois não existem nem o texto original e nem códices confiáveis. Dos LXX se tem apenas uma transcrição cristã do século III dC.

9.5  O cânon palestino (cf PERANI, M.  “Il processo di canonizzazione della Bibbia ebraica”, Rivista Bíblica, anno XLVIII, v. 4, p.. 385-400, dicembre 2000.
                                 É de conhecimento geral no campo bíblico que um Sínodo de rabinos realizado em Jamnia (Jabneh, cidade na costa mediterrânea da Palestina) foi quem fixou o cânon hebraico da Sagrada Escritura. Esse cânon conteria os 22 livros citados pelo historiador Flávio Josefo como sagrados, na Carta a Ápion 1,8, escrita por volta de 95 dC.
                                 Mas também essa tese parece não ter fundamento histórico. “Se tivesse existido um Cânon palestino, os hebreus alexandrinos, que seguiam a orientação espiritual dos rabinos de Jerusalém, certamente não teriam pensado em formar um cânon diferente” (J.Mckenzie, Dicionário Bíblico. Ed. Paulinas pág 141).
                                 O que parece  ser histórico é que depois da guerra e da destruição de Jerusalém no ano 70, o judaismo farisaico se propôs fixar os critérios para a aceitação dos livros canônicos. Esses critérios correspondem ao conhecimento daquela época, nem sempre correspondendo à verdade.
                                 O 1.° critério estabelecido foi esse: os livros para serem considerados inspirados deviam ter sido escritos em hebraico e não depois de Esdras (400aC) [Obs. Isso não é correto historicamente porque Esdras só conseguiu colecionar o Pentateuco, e os demais livros não estavam redigidos ainda]
                                   O 2.° critério estabelecido: Os livros da  Bíblia hebraica deviam ser os fixados pelos homens da Grande Sinagoga que agiram sob a influência de Esdras. (Essa grande Sinagoga seria talvez a grande reunião de Esdras 9,1-10,17 quando tem início o movimento para a estruturação da comunidade judaica,  o que se chama hoje Judaísmo]
(Obs. Mas esse critério é também anti-histórico, porque a primeira menção sobre a Grande Sinagoga é feita na Misnah, redigida por Judas, o Príncipe, em 200 dC, portanto bem depois de Esdras (cf. Avot 1,1).
                                   E como já foi assinalado acima, não existe certeza histórica de que o cânon judaico tenha sido estabelecido em Jâmnia, num Sínodo de rabinos (90-105 dC). Tal sínodo não tratou do cânon, diz Perani (art. cit). Tratou mais de problemas e dos conflitos entre os rabinos sobre autoridade. Aqui tratou-se do problema dos livros Qohelet (Eclesiastes) e Cântico dos Cânticos: seriam livros profanos (“livros que mancham as mãos”, era a expressão usada ) ou seriam livros sacros? O livro de Qohelet foi aceito (canonizado); sobre o livro  Cântico dos Cânticos ficaram dúvidas.
                                 A elaboração de um cânon verdadeiro, real só foi feita por volta de 135 dC, pela necessidade de se definir a identidade do judaísmo rabínico e a posição hebraico-rabínica sobre a Bíblia, uma vez que o Templo e o culto tinham desaparecido depois dos fracassos das  revoltas contra Roma. Também era preciso estabelecer o padrão de uma Bíblia hebraica por causa dos inúmeros livros apocalípticos que surgiam na época e também para tentar barrar a autoridade crescente que a Bíblia grega estava tendo e da literatura sacra cristã.
                                 Também não é comprovado que os judeus de Alexandria  no século I tinham uma lista de livros canônicos diferente da lista dos judeus da Palestina. Também eles estavam em dúvida.
                                 A primeira afirmação histórica sobre a fixação do cânon de escritos que compõem a Bíblia hebraica aparece no Talmud da Babilônia, Tratado Bava batra 14b-15ª, em uma baraíta cuja redação é colocada entre mo fim do século II e o início do III dC e diz:
                                 “Os  nossos mestres ensinaram: ‘A ordem dos profetas é: Josué, Juízes, Samuel, Reis, Jeremias, Ezequiel, Isaías e os Doze profetas...; a  ordem do ketubîm é: Rute, livro dos Salmos, Jó, Provérbios, Qohelet, Cântico dos Cânticos, Lamentações, Daniel, o rolo de Ester, Esdras e as Crônicas’ ”. (cf PERANI,M, art.cit.  392)
                                  10.   A canonicidade
                                 (cf .PERANI,M. M. op.cit. p.385ss; BOFF, L. “Tentativa de solução ecumênica para o problema da Inspiração e da Inerrância” Revista Eclesiástica Brasilei v. 30, n.119,n.. 119, p. 648-667, 1970; GABEL,B.;WHEELER,  A Bíblia como literatura, São Paulo: Loyola, 1993)

 Fenomenologicamente a tradição oral tem primazia sobre a redação e a canonização de um texto. Primeiramente há uma comunidade religiosa viva, que faz a experiência dos acontecimentos, cria sistemas de significação e os transmite oralmente. Depois, um grupo de escritores sacros (agiógrafos) ou discípulos deles lhes dá a forma escrita; outro grupo copia, reproduz, transmite e guarda determinados textos; esses escritos, com o passar do tempo, adquirem antiguidade, autoridade e normatividade. Desse modo um texto pode ser entendido e aceito como normativo mesmo antes de ser declarado tal (canonizado) oficialmente. Assim aconteceu com os judeus antes de Jâmnia. A intervenção da autoridade é só o ponto final do processo de canonização.
  Nesse processo não é necessariamente importante  que o texto seja divinamente inspirado ou não; somente no final do processo é que se torna fundamental.
Não é a canonicidade de um texto que lhe confere a qualidade de inspirado; apenas a reconhece. Por isso podemos dizer que podem existir textos realmente inspirados, embora  não reconhecidos pela autoridade,  como por ex.  o Evangelho de Tomé, considerado apócrifo, mas que é na realidade uma coletânea de ditos atribuídos a Jesus e que segundo os estudiosos constituem verdadeiras palavras de Cristo (Ipsissima verba Christi no dizer de Joachin Jeremias); e tais palavras estão muito mais próximas das palavras de Jesus do que as versões fornecidas nos evangelhos canônicos. Outro livro que poderia ser lembrado é a Imitação de Cristo, escrito de grande valor teológico- místico e espiritual, atribuído ao místico alemão Thomas Kempis (1379-1471); e  assim,  outros escritos religiosos.
Realmente tais escritos, como outros, nunca serão incluídos no cânon oficial. Isso porque os judeus e os cristãos já estabeleceram o seu cânon. Uma vez estabelecida uma regra, um cânon, ele nunca é modificado. Se ficasse em aberto, nunca se teria certeza da identidade do cânon bíblico. Depois também porque “o cânon bíblico é uma coletânea oficial, patrocinada por uma instituição religiosa. Embora o cânon possa ter sido criado em primeiro lugar pelo consenso dos fiéis, o real interesse em preservá-lo intacto é do clero ou do  rabinato. Eles não podem permitir dúvidas acerca do seu conteúdo” (cf John  Gabel, C. Wheeler, op. cit. pág.82-83). Por isso os citados livros e outros, aceitos como obras de alto valor teológico, místico, espiritual, nunca serão acrescentados à Bíblia. Não porque não possam ser considerados autênticos e inspirados (pois não podemos provar também a autenticidade dos quatro evangelistas) mas porque um cânon, se puder ser alterado com inclusões, poderá também ser alterado com exclusões – pois há tanta coisa na Bíblia que os cristãos não aceitam (como por ex. o Apocalipse, rituais de sacrifícios antigos, passagens do Cântico dos Cânticos etc)  Por isso tudo, “nenhum outro livro pode ser incluído na Bíblia como também nenhum das atuais livros canônicos pode ser excluído dela” (John Gabel-C. Wheeker, op. cit  pág 83).
E a noção de inspiração é também muito ampla. Ela não se restringe somente aos fenômenos religiosos; ela se estende também a outras pessoas num contexto profano Por isso falamos de inspiração poética ou artística.. E no contexto religioso “a inspiração é um fenômeno das religiões e não se restringe só ao cristianismo judaísmo” (L.Boff, loc. cit p.651).  Pode-se falar de pessoas inspiradas tanto no judaísmo (profetas bíblicos) como fora do judaísmo (profetas extra-bíblicos, como Balaão na Mesopotâmia, os profetas de  Mari, [cidade também na Mesopotâmia, descoberta em 1933]; há profetas inspirados no Egito, como Neferti ( ou Nefer-rohu=2000 anos aC.) e  Ipuwer.. Eles  deixaram também textos  religiosos, muitos deles semelhantes aos dos profetas bíblicos. E também Maomé se julgava inspirado por Deus: “Este Alcorão não foi composto por nenhum outro senão por Alá mesmo. Ele reafirma o que revelou anteriormente” (Sura 10,38)
E fora do Judaísmo, há no cristianismo católico  homens e mulheres (canonizados ou não) que se consideravam inspirados por Deus a escreverem suas mensagens. Por ex. São Francisco de Assis escreveu:  “O próprio Senhor mesmo me revelou que eu devia  viver segundo a forma do  santo Evangelho. E eu o fiz escrever em poucas palavras e simplesmente  e o Senhor Papa me confirmou” (Testamento, 4).  Conhecidas são as revelações de Santa Brígida. Sua linguagem é a mesma dos profetas clássicos, como neste texto onde Cristo lhe diz: “Eu falo contigo não por tua causa, mas para a salvação de todos os cristãos. Tu serás minha boca e verás e escutarás coisas espirituais”.
“Em todos os casos , diz Boff, a essência da revelação está na espontaneidade do Numinoso que se re-vela e se dá a conhecer sob várias formas, até sob a forma de Encarnação da divindade, como no cristianismo.
‘A inspiração, neste contexto de revelação reside, como diz Benoit, num impulso dos portadores da revelação que os leva, seja por escritos, seja por ações pastorais ou proféticas a transmitir o revelado e conduzir os outros a um encontro vivo com  Deus” (L. Boff, loc. cit. pág. 652-653).
Daqui se pode dizer que todos os escritos que revelam a ação de Deus ou Jesus Cristo e que são como resposta à proposta de Deus, são “latu sensu” inspirados. Eles são testemunho da palavra de Deus ouvida num contexto próprio Mas nem todos os inspirados são ipso facto canônicos. Canônicos são aqueles assumidos e oficializados pela Igreja e apresentados como modelos de nossa fé e de nossa pregação. Com isso eles ganham (cf. L. Boff loc. cit. 663-665 passim) para a comunidade – coisa que não ocorre com os escritos não-cristãos. Falta-lhes caráter oficial e normativo por parte da Comunidade.

5.      Os livros inspirados e a literatrura apócrifa  

 (ROST,L .Introdução aos livros apócrifos e    pseudoepígrafos do AT e aos manuscritos de Qûmran, São Paulo: Paulinas 1980)

Para saber porquê os apócrifos não fazem parte da Bíblia é preciso falar um pouco sobre o chamado “Cânon das Escrituras”.
A Bíblia nasceu no Judaísmo. Hoje a Bíblia tem duas partes distintas: o Antigo e o Novo Testamentos. Os livros desse conjunto são considerados inspirados por Deus, isto é, Deus está á base deles. Foi Deus quem moveu os autores a escreverem o que temos aí. Os autores escreveram cada um a seu modo, num tempo, por uma  finalidade e de acordo com suas capacidades e culturas. De modo que  a Bíblia Sagrada é a Palavra de Deus transmitida a nós  por meio de uma linguagem humana.
Mas  para se chegar a um acordo sobre o que era um escrito inspirado ou não, levou-se muito tempo. Mesmo porque apareceram muitos escritos no início do cristianismo e havia muita discussão entre os mestres de Israel para se saber quais seriam os critérios que deveriam ser usados para se declarar como inspirado ou não-inspirado por Deus um determinado escrito. A Bíblia hebraica ainda não estava definida.
No século I depois de Cristo, como foi dito,   surgiram muitos escritos religiosos e filosóficos nascidos em grupos fechados e seitas como também surgiram os escritos do Novo Testamento, principalmente os três primeiros evangelhos, chamados sinóticos (Sinóticos quer dizer semelhantes; olhados em conjunto eles  se parecem bastante. Tratam da vida e obra de Jesus: o que ele falou e fez, e há neles pequenos traços biográficos, principalmente em Lucas).
                                   O Judaísmo tinha dificuldades para estabelecer o conjunto de seus livros que consideravam inspirados. Somente depois de muitas discussões  é que chegou-se a estabelecer uma lista desse livros.
                                   O historiador judeu-romano Flávio Josefo diz que de fato foram os rabinos que estabeleceram a lista oficial dos livros considerados inspirados. Essa listagem vigora até hoje no seio da Comunidade judaica.  Ela teria sido foi feita – como já foi dito -  entre 90-91 dC. num encontro de rabinos (chamado Sínodo), na cidade de Yâmnia (Yavne hoje). Nesse Sínodo os rabinos declararam aceitar como livros inspirados da Sagrada Escritura somente aqueles livros que constavam no cânon (lista)feito pelo grupo religioso chamado de fariseus, uma vez que o grupo dos saduceus aceitava como inspirado somente o livro do Pentateuco, e os judeus de Alexandria (Diáspora) por sua vez, estavam convencidos  de que Deus não havia pronunciado (revelado)  ainda a sua última Palavra. Por isso  acrescentaram a essa lista hebraica outros livros,  escritos alguns  em hebraico e dois em grego (2Macabeus e Sabedoria). De modo que essa coleção grega ficou mais extensa (com 7 livros a mais) e passou a ser usada oficialmente. Essa coleção é conhecida com o nome de LXX (70) (pois a lenda diz que a tradução dos livros do hebraico para o grego fora feita por 72 doutores, sendo 6 de cada uma das 12 tribos).. A Comunidade cristã passou a usar essa lista mais extensa.
                                   No tempo de Jesus não havia acordo acertado sobre a totalidade dos livros inspirados. Por isso, bem depois da morte de Jesus é que foi convocado pelos rabinos o Sínodo judaico. (Nota: Sobre a historicidade desse acontecimento conferir o que está lembrado à pág. 21). Em todo caso, é dito que nesse Sínodo realizado em Yâmnia, é que foi feito o cânon (lista) dos livros sagrados dos judeus.   Foram adotados os 39  livros  que constavam na lista das Escolas rabínicas dos fariseus  e excluídos os livros da Bíblia grega – os quais, além de serem defendidos somente pela comunidade judaica da Diáspora (Alexandria),  já eram também adotados pelos cristãos.
Nesse elenco dos fariseus constavam os cinco livros do Pentateuco, Josué, Juizes, 1 e 2 Samuel, 1 e 2 Reis, Isaias, Jeremias, Ezequiel, os 12 profetas (Oséias, Joel, Amós, Abdias, Jonas, Miquéias, Naum, Habacuc, Sofonias, Ageu, Zacarias e Malaquias), os Salmos, Jó, Provérbios, Rute, Cântico dos Cânticos, Eclesiastes, Lamentações, Éster, Daniel,  Esdras, Neemias e 1 e 2 Crônicas.
Essa lista é chamada Cânon, que quer dizer, norma, regra. Isto quer ensinar que os livros que constam nessa listagem são “normativos para a fé”, são orientativos para a vida, são uma regra de vida.
Os livros de Cânon estão em todas  as Bíblias. Mas as Bíblias usadas pelos católicos têm os outros sete livros do Antigo Testamento que não estão nessa lista oficial feita pelos rabinos em 91. Eles entraram na lista como inspirados somente mais tarde, por meio dos judeus que moravam fora da Palestina (Diáspora).
 São esses os sete livros: Judite, Tobias, Eclesiástico, S abedoria, 1 e 2 Macabeus e Baruc. Há também trechos nos livros de Daniel e de Éster  que foram introduzidos bem mais tarde e  por isso foram também rejeitados pelos judeus . São esses trechos: do livro de Daniel: o cântico de Azarias (três jovens na fornalha: Dn3,24-90.98-100); as histórias da casta Susana e de Bel e o dragão (Dn 13-14); e do livro de Éster: capítulo 1, com o versículo 1  numerado com 17 letras (só  nas Bíblias católicas. Nas evangélicas o livro começa com o banquete de Assuero: 1,1-21);  o decreto do rei Assuero contra os judeus (Ester3,13); o  versículo 13 vem  marcado 7 vezes e com letras; as evangélicas  só trazem a conclusão do decreto); trechos do capítulo 5 (Éster 5, versículo 1ª ,   numerado  6 vezes com letras, mais o vers. 2a e 2b; depois, no capítulo 8, o decreto do rei Assuero (8,12  assinalado várias vezes, com letras) ; cap. 9, vers. 19a; e capítulo 10 versículo 3ª e ss).
Como foi lembrado mais acima, a Comunidade grega usava essa coleção mais extensa, por isso esses trechos de Daniel e Ester estão na Bíblia grega. Não constam na Bíblia hebraica e por isso também não estão na protestante.
Esses sete livros e esse trechos avulsos são chamados livros deuterocanônicos. [A palavra deuterocanônico quer dizer: listado em segundo lugar, isto é, eles foram aceitos na Bíblia como inspirados só depois dos livros canônicos, numa segunda etapa].
São Jerônimo chamava os livros inspirados de “livros canônicos” e esses outros,  de “escritos eclesiásticos”, isto é, eram livros de boa leitura para a Igreja mas não inspirados.
Foi o Concílio de Trento que em 1546 estabeleceu definitivamente para a Igreja católica o elenco dos livros sagrados como temos hoje.
O motivo pelo qual os protestantes não aceitam como inspirados  os livros deuterocanônicos é porque Lutero, o iniciador do protestantismo, adotou somente o Cânon hebraico original (dos fariseus) e chamou de “apócrifos” esses sete livros deuterocanônicos, dizendo que ele não podiam ser comparados às Sagradas Escrituras, embora sua leitura fosse boa e proveitosa.
O texto hebraico (cânon farisaico) é do século IV; e o texto grego do Antigo Testamento é do século II aC.

Diferenças na nomenclatura

Apenas como informação é conveniente saber  que existe entre católicos e protestantes certa distinção no modo de designar o conjunto dos livros bíblicos inspirados do Antigo Testamento e  que constituem o Cânon. Há três palavras clássicas para designar as  duas diferentes classes (canônico e deuterocanônico) desses livros; são as mesmas para católicos e protestantes, porém têm sentido diferente para um e outro grupo. As palavras são estas:
Deuterocanônico: dêutero significa segundo e canônico significa elencado, listado. Para os católicos a palavra designa os sete livros do Antigo Testamento que foram aceitos como inspirados pela Comunidade judaico-grega no século II aC.  Os protestantes chamam esses livros de apócrifos ( e não de dêuterocanônicos).
Apócrifos: significa oculto, escondido.  Para os católicos essa palavra designa os livros que não foram considerados inspirados pela Igreja primitiva (são centenas). Os protestantes chamam esses livros de pseudepígrafos.
Pseudepígrafos: pseudo = falso; epígrafo: escrito. Portanto, os pseudepígrafos   são  livros cuja autenticidade e autoria não podem ser comprovadas. Resumidamente podemos dizer:
-                           os sete livros da Bíblia grega que entraram para o cânon das Escrituras mais tarde, são chamados: deuterocanônicos pelos católicos e apócrifos pelos protestantes;
-                           os livros bíblicos que não são considerados inspirados, são chamados pelos católicos de apócrifos e pelos protestantes, de pseudepígrafos.
A Bíblia hebraica tem 39 livros; a Bíblia grega, 46; a Bíblia protestante, 66 (27 são do Novo testamento) e a Bíblia católica tem 73 livros (39+7 do AT, e 27 do Novo Testamento).

11.   Deuterocanônicos, apócrifos-pseudoepígrafos
                                    Hoje em dia há grande curiosidade por parte dos católicos, principalmente, sobre a vida de Jesus  dos  seus doze aos seus 33 anos, bem como  sobre a vida  de Nossa Senhora, sobre  seu casamento com José, sobre o próprio São José, sobre  possíveis  outros filhos e filhas  de Nossa Senhora,  sobre os  Apóstolos, sobre a vida das primeiras Comunidades etc.   Essa mesma curiosidade existiu também nos primeiros séculos do cristianismo. Como os Evangelhos conhecidos não respondiam a todas   essas  e  outras questões semelhantes, começaram a aparecer, então, outros evangelhos,  outras Cartas dos apóstolos, novos Apocalipses, Testamentos, profecias  etc. para cobrir essa  deficiência de informações históricas.   Esse tipo de literatura passou a ser chamada de apócrifa ou também  livros apócrifos.  Embora esse tipo de livro e esse nome não sejam muito conhecidos pelo povo, todavia muitas passagens  deles são  lembradas hoje pelos cristãos,  exatamente porque floresceu no passado um robusta tradição apócrifa e que chegou até nós. Essa literatura é que constituiu o que hoje os católicos  chamam de “Livros apócrifos”.
A palavra apócrifo é uma palavra da língua grega e significa oculto, escondido.  Com o correr dos tempos passou a designar também uma obra, um livro, um escrito ou mesmo um fato cuja autenticidade não se podia provar. 
Nos tempos da Igreja apostólica e primitiva surgiram muitas correntes religiosas e filosóficas, tanto cristãs como pagãs que ensinavam doutrinas das mais diversas, tanto filosóficas é a do gnosticismo. Essa doutrina filosófico-religiosa ensinava que  o verdadeiro conhecimento ( em grego: gnose) não é adquirido por aprendizagem e nem por observação empírica (natural) mas sim por uma revelação divina, que é concedida a  alguns eleitos somente. E apenas esses alcançarão a salvação. A maioria dos homens não consegue os verdadeiros conhecimentos de Deus..  E apareceram muitos escritos do gnosticismo, cheios de mistérios. Esses livros passaram a ser chamados de apócrifos, isto é,  reservados, de sentido oculto, não revelado.
Na linguagem bíblica as palavras apócrifo, ou livros apócrifos indicam o conjunto de  livros bíblicos que não foram aceitos pela Igreja primitiva como livros inspirados por Deus. E são muitos. Assim, no Novo Testamento, há evangelhos, cartas dos apóstolos, Atos dos apóstolos e apocalipses apócrifos; como também há apócrifos do Antigo Testamento como por ex. a Vida de Adão e Eva, e livros como Sabedoria, Macabeus, Ester, Daniel, Esdras etc.
Em português há suficiente bibliografia para estudar esse assunto. As editoras Vozes, Paulinas, Paulus e Mercuryo publicaram muita coisa.


11.           Os livros  apócrifos
(cf.Alejandro Diez Macho, Introducción general a los apócrifos del Antiquo Testamento. Ed. Cristiandad, Madrid, 1984, p. 53-58, passim)

                         13.1   Por quê surgiram os apócrifos
Os apócrifos nasceram da devoção e piedade popular juntadas à curiosidade. O povo queria completar os vazios deixados pelos livros canônicos, principalmente do Novo Testamento. Quem fazia  isso eram livros sem autores conhecidos que iam aparecendo acrescentando aos relatos oficiais outros episódios miraculosos e sensacionais,   até curiosos e pitorescos.  Tudo aquilo a que o Novo Testamento  não respondia, principalmente sobre a vida de Jesus (infância, idade adulta, paixão, morte, ressurreição,  vida de Nossa Senhora,  vida dos apóstolos, fim do mundo etc.  os apócrifos respondiam, satisfazendo assim a  curiosidade popular  - que até hoje faz as mesmas perguntas.
Os autores dos apócrifos são desconhecidos; eles usam sempre dois truques literários:  a pseudonimia, que é escrever com o nome de um personagem  conhecido e estimado e que já morrera, e o estilo literário: eles escreviam à maneira e estilo dos escritores canônicos, isto é, inspirados. Por isso os livros se difundiam rapidamente, precisamente por causa do conteúdo (este matava a curiosidade) e pelos  autores deles (sempre  atribuídos a apóstolos, a Nossa Senhora, a   profetas...).
Quando os apócrifos surgiram já existia um catálogo dos livros inspirados, aceitos pela Comunidade, embora esse catálogo não fosse definitivo. Os judeus passaram a chamar esses escritos de “escritos estranhos”; os Santos Padres (teólogos e escritores da Igreja primitiva) os combatiam duramente.
                   Alguns desse escritos alcançaram, porém grande sucesso pela sua beleza e religiosidade e até pelo conteúdo – pois há apócrifos excelentes e teologicamente corretos e até melhores que alguns escritos canônicos.
                    Como esses escritos não tinham espaço nas grandes cidades, difundiram-se mais nas Comunidades distantes do centro cristão (por ex. no Egito, na Etiópia, na Síria etc.).
                    Os apócrifos de hoje formam um grupo (até pequeno)  de escritos salvos do destino que tiveram a maioria deles que foram destruídos ou queimados.
                    Os apócrifos de modo geral nos dão excelentes informações sobre certas concepções religiosas que eram bastante difundidas no ambiente judaico entre as pessoas religiosas do tempo e  que não aparecem os livros canônicos, ou aparecem vagamente, como por ex.  sobre os anjos a retribuição, o além-vida,  o final dos tempos etc.             O cristianismo trouxe muita luz sobre essas questões, mas seu nascedouro foi na literatura  apócrifa
                 Esses escritos revelam ainda a existência de correntes de pensamento e de grupos religiosos bastante diferentes das correntes e grupos religiosos do judaísmo oficial.
Outro aspecto importante dos apócrifos é que  muitos deles manifestam, tanto em escritos quanto em certos grupos de devotos, grande esperança na iminente vinda do Messias. Por isso alguns desses livros tiveram boa aceitação por parte dos Santos Padres e foram mais tarde incluídos num Apêndice na Bíblia de São Jerônimocomo livros úteis  e de valor, embora não inspirados. Muito da liturgia da Igreja romana ( ritos, gestos, orações...)   tem sua  base nos livros apócrifos. Por ex. o chamado “Réquiem aeternam...” ( = “dai-lhe, Senhor o descanso eterno) usado nas liturgias fúnebres, é tirado do IV Esdras (no grego é o V).[cf La Bibbia apócrifa. Massimo, 1962, p. I-VII, passim).

             13.2  Onde surgiram os apócrifos
                   Como são duas as classes de apócrifos bíblicos, os do Antigo e os do Novo Testamento, a origem deles é também diversa.
                   a) Os do Antigo Testamento.
                   A origem deles está ligada à situação política de Israel; a literatura apócrifa do Antigo Testamento é produzida em tempos difíceis do judaísmo. Israel, um povo que sonhava não somente com uma independência nacional mas também com a possibilidade de dominar todos os povos vizinhos vê-se de repente submetido a reis estrangeiros, primeiramente os egípcios ( séc. III aC)  e  agora (200 aC) os gregos. Além de submetidos politicamente,  deviam ainda pagar-lhes altos impostos.  O rei grego Antíoco IV se propôs acabar com a religião judaica: oprimiu o povo, humilhou o Templo colocando ali a estátua de Zeus Olímpico (2Mac 6,1-2) perseguiu os sacerdotes, queimou a Bíblia. Nesse tempo nasce a revolta popular  dirigida pelos irmãos macabeus  (1Mac 2,1-5).
                    Em tempos de dominação e de opressão é que surgem reações populares políticas  e religiosas. Um primeiro grupo de resistência foi o dos judeus piedosos, chamados na História de  hassidîm (=piedosos). Em seguida surgem os partidos dos fariseus e saduceus e o grupo dos  essênios  - conforme diz o historiador Flávio Josefo (Antiguidades 13,10,5-7).
O partido dos saduceus, que era o dos ricos, apoiava o regime estrangeiro, porque tirava vantagem O dos fariseus resistia aos estrangeiros  e apoiava  a revolta dos Macabeus. Nesse tempo nasce a literatura apócrifa do Antigo Testamento. Os livros dos Macabeus e o de Daniel são dessa época. O livro de Daniel é canônico, mas sua teologia é semelhante  à de alguns apócrifos. É uma teologia apocalíptica. Os apocalípticos procuram incentivar a resistência do povo e animá-lo  com a esperança de uma vitória definitiva no final dos tempos,, sobre essas forças que representam o mal.
              Os principais apócrifos apocalípticos do Antigo Testamento são: 1 e 2 Enoque; Oráculos Sibilinos, Tratado de Sem; Apócrifo de Ezequiel; ApocalipseS: de Sofonias, de Esdras, de Sidrac, da Abraão, de Adão, de Elias, o 2 Baruc (versão siríaca), o 3 Baruc (que é versão grega) e o 4 Esdras.
                A datação dos apócrifos do Antigo Testamento é colocada entre o II século aC até o I  século dC. (É o chamado período inter-testamentário.


                 b) Os apócrifos do Novo Testamento
                  A origem deles está ligada à história dos livros canônicos do NT. Eles aparecem depois que esses escritos dos apóstolos já eram conhecidos nas Comunidades. De modo que a datação  dos  apócrifos  do NT pode ser colocada no século II dC.
                   Como os livros canônicos do NT assim também os apócrifos estão divididos em Evangelhos, Atos, Cartas e Apocalipse.
                   Os evangelhos apócrifos  pretendem  preencher os vazios históricos deixados pelos evangelhos canônicos, como já foi dito. Usam muita imaginação e liberdade para satisfazer todas as curiosidades. Os Atos apócrifos  pretendem completar o livro de  Atos canônico  descrevendo viagens e milagres dos apóstolos. Muitos deles têm conteúdo herético. As Cartas apócrifas  têm intenção de  completar as cartas  perdidas que são lembradas na tradição do NT; pretendem ainda confirmar certas doutrinas, privilégios de Comunidades e discutir alguns pontos doutrinários;  Os Apocalipses apócrifos querem  refletir sobre os difíceis tempos em que viviam as Comunidades e apontar para um final da história positivo, em que o bem venceria. No transmitir tal doutrina entram elementos fantasiosos ou inverossímeis, ou ainda, heréticos.  Usam o gênero apocalíptico com visões, êxtases, aparições,  nomes inventados, sonhos etc.
                  Os apócrifos do NT baseiam-se nas mesmas fontes dos livros canônicos, que são as tradições orais.  Os motivos que originaram esses escritos seriam os seguintes: o desejo de completar as narrativas sobre Jesus Cristo: sua infância, adolescência, vida adulta, formação, Paixão- morte-ressurreição. O mesmo sobre Nossa Senhora: seu nascimento, sua infância, seu casamento, sua virgindade sua família, São José. E também o desejo ou a curiosidade de conhecer alguns pontos doutrinários ainda não muito esclarecidos, como a vida após a morte, o destino dos  pecadores e dos justos tanto os que morreram antes de Cristo como os que morriam agora; a vida dos apóstolos.
                   Isso tudo foi campo fértil para a literatura apócrifa.
                                Ainda: os evangelhos não estavam divulgados. Havia a  necessidade de se difundir a doutrina cristã, a identidade da Igreja. As Comunidades cristãs eram muito diversificadas, ainda não bem estruturadas. Por isso aparecem outros e muitos evangelhos além dos canônicos. Pretendem cobrir essa falta. Esses evangelhos, que são muitos, não têm uma tendência ideológica bem definida. Apareceram mais para servir o povo cristão e também como escritos  para a edificação. Eram eles uma grande expressão da religiosidade popular do tempo de seus autores e tiveram grande influência na formação da religiosidade popular dos séculos seguintes (cf. Luigi Moraldi, Evangelhos apócrifos, p. 30)
                               Além dos Evangelhos apócrifos apareceram também  Cartas dos Apóstolos, Atos e Apocalipses.
                                  Entre os Apócrifos, os do Antigo Testamento são considerados superiores aos do Novo. Entre os evangelhos apócrifos, mesmo aquele que é considerado o melhor deles, o Proto-evangelho de Tiago - também chamado: “A história do nascimento de Maria”,  se for comparado com um dos quatro evangelhos canônicos se perceberá uma diferença profunda; e ao contrário percebemos um afinidade extraordinária entre um Salmo de Salomão apócrifo e um Salmo do Saltério nosso. Não há nos apócrifos do Antigo Testamento aquele tom de  brincadeira, de fantasias e invenções que encontramos nos evangelhos da infância, que mais parecem conversas de comadres, como disse Renan. Nos apócrifos do Antigo Testamento se nota um desejo imenso pela especulação mística, que às vezes se confunde com delírios e mergulha no mundo impenetrável do apocalipsismo e até da Cabala; aparece em alguns desses textos o interesse  pela filosofia da história; na perspectiva deles  os acontecimentos históricos vão se desenvolvendo ligados pelo plano de Deus que os leva a realizarem-se.
                 No plano literário os apócrifos do Antigo Testamento são também superiores aos do Novo que, com poucas exceções, não têm expressão literária. Há neles, forte inspiração, há poesia. (cf. La Bibbia apocrifa, Massimo, Milano, 1962, p. 1-13)
               13.3  Quantos são os apócrifos
                   São muitos os Apócrifos, tanto do Antigo quanto do Novo Testamento. O imenso número deles dá uma idéia de como teve que se virar e preocupar a Igreja primitiva com essa avalanche de literatura que circulava por toda parte e como teve dificuldades para selecionar os livros que considerava realmente inspirados.
                  Santo Irineu reclamava que apareciam escritos temerários que desprezavam os ensinamentos dos apóstolos  (Adversus haereses 3,1).
                 Igualmente Orígenes, teólogo e escritor da Igreja primitiva, se preocupava com o problema dizendo que havia gente que escrevia evangelhos segundo o seu  próprio nome e que  “ seitas que possuíam numerosíssimos evangelhos”. (Homilia in Lucam, praefatio).
                             A Igreja preocupou-se com esse problema e tentou selecionar os escritos apócrifos. O elenco mais extenso que temos hoje,  do Novo Testamento, é o do Papa Gelásio (falecido em 496). Mas é um elenco complexo com obras do Antigo Testamento e também livros apócrifos.  Apresenta  60 livros, entre canônicos e apócrifos. Muitos autores julgam esse documento  não-autêntico.
                  Hoje em dia há estudos mais  confiáveis sobre esse tema.  As editoras publicam hoje os Apócrifos mais tradicionais e conhecidos. Nem todos são livros inteiros. De  alguns apócrifos conservaram-se apenas fragmentos ou pequenos trechos.
13.4  Porquê os apócrifos não foram aceitos na Igreja
                  Existem apócrifos que são tão bem escritos e que contêm doutrina tão ortodoxa que poderiam estar no elenco dos livros inspirados e não estão! Por ex. o apócrifo Proto-evangelho de Tiago. Ele contém certas particularidades que foram incorporadas à doutrina teológica,   e  tanto a Igreja grega (séc. VI) como a latina (séc. XII) passaram a considerá-las históricas, verdadeiras. Tais particularidades são, por ex. o nascimento de Maria (de pais estéreis);  o nome de seus pais (Joaquim e Ana -  que  têm dia festivo no calendário litúrgico); a apresentação e permanência de Maria no Templo; a indicação de José  como esposo e guarda de  Maria; o nascimento de Jesus numa gruta junto ao boi e jumento... Todavia ele não foi elencado entre os  livros inspirados. (cf. Aurelio de Santos Otero, Los evangelios apócrifos, BAC, Madrid 1985, p. 132).
                    Também  o apócrifo O Evangelho de Pedro, tem muita semelhança com os sinóticos. Descreve melhor que eles as cenas da paixão e ressurreição de Jesus e as primeira aparições. Seus contatos com os evangelhos canônicos são muitos; às vezes traz um pensamento tomado deles; outras vezes  cita as mesmas expressões deles. Mas traz também coisas próprias, como por ex., transformar seus personagens. O autor defende Pilatos, atribuindo a Herodes toda a culpa pela condenação de Jesus. Tem certos paralelos com escritos não-canônicos das primeiras décadas do século II.
                   A elaboração e fixação de livros como inspirados e a exclusão de outros como não-inspirados foi um processo muito longo e ninguém sabe exatamente quais foram os critérios adotados para tal seleção.  Nos primeiros séculos, informa Santo Agostinho, havia uma imensidão de escritos circulando pelas Comunidades.
                  Alguns autores dizem que os atuais apócrifos  foram excluídos porque contêm muitos pontos doutrinais discutíveis e que são certamente respostas a debates entre seitas ou heresias cristãs  rivais, na Igreja primitiva. E não podemos saber a quem e a que  os escritores se referem ao escreverem isso.
    A Igreja, por sua vez, por que  rejeita esses  escritos como não-inspirados mas aceita como inspirados  certos  escritos que o Judaísmo rejeita?
                    Essa dificuldade em saber como foi feita a classificação de livros em canônicos (inspirados)  e não-canônicos (apócrifos) já vem de longe.
                    Daqui se conclui que a exclusão dos atuais apócrifos do possível cânon oficial aconteceu naqueles tempos de dúvidas, incertezas e contradições  a respeito de inspiração. Mas, como foi dito, nem pelo fato de serem apócrifos significa que todos sejam livros heréticos ou perniciosos. Pelo contrário, a maioria deles traz bons ensinamentos e sã doutrina (Apocrifi del Nuovo Testamento, p. 15). Eles trazem essa marca porque são escritos surgido nesse tempo difícil da organização e estruturação da Igreja. São escritos paralelos aos canônicos. Trazem doutrina, tradições das mais antigas bem como mostram as preocupações das primeiras Comunidades
cristãs. Não são livros secretos, ocultos (apócrifos). Eles só não conseguiram entrar no cânon oficial, e certamente por alguma deficiência doutrinal ou excessiva fantasia teológica.
                        13..5  Importância da literatura apócrifa
                    Esses escritos têm grande valor e importância dentro do campo da pesquisa bíblica. Eles nos ajudam conhecer as Comunidades primitivas. Nos revelam tendências e correntes morais e religiosas das igrejas que se organizavam e acrescentam dados que esclarecem o que outras fontes (canônicas) informam. Muito material apócrifo procede da mais antiga tradição cristã, embora às vezes mesclados com fantasias, imaginação popular e interpretações errôneas. Isso tudo se entende hoje,  uma vez que os apócrifos procedem de um tempo em que a fé, os dogmas, as Escrituras, o Magistério ainda não haviam sido  aprofundados teologicamente e nem elaborados  e definidos  e as Escrituras ainda  passavam por uma fase de depuração dos escritos. Essas verdades e  valores teológicos, dogmáticos e escriturísticos ainda não era bem conhecidos pelas comunidades. Daí que muita gente tentava por própria conta aprofundar e expor a doutrina cristã, a partir dos ensinamentos que recebera,  como uma tentativa de ajudar as comunidades. Nessas tentativas acabaram escorregando para heresias e formando seitas como o docetismo e o gnosticismo cristão. Por esse motivo é que São Lucas, no prólogo de seu evangelho,  diz que precisou pesquisar muito para escrevê-lo, uma vez que muitos haviam escrito muita coisa (Lc 1,1-4).
                 Dos apócrifos recebemos valores teológicos fundamentais, que chamamos artigos de fé, que vêm melhor expressos nesses escritos do que nos escritos canônicos. Por exemplo a divindade de Cristo, a Virgindade de Maria, a descida à mansão dos mortos (“desceu aos infernos...”), a Assunção de Maria.
                 Além disso há um conjunto de tradições que conservamos e  que são patrimônio das comunidades primitivas e que nos forma transmitidas somente pela literatura apócrifa. Por exemplo: os nomes dos pais de Maria (Joaquim e Ana. Eles têm até  data de celebração no calendário litúrgico da Igreja); a apresentação de Maria no templo; a morte de José, assistido por Jesus e Maria; a morte de Maria, tendo os apóstolos ao seu lado; o nascimento de Jesus numa gruta, com boi e jumento; o nome dos três reis magos; o nome do soldado que feriu com a lança o coração de Jesus: Longino; a tradição de Verônica e de seu véu; o lírio de são José que floriu.
                   A literatura apócrifa  influenciou e ofereceu elementos  para a arte  e decoração religiosa nas catacumbas romanas, aos artistas bizantinos, à pintura e escultura do Renascimento. A Igreja de Santa Maria Maior, em Roma, é decorada com motivos religiosos tomados dos apócrifos. Na literatura universal estão presentes elementos religiosos dos apócrifos, como na “Divina Comédia”, de Dante Alighieri e no “Paraíso Perdido”, de Milton
                 Os apócrifos sempre foram bem recebidos por teólogos e por grandes mestres da fé, como Tomás de Aquino. O povo, de modo especial, acolheu e acolhe ainda hoje com muito gosto e fé os apócrifos pois eles trazem abundantes informações sobre a vida de Jesus, de Maria e dos Apóstolos.
                  Gianfranco Ravasi, biblista italiano diz : “no interior desse mundo colorido dos apócrifos, cujo fascínio narrativo é indiscutível, podemos descobrir que além dos escorrgões heréticos há um grande amor a Cristo e uma consciência de que  sua  presneça na história é decisiva. Diz um evangelho gnóstico: “Cristo está no coração de todos  aqueles que o confessam”. Na perseguição, ensinam os apócrifos, que  é preciso permanecer firmes, firmes até à morte. Um apócrifo egípcio diz: ‘Se disseres: sou judeu! ninguém liga. Se disseres: sou romano! ninguém teme. Se disseres: sou grego, bárbaro, escravo ou livre! ninguém se importa. Mas se disseres: sou cristão! o mundo treme”.
                  13.6   Elementos da Teologia dos apócrifos
                 Diz Alejandro Diez Macho (Apócrifos de Antiguo Testamento, Ed. Cristiandad, 1984, p 309) que na literatura apócrifa há quase tantas teologias quantos são os livros, cada um com suas concepções e representações próprias. Por isso é difícil dizer qual seria a teologia dos apócrifos, pois não é possível fazer uma síntese e nem uma análise mais profunda de todos e tantos escritos.  Mas é possível descobrir neles alguns temas gerais  de interesse para toda a Teologia e também seus significados teológicos. De modo geral os autores ensinam que  a teologia dos apócrifos vem  expressa em quatro temas: Deus, os anjos, o dualismo (bem/mal) e a escatologia (final dos tempos). Em síntese:
                 DEUS: sua transcendência e imanência. A salvação particular e universal; o antropocentrismo e o teocentrismo; Deus é amor e misericórdia; a justiça salvífica de Deus; a justiça retributiva.  [ A justiça de Deus é discutida e exposta pelos Livros: dos Jubileus, Henoc etíope, Testamento dos Doze Patriarcas, Salmos de Salomão etc.
                OS ANJOS: É muito forte nos apócrifos a presença e atuação dos anjos. O rabinismo proibia terminantemente o culto aos anjos. S. Paulo na carta aos Colossenses (2,18) e São João no Apocalipse (19,10 e 22,8-9)  criticam o culto aos anjos e condenam adoração a anjos. Os saduceus não acreditavam em anjos; os fariseus acreditavam com reservas. Os livros bíblicos tardios (Crônicas, éster, Eclesiástico, Sabedoria e Macabeus) não mencionam anjos ou falam muito pouco deles. Mas a literatura apócrifa dá extraordinária importância aos anjos e aos demônios (bem e mal) É o dualismo sempre presente nos apócrifos.
                Os apócrifos falam da origem dos anjos, das classes dos anjos, do Arcanjo S. Miguel, dos anjos das nações e do cosmos.
                Tudo o que sabemos ou falamos sobre os anjos procede especialmente dessa literatura:   a matéria de que são feitos os anjos é o fogo (Ap 14,18 parece lembrar isso; o Alcorão (7,12) diz isso também). Para os judaísmo o espírito reveste sempre um corpo. Mesmo espirituais, os anjos tem um corpo, mas etéreo e desmaterializado (vestes de luz). Marcos lembra isso na ressurreição (16,5). Devido tal concepção não é de admirar que nos apócrifos aparecem anjos se relacionando com mulheres (Gn 6,1-4).
                   O livro 1 Henoque 61,10 é que classifica os anjos em sete classes: querubins, serafins, ofanins, potestades, tronos  dominações e poderes (ou potestades). Uns guardam o trono de Deus, outros guardam o paraíso. [Os ofanins são anjos cheios de olhos por tosos os lados] O arcanjo S. Miguel tem papel importante nessa literatura. Segundo o apócrifo  Testemunho dos Doze Patriarcas, Miguel era o chefe dos setenta anjos que desceram do céu para ensinar a sua língua aos homens. É o anjo protetor de Israel.
                           Anjos da guarda. Os anjos estão sempre presentes na vida dos homens. Orientam sua história e intervém em suas vidas e guardam os homens. A figura do anjo da guarda aparece nos  Salmos de Salomão 91,1 ; no livro de Tobias (5,62), em 1 Henoque 100,5. No Novo Testamento, nos Atos, um anjo guarda a  Pedro (12,15).
    Anjos  decaídos.   A insistência dos apócrifos em falar de anjos caídos do céu é funcional: querem explicar a origem do mal no mundo. Segundo os apócrifos, os anjos caem  dos céus por terem sido seduzidos pelas “filhas dos homens” (Gn 6,1-4 está ligado a essa tradição.  Isso aparece em Testamento dos  Doze Patriarcas, no Apocalipse de Baruc siríaco (56,10-14) etc.
               A queda dos anjos – como aprendemos no catecismo ou pela tradição, a queda dos anjos aconteceu por orgulho deles e por quererem ser como Deus. Isso está no apócrifo Vida de Adão e Eva: quando Deus criou o homem à sua imagem e semelhança, diz o texto, o arcanjo São Miguel prestou homenagem ao homem  por considerá-lo superior a si e convidou  a Satanás para fazer o mesmo. Mas Satanás se recusou dizendo que  ele fora  criado antes de Adão e que por isso Adão  deveria prestar-lhe homenagem e não ele a Adão.  Outros anjos aderiram a essa proposta e então todos foram expulsos dos céus para o inferno. A partir daqui, Satanás e seus anjos começam a perseguir e a tentar  os  homens na terra (cf Vida de Adão e Eva 12-16). Satanás é o tentador, o acusador. O mal existe no mundo por causa dele e de seus anjos maus. Eles desceram à terra e se uniram às “filhas dos homens” (Gn 6,1-2). A partir daqui começa o mal. O mal não se explica somente  pelo livre arbítrio e muito menos por culpa de Deus, pois ele bom, mas pela tentação do Satanás.
                              O dualismo. Está muito presente na literatura apócrifa, principalmente na apocalíptica.  Esta corrente se caracteriza por uma concepção dualista da existência: o que é do alto e o que de baixo (acima/abaixo), Deus e Baal (também chamado Mastema. Esse nome é um sinônimo de Satanás; Mastema quer dizer “a perseguição” ou a inimizade);  anjos bons e anjos maus; homens que se salvam e que se condenam e principalmente o dualismo escatológico, que divide a realidade em dois mundos: o mundo presente (‘olam ha-zeh) e o mundo futuro (‘olam ha-ba).

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